Dos tijolos de pedra não tive medo, quando me seguraram e inclinaram
o meu pescoço em direção ao poço. Vi fileiras que
se entrecruzavam descendo na escuridão do abismo, sumindo em algum ponto
que eu mal pude distinguir por causa da aflição que me tomava
no momento. Pude apenas perceber o mau cheiro que exalava do fundo das águas,
por causa de uma mistura de sal e enxofre que ali haviam preparado, para banhar
o meu corpo, e assim lavar meus atos e pecados na presença da Inquisição.
Houve um momento que eu não consegui suportar mais nenhum daqueles olhares
que os acusadores disparavam contra mim; desejei de todo o meu ser que me jogassem
logo nas profundezas daquele inferno, antes que me deixassem louco - como assim
acho que eles queriam. Contudo disseram que eu tinha por direito a uma última
oração, disseram assim que, obteria misericórdia divina
e seria perdoado - após a morte eminente -, pela condescendência
da Igreja. Mas apenas olhei para um dos lados e avistei um par de gentes que
gritavam e zombavam chamando-me de demônio e criatura perversa, enquanto
cuspiam e atiravam pedras. O bispo que se ostentava pomposo em sua voz eloquente
rogou em latim algumas preces, e emitiu algumas palavras em direção
ao poço. Então eu vi quando olhou severo para aqueles que estavam
com os rostos encapuzados, e ordenou que me jogassem.
Um encontrão me forçou a cair no fundo do poço. Bati duas
ou três vezes com a cabeça nas laterais antes que pudesse encontrar
com a água que jazia no fundo, permanecendo inconsciente por algum tempo.
Quando pude abrir os olhos, senti que eles queimavam de dor, e ardiam com o
sal da água. Olhei para cima e percebi um borrão de luz que de
muito longe emitia alguns raios que adentravam no negrume do lugar. Não
consegui definir ao certo o número de pessoas que estavam na orla do
poço olhando para o fundo, lamuriando nomes indecentes e rogando-me todas
as pragas e maldições. Avistei ajuntar quatro ou cinco homens
ao lado do mármore que jazia ao lado da margem do poço, estavam
ali para empurrar a pedra e cobrir a orla para que não houvesse possibilidade
de fuga. Alguns raios de luz desciam até o fundo tocando a água
que refletia contra o fundo do mármore que empurravam lentamente. Vi
um feixe de luz desaparecer diante dos meus olhos quando deram um último
empurrão tapando completamente o local. Ali no fundo, aonde só
havia trevas, pude escutar - antes de cair em exasperação - quando
alguém gritou lá fora:
- Senhores, lembrem-se em suas orações antes de dormir e agradeçam
ao céu, e sintam-se em paz consigo mesmo, porque hoje aqui dorme um pecador,
e a sua dor será expurgada.
Subitamente um tremor apossou de todo o meu corpo e - talvez pelo horror - emiti
um grito agudo quando percebi que haviam dito "morre" em vez de "dorme".
Acho que fora um pedido de socorro que emiti com toda a força de meus
pulmões, o porque de ter feito isso eu não conseguiria definir
a não ser através do sentido da palavra loucura, e do terror que
era soberano fora e dentro de mim. O desespero aumentou quando notei que os
grunhidos pronunciados pela minha boca eram abafados em ecos que lamuriavam
no ambiente úmido, e que a cada minuto que passava se tornava mais e
mais pesado.
Percebi que o meu corpo agora tremia não pelo medo que me trespassava
mais sim pelo frio cortante que ali fazia. Minha primeira reação
foi de a de encontrar uma forma para sair daquele pesadelo, mas após
meu impulso de esperança fui tomado pelo desanimo das condições,
ao perceber que não havia forma alguma de começar uma escalada
por aquelas paredes. A região inferior do poço não era
revestida com os pesados blocos de tijolos que ornamentam a parte superior,
deixando a água escura com o barro que caia devido os movimentos bruscos
do meu corpo tomado pelo desespero. Nesse ínterim, escutei minha respiração
ofegante que, devido ao eco, ia lá em cima e voltava já sem forças
dissipando-se no meio lembrando alguma súplica de desgraça. Escutei
também o meu coração, e ele pulava no peito emitindo um
som que de pulsação a pulsação chegava aos meus
ouvidos.
Na condição de isolamento em que eu me encontrava não lembro
ao certo quantos dias eu passei ali. Sei apenas que tive fome e sede; tive medo...
Meu corpo estava enrugado com o frio e com a água, e já não
sabia quanto tempo conseguiria resistir. Minha mente estava fatigada com a situação.
Foi então que ouvi um ruído. Olhei para cima e vi o mármore
que cobria o poço oscilava e que o ruído era do atrito da pedra
com as rochas da orla. Enchi-me de esperanças e achei que finalmente
estava preste a libertar do confinamento, que meus pecados já haviam
sido expiados, e que seria me dado novamente o direito a vida. Meus olhos lacrimejaram
quando percebi que realmente o mármore estava sendo retirado. Não
pude conter o choro quando vi novamente o brilho da lua que radiante pendia
no céu. Quis expressar o quanto estava arrependido, e quando gritei,
som algum teve força para sair de minha boca.
Continuei olhando para cima e não vi ninguém aparecer junto à
orla e minha curiosidade apenas aumentava a cada instante, enquanto esperava
a decisão que tomariam a respeito de minha permanência naquele
lugar. Continuei olhando para cima e não vi ninguém aparecer junto
à orla. De repente tudo começou a rodar, e cai na água
com a tontura.
Uma cabeça apareceu silhuetada em frente à lua, e junto à
orla olhava-me curiosa, enquanto eu permanecia caído. Pude ver dois olhos
que se irradiaram espectral diante de minha reação atônita.
Então um sorriso se abriu na boca da criatura.
- Por favor, me ajude - resmunguei, exaurindo minhas últimas forças.
A criatura não disse nada em resposta ao meu pedido.
Procurei levantar, e as minhas pernas tremeram com o esforço; cai novamente.
A criatura emitiu um silvo agudo e alto, que ribombou num eco nos limites do
poço, cheguei a tapar meus ouvidos com a mão. Numa excitação
doentia ela saltitava em volta da orla emitindo um chiado frenético que
era indefinível. Chegou a estender a mão para o fundo, como se
estivesse disposta a me tirar dali, então olhou para traz e desapareceu
na noite.
O que havia de esperança em mim transformou-se em desespero. Sabia que
aquilo não era humano, talvez fosse algum delírio, ou alguma forma
de tortura psicológica que os inquisidores me apresentavam. Nos devaneios
que se libertavam dos recônditos de minha mente febril, achei que a criatura
era a materialização dos meus pecados expostos em torpes formas
e gestos.
Pude ouvir dois baques no alto antes do corpo explodir na água, que por
alguns centímetros não me acertara em cheio. Olhei e vi que a
criatura que estava ali do meu lado. Pulou no fundo do poço com desígnios
que desconhecia e olhava-me com seu olhar espectral. Antes que eu caísse
desmaiado - ou morto -, pude ver que a criatura erguia o seu braço, e
tapando os meus olhos com seus dedos gélidos sussurrou em meu ouvido
em grunhidos esparsos:
"Nada deves temer, porque sou apenas mais uma criatura, que já está
morta a décadas, assim como você, no fundo poço da Inquisição".