A Garganta da Serpente
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Lua Cheia

(Ivone Aparecida de Oliveira)

Ele virou-se com olhos desatentos e murchos, num gesto irreprimível e sem olhar para ela disse: "Eu não a amo mais".Seu corpo todo sofria com aquela profunda revelação. Mas era preciso dizer-lhe.

As mãos dela pairaram suspensas no ar, sua voz produzira uma sequência de sons inarticulados, descontínuos... Ela premeditara um ataque, um desmaio, um grito, uma fuga... Contudo, permanecera, ali, imóvel, paralisada pela emoção. Vivia fugindo daquele momento, como o diabo foge da cruz, enfim, o que ela tanto temia aconteceu. Fez-se necessário acontecer.

Ele tentara explicar-se: "Ela era boa para ele, tão dócil, suave, gentil, qualidades não lhe faltavam. Talvez não a merecesse... Tinha noção do que estava perdendo, mas o que fazer? Amor é um sentimento que não se explica, gostava dela, mas não a amava. Não, não havia outra pessoa, o motivo era esse: ele deixou de amar...".

Ela tentou acariciar-lhe o ombro, queria segurá-lo, prendê-lo ali para sempre, ela o queria tanto... Ele alheio aos carinhos dela, vestiu-se e mais que depressa, dirigiu-se à porta, abriu-a e se foi. Ela enfiou a cabeça debaixo do travesseiro, encolhendo-se de dor.

A casa dos trinta chegara para ela, mas não o amor, mantinha-se firme, forte, invulnerável às coisas do amor. Jamais se interessara por alguém e aguardava silenciosa e lúcida a chegada do amor, que certamente algum dia chegaria.

E o amor chegou sem aviso prévio ou condecorações, não veio numa carruagem dourada, nem montado num cavalo branco, tampouco numa noite de Lua cheia. Chegou, simplesmente, vestindo um "jeans" surrado, uma camiseta colorida e um tênis de longas caminhadas.Tinha olhos extravagantes, possuía um certo enlevo, uma energia constante, uma alegria contagiante. E ela se apaixonou, abandonou o olhar sério, a gravidade dos gestos para embarcar numa informalidade sutil. A mudança exterior, muitas vezes, é mais fácil de se operar que a interior, portanto, havia, agora, uma preocupação constante com o que vestir e como se vestir. Queria rejuvenescer a qualquer custo. Resolveu mudar o corte de cabelo, dar um toque moderno ao seu rosto. E não é que ela tornou-se mais bonita. Talvez não fossem as roupas, nem o cabelo. Era a felicidade que brotava em seus olhos e iluminava todo o seu ser; a alegria tomou conta de sua vida, a rejuvenesceu, a embelezou.

Foram-se os dias, enquanto ela só pensava no encontro, era a descoberta da vida, aprendera a enxergar coisas que para ela, antes, não existiam como a grandeza das árvores, o colorido dos jardins e, sobretudo, aprendera a olhar o céu.

Interessou-se por pintura, começou a pintar: árvores distantes, casinhas antigas, patinhos no lago e um sol dourado dominando a paisagem infantil. Ele ria dos quadros dela, mas ela obstinada, atenta aos detalhes, continuava sua obra, porque, só agora, ela começara a enxergar a beleza das coisas que ela nunca tinha visto e que sempre estiveram ao seu redor. Passou a visitar as pinacotecas, sabia que não possuía talento para tornar-se uma grande pintora, mas nada a impediria de perseguir os pintores consagrados e contentava-se com seus pobres esboços.

E, assim, sua vida seguia tão bonita, colorida e uma eterna primavera se instalou. Porém ela sabia que nada é para sempre. Tudo tem um começo, tudo tem um fim. Os olhos dele irradiavam uma procura incessante, uma força vigorosa, sedenta de renovações, de mudanças. Enquanto para ela seus anseios se resumiam: numa quietude solene de um fim de tarde sem surpresas, embalado pela chuva que caía lá fora nas tardes de verão ou no tímido pôr-do-sol das tardes frias de inverno, era tudo que ela queria: uma vida monótona e tranquila. Para ele monotonia era tudo que ele não queria...

O momento da separação foi se aproximando leve e sorrateiro, como um vento fino anunciando a chegada de um temporal. Ela tentou, desesperadamente, adiar aquele momento, interrompendo sempre e tanto porque temia que ele traduzisse em palavras o que há muito tempo ela lia nos olhos dele. Todo seu corpo se encolhia numa dor cortante, indivisível, uma dor sem remédio, sem fim, permanente... Dias e dias ela permanecera inerte, sem se ver, sem falar com ninguém, abandonou definitivamente os pincéis. Por algum tempo acreditou no milagre da volta. Ele não voltou.

E os dias chegaram, um dia após o outro, sem trégua, sem se importar com a dor que ela sentia e aos poucos empurraram-na para a vida. Ela recomeçara a viver, depois do achaque de lágrimas, viera a febre de encontrar um outro alguém para substituí-lo, correu às buscas, encontrou um e outro, sem muito sucesso, porque quando a noite terminava, sentia-se mais sozinha que antes. Nada além de poucos carinhos desinteressados, companhias frustrantes. Possuíam repertórios diferentes e isso produzia ruído na comunicação. Por fim cessaram as buscas.

Corria o tempo e o Natal chegara com toda sua publicidade. Foi uma descoberta solene aquela, percebera que não estava tão sozinha, afinal nunca estivera tão repleta, tão cheia, tal como uma Lua cheia brilhando, enchendo o céu de luz. Havia tantas lembranças dentro de si, tantas recordações que valiam por uma vida inteira. Pensou, lembrou-se de tantos momentos, mas não se magoou. Dali podia-se avistar as nuvens altas a se perder nas alturas, como era bom pensar: "Eu poderia subir a montanha e tocar com as mãos o céu, aquele imenso céu azul, tão azul quanto a esperança de vê-lo voltar algum dia nem que fosse trinta anos depois, sentado no trono dourado da fantasia. Que saudade doce, como é bom sonhar."

O tempo passou, mas o amor ficou presente nos olhos dela, no livro que lia, na chuva que caía nas tardes de verão, ou no solitário pôr-do-sol de uma tarde fria de inverno. Como um vulcão adormecido esse amor ficara ali encerrado dentro dela, por tantos anos que ela perdeu as contas, esqueceu de contar os anos que se passaram desde então, os anos perderam-se com o tempo e agora isso, já, não importava mais.

Aquela noite, porém, quando a campainha tocou, ela teve um sobressalto, era tarde para ir até o portão. Olhou, não reconheceu quem lá estava, aproximou-se... e uma voz antiga perguntou a ela: " Posso entrar?". Ela virou-se para ele e viu que lá fora uma Lua cheia, a mais linda e encantadora que jamais se viu, inundava o céu...

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