O piano desafinado. A poeira que ainda resta sobre ele. E ela toca. O amor 
  lhe dói agudo mais uma vez. E ela sabe que é assim. As mãos 
  não conseguem fazer soar no piano a melodia que o coração 
  sente, mas os ouvidos fingem escutar música agradável. 
  Sozinha no escuro ela pensa "Eu vou passar bem rápido pelo escuro 
  assim ninguém vai poder me pegar. Nem o diabo, nem nenhum morto." 
  
  - Por que você está correndo, menina? 
Vergonha de seu medo. Alguém algum dia lhe contou que todo mundo tem 
  medo? A Menina tem medo. Quando briga tem medo. Quando perde o controle tem 
  medo. E chora lágrimas de quem não entende nada. Por que os pais 
  eram separados dela? Por que ela tinha que aceitar ordens de alguém que 
  não é nem seu pai, nem sua mãe? Ela não quer que 
  eles voltem a se casar. Eles só podiam não estar separados dela. 
  
  Nossa Senhora do Perpétuo Socorro num quadro acima da cama. A Menina 
  fazia catequese e a "tia" disse que ter fé era dar um passo 
  no escuro. "Eu tenho medo do escuro! Eu tenho medo do escuro!" A "tia" 
  disse que a gente tem que crer em nosso Senhor Jesus Cristo para nossa salvação. 
  A santíssima Trindade. "Eu meu pai e minha mãe? Como pode 
  ter três deuses em um?" A "tia" disse que a gente tem que 
  ter fé, que fé é o passo no escuro. "eu tenho medo 
  do escuro! Eu tenho medo do escuro! Eu não tenho fé???!!" 
  
  Mas e se ela chorar e rezar o terço cor-de-rosa que a professora de piano 
  lhe deu, será que pode pelo menos dormir tranquila? O terço 
  é lindo! As pedras têm cores de rosa que são muitos tons 
  refletindo outras cores na luz - e não no escuro. Não são 
  como o terço feio da Avó. Terço azul de plástico. 
  Azul de bugiganga de plástico. Plástico azul do espremedor de 
  laranja que também é velho e sujo. 
  A professora de piano, que era freira, foi quem deu a ela o terço. A 
  Irmã gostava da Menina. Da criança alegre e inteligente que ela 
  era. Os outros alunos reclamavam que a Irmã era brava, mas com a Menina 
  era só de vez em quando, quando ela não tinha estudado nada mesmo. 
  E, mesmo quando ela fica brava, ela não achava que a Irmã era 
  tão brava assim. A Avó era bem mais quando não queria estudar 
  piano. E a Irmã sempre a deixa tocar um monte de músicas no final 
  do ano. 
  Na primeira audição de piano de sua vida a Menina tocou "Férias 
  na Espanha". A Irmã lhe deu uma música que considerava de 
  nível mais adiantado que o dela. Falou que se não desse pra decorar, 
  tudo bem. Chegando em casa, a Menina contou pra Avó, feliz da vida. E 
  a Avó disse "como se não der pra decorar tudo bem? Você 
  é capaz! Você decora! Vai mostrar pra todo mundo que você 
  decora!". A Avó não entrou no universo da Menina. Não 
  percebeu que o grande acontecimento era que a professora a elogiava, e que a 
  Menina estava feliz por isso. A Avó pulou essa etapa, não esperou 
  que crescesse nela a vontade de decorar. Tão logo tocou a primeira vez 
  a música, a vó já tomava a partitura da Menina e forçava-a 
  a lembrar da música. Não vinha dela própria as vontades. 
  De tanto chorar, tanto chorar, não entendia o que estava acontecendo. 
  Chorava, apertava bem o olho pra sair a lágrima e parar de doer a cabeça 
  e sair o azedo de dentro dela. De olhos fechados a única coisa que existia 
  era a sua dor, a sua solidão. 
  Quando abriu o olho estava lá sentada no banco do piano com as pernas 
  balançando, de vestido branco, cabelo channel, e uma tiara de florzinha. 
  Tocando tudo de cor. Junto às lembranças, analisa: "Minha 
  vó sentiu orgulho, mas eu não estava mais feliz por isso." 
  
