A Garganta da Serpente
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A breve história de um homem

(Israel Silva de Alcantara)

A parede com a tinta envelhecida e descascada, segurava o prego no qual haviam pendurado um pôster de Che Guevara, que de tanto estar ali, já estava esmaecido e engordurado, com uma tênue camada de poeira a lhe encobrir a face. Em um canto escuro, via-se uma velha geladeira, com a pintura estufada em alguns pontos a denotar que a ferrugem já a carcomia por baixo da tinta, e em cima dela, como se estivesse observando todo aquele triste cenário, havia uma imagem de São Jorge, também com alguns pequenos pontos esbranquiçados a demonstrar o gesso com o qual fora confeccionado, e a sua frente, uma vela gorda e bastante queimada que estava acesa há alguns dias, ao lado de um copo liso com água. Um velho e muito enegrecido fogão, sobre o qual havia panelas sujas de restos de comida. Este lado era o que se podia chamar de cozinha.

Uma cama de casal, com pedaços de lençóis amarfanhados a um outro canto, uma cômoda com gavetas quebradas em outro e sobre ela uma TV de 20 polegadas que era na realidade o único bem valioso daquela casa, um velho guarda-roupa com portas que teimavam em não fechar, um pequeno berço relativamente novo, que destoava daquela mobília envelhecida e meio acabada. E esta era a casa daquele que jazia aos pés da cama, tomado pelo álcool e um coquetel de drogas que insistiam em manter o seu corpo inerte no chão.

Não vivia sozinho nesta pocilga fétida, construída com algumas madeiras e folhas de zinco, estava só naquele momento, pois sua companheira de infortúnio tivera que fugir as pressas, com a filha ao colo, de sua fúria insana, na madrugada fria, para evitar as agressões que geralmente aconteciam nestas ocasiões.

O corpo não respondia, mas sua mente agia, ou tentava reagir, tentando de todas as formas ordenar pensamentos, para tentar compreender o que o tinha levado a tais circunstâncias, tentava se lembrar onde estava o dinheiro que havia ganhado na obra que tão arduamente trabalhara durante toda aquela semana, e então se lembrou que também ganhara algum dinheiro no carteado... Jogo de ronda... Girara dinheiro à vontade na mesa de jogo naquela noite, e entre umas cervejas e algumas trilhas de cocaína, uns tragos de maconha...Ah!!! Agora lembrava, mandara aquele neguinho risonho que ele achava espertinho, descer no mercado 24 horas lá no asfalto, para comprar aquela garrafa de Whisky que ele havia visto o patrão bacana bebendo, só que o safado do neguinho trouxe uma bebida barata e passou em algum McDonald's para comer aqueles sanduíches e as batatas fritas que ele achava completamente sem gosto e não entendia como é que o neguinho podia gostar.

Lembrou também das mulheres que estavam lá e ficavam na sua aba, só para cheirar umas trilhas, e para tomar as bebidas que ele comprava com o dinheiro que estava ganhando no jogo de ronda, porque na realidade elas se insinuavam, mas não estavam a fim de transar com ele, afinal ele cheirava umas trilhas de cocaína, fumava uns baseados, mas...Ele era trabalhador... É verdade, elas não saiam com manés que carregavam marmitas.Queriam sair com os caras que portavam submetralhadoras e pistolas automáticