Odrog, o motorista, levantou-se de mau humor, como sempre, depois de acordar
a mulher com a costumeira cotovelada. Mal engoliu o café com pão
dormido, atravessou o quintal chutando as galinhas, entrou no velho fusca e
saiu em disparada. Chegou bem cedo à transportadora, embora não
precisasse comparecer ao trabalho, porque era folga dos funcionários,
dia de comprar os presentes da família com o ridículo 13º
salário. Mas ele estava ali, nesse 23 de dezembro, porque recebera na
noite anterior a convocação do patrão por intermédio
de um vizinho: "Você deve ir de manhã, porque é assunto
urgente."
Dr. Úab Mala estende a molenga mão direita ao empregado. O sorriso
falso, que não se desfaz nunca, parece máscara colada à
cara do chefão, que ostenta cabeleira negríssima, fruto de longas
sessões de tingimento. A voz é idêntica à de conhecido
apresentador da TV:
- Ra-rai, meu prezado! É um prazer, é um prazer informar que desta
vez você foi o escolhido, o escolhido - diz com a voz empostada, os olhos
correndo do entrevistado à plateia, constituída
ali no pátio por três perplexos faxineiros empunhando vassouras,
pequenas pás e grandes sacos plásticos.
Odrog prepara o coração para receber notícia ruim. Sente
um friozinho no estômago e logo depois a sensação é
de surpresa e alívio.
- Você foi escolhido, escolhido para ser o Papai Noel da nossa empresa.
Agradeça ao meu filho Leombardi, que se lembrou de você, embora
nem saiba o seu nome direito. Puxa, que nome complicado... Eu sei que vocês
se encontraram apenas uma vez aqui na empresa, no Dia das Crianças, lembra-se?
Mas você brincou com ele, foi muito gentil; depois o menino comentou que
você é um tio legal, agora ele insiste e eu também: você
será o bom Velhinho na nossa festa - e vira-se para a plateia.
- Vai ou não vai? Vai ou não vai?!
O chefe deu essas explicações com os olhos iluminados, como se
estivesse no palco e, em vez dos três faxineiros, tivesse diante de si
um auditório lotado.
Odrog, um grande oportunista, não fora gentil de graça com o aborrecido
Leombardi, brincara com ele por puro puxa-saquismo e logo se esquecera daquele
Dia das Crianças. Encenou com tanta competência o papel de homem
bom e afável que foi escolhido Papai Noel, logo ele que nunca fora lembrado
pelo Velhinho nos natais de sua distante infância. Sentiu ligeiro arrependimento
por ter se aproximado do garoto com a intenção de impressionar
o pai dele, que assistia à cena. Lembrando-se de tudo, ele não
se contém e, agora, vejam só uma lágrima - a primeira nos
últimos 30 anos - escorrendo até a ponta do seu narigão
pontilhado de cravos.
Outro acontecimento tocaria o coração do gigante no mesmo dia.
Ao retornar a casa, à tardinha, ele já não acelerava com
raiva o velho fusca. O homem nunca tinha pressa de voltar para o lar, mas dessa
vez era diferente: pensava na sua escolha para representar o Papai Noel; lembrava-se
da conversa do pequeno Leombardi com o pai, o qual acabou se convencendo das
condições do motorista para interpretar o Velhinho - que honra,
meu Deus!, fazer as vezes do bom Noel, que atravessa os céus da fantasia
a bordo de trenós puxados por renas, com presentes endereçados
a bilhões de crianças do Planeta. Ele ia pensando nisso, um pouco
distraído, quando o sinal fechou para os carros nas proximidades do cruzamento
onde, pela manhã, quase atropelara um grupo de pedestres que trocavam
ideias com o espírito de Natal, andando de olhos quase fechados
em vez de olhar o sinal. Pisou no freio. De repente, uma carinha magra, cabelos
castanhos quebradiços cobrindo as orelhas (menino ou menina?), aproximou-se
da janela do fusca. Ele ficou meio assustado, mas não era um assalto.
A criança estendeu-lhe uma caixinha de sapatos e pediu um trocado. O
brutamontes não tinha por hábito dar dinheiro sequer aos próprios
filhos, mas naquele momento ainda se encontrava um pouco sob o efeito da conversa
com o patrão e de como o pequeno Leombardi impusera seu nome para o honroso
cargo de Papai Noel da empresa. Por um instante, Odrog enxergou naquela criança
de rua todos os meninos e meninas do mundo excluídos da lista do velho
que ri fazendo "rou-rou-rou" e balançando a pança. Enfiou
a mão no grande bolso da camisa encardida e, lá no fundo, sob
o maço de cigarros, encontrou uma moeda. Tirou o dinheiro sem conferir
o valor e entregou ao pequeno mendigo, que abriu um grande sorriso de dentes
encardidos. Afastando-se com os olhos no sinal prestes a abrir para os carros,
a criança ainda agradeceu: "Brigado, moço, se eu tivesse
pai queria que fosse assim que nem o sinhô." E saiu correndo entre
os automóveis, satisfeito e ainda surpreso com o valor da moeda que o
homem lhe dera.
Odrog ficou olhando a criança dobrar a esquina e, pela segunda vez, no
escaldante 23 de dezembro, uma lágrima escorreu pelo rosto do gigante.
Pensou na sucessão de eventos que lhe tocaram o coração
naquele dia. Não podia ser obra do acaso. Fora decisivo o contato, minutos
atrás, com aquela criança de rua que se parecia um pouco com ele
há muitos e muitos anos. Estava meio confuso e pisou fundo no acelerador,
mas não o fez com a raiva de sempre. Pedia a Deus a felicidade de encontrar
em casa a família - a mulher Argam, os filhos Odrog Júnior e Argam
Maria - para mostrar que estava disposto a se tornar um homem generoso, compreensivo
e doce. Ao parar num sinal, olhou no espelho do carro e imaginou-se vestido
de Papai Noel. Antes de arrancar, ensaiou o sorriso que apresentaria à
porta de casa como um bilhete que o habilitaria a entrar numa nova vida.