  No dia de sua formatura do curso piano sentia um choro preso na garganta. Era 
  dia de festa e seu coração estava derrotado. A Menina gostava 
  de um rapaz que não estava ali. Estavam a Avó e o Avô exibindo 
  um orgulho bobo. 
  A Amiga, que também se formava, estava chorando porque o pai dela não 
  ia. "O meu também não! Nem minha mãe." Mas a 
  Amiga estava chorando porque os pais tinham brigado e pra a Menina era até 
  fácil de entender uma briga, de aceitar, de fazer a Amiga se sentir melhor... 
  a Amiga chorava porque a família poderia ser desfeita. A Menina chorava 
  por nunca ter tido a família perfeita. 
  Era um domingo de manhã. A Menina sai pra comprar jornal com sua irmã 
  Caçula. A Caçula pergunta ao olhar para um homem, uma mulher e 
  um bebê no carrinho: 
  - A família deles é normal, né? 
  - É isso o que você quer? Uma família normal? Então 
  saia dessa família, que é menos um pra encher o saco! 
  Como pôde responder a Caçula assim? Um dia ela mesma já 
  quis a mesma coisa. É que a Menina às vezes se esquece que a Caçula 
  só agora tem as idades que ela já teve há muito tempo. 
  Às vezes se esquece que a Caçula fora criada diferente dela e 
  que só agora ela começa a se defrontar com o que sofreu quando 
  era muito, muito pequena. 
  A Menina é e sempre será a filha primogênita, a neta primogênita. 
  A mais velha que tem que cuidar da Caçula e dos primos. Cuidar para que 
  os pais das crianças não pirem a cabeça deles como a dela. 
  Tão pirada, tão perdida. Com coragem até demais. Às 
  vezes lembranças, culpas, medos... Já não é mais 
  tão Menina. Mas ela ainda tem medo do escuro. 
"Ele me levou pro escuro, eu tinha 15 anos". A Nem-Tão-Menina 
  estava fazendo o que sabia fazer e sentindo o que sabia sentir. Ela quis mais 
  do que podia entender. E resolveu experimentar pra ver o que era. "Te levo 
  prum lugar mais calmo. A casa de um amigo meu." Ao ouvir isso pensou em 
  cama macia e cheirosa. "Ele me comeu no quintal. Ele me levou pro escuro 
  e não quis nem saber o que eu sabia fazer." Mesmo assim às 
  cegas, de um jeito de outro, foi do jeito dela. Ela foi por cima dele, depois 
  ele por cima dela. Então a Nem-Tão-Menina finalmente estava fazendo 
  e era bom de sentir. Depois ele saiu de dentro dela, vestiram as roupas e ele 
  a limpou da terra, do suor, e do sangue. E como era pouco sangue, nem reparou 
  que era a primeira vez dela. Aí cada um foi prum lado. Foi tudo normal. 
  Normal demais. Como se ela tivesse feito isso a vida inteira. Estar lá 
  era muito fácil. Sentir o bom da coisa também foi fácil. 
  Mas então já tinha acabado. E o caminho de volta era escuro. Depois 
  desse dia, ela viu que o que fazia falta era outra coisa. 
Naquela construção, a turma reunida e a Nem-Tão-Menina 
  chegava junto com umas amigas. Tinham feito uma vaquinha pra comprar a droga. 
  Estavam ali eles e o baseado. No escuro daquela construção a Nem-Tão-Menina 
  sentia o cheiro que fazia tudo parecer mais parecido com o que era a vida dela. 
  Sentados, deitados, esculachados no chão. O Veterano acendia, puxava 
  e soltava, passava pro próximo à esquerda, depois dos piás, 
  ela foi a primeira a pegar no cigarro. Só de pegar naquele baseadinho, 
  ela já começava a sentir uma familiaridade. Fumaça sendo 
  puxada pra dentro dela. "Prende, prende o máximo que você 
  puder, senão não dá barato, depois solta!" A Nem-Tão-Menina 
  pôde ver na cara do Veterano a expressão de desolação 
  "Vocês que tão aí na primeira vez! Não entra 
  nessa vida! Não entra nessa vida, não! Que você não 
  consegue sair!" Foi tão sincero! Passou mais uma vez, mais outra. 
  "Vamo embora?". A Nem-Tão-Menina e as amigas saíram 
  dali. Desceram a construção. E já no meio da rua, cada 
  uma correu pra um lado, e uma terceira vomitava no chão. A Nem-Tão-Menina 
  saiu correndo de volta pra festa da Igreja. Não se controlava, não 
  controlava nada! As mãos tremiam, as caras, as vozes, as pessoas pareciam 
  apontar pra ela. Era real? Era loucura? "Não venha sozinha pra casa!" 
  Mas os passos iam sozinhos. Ela queria voltar pra casa. "Com quem eu vou 
  voltar se não tenho ninguém?". A casa era logo ali. 
  Chegou em casa, a Avó perguntava: "Como foi de festa?" Não 
  controlava nada, até sua própria casa parecia diferente, ainda 
  tinha que falar com a Avó. "Inventou qualquer coisa pra chorar de 
  emoção, foi pro quarto, pro escuro, e ainda que fechasse os olhos, 
  ainda que os deixasse abertos via sempre as mesmas coisas, imagens estranhas, 
  desenhos, computação gráfica, ela poderia ser como um computador. 
  Mas o vento falava com ela. Uma repetida palavra que não se lembra mais... 
  Queria dormir, mas enfrentou as maluquices a noite toda, até que dormira 
  e acordara no outro dia. 
De novo no escuro do agora, é Mulher-Amarga. Mais um amor desfeito numa 
  vida toda cheia de desilusões. Tudo o que sabia parece tão pequeno. 
  Depois de dar passos no escuro não sabe mais o que esperar. Não 
  sabe mais como o fazer. O medo do escuro a invade. Traz lembranças, traz 
  a solidão. O medo do escuro persiste. Traz incertezas e um imenso vazio. 
  
  Um piano desafinado chora junto com as lágrimas. As cordas, as mãos 
  desacostumadas, as teclas amareladas. Tudo chora de medo do que virá. 
  Medo do escuro final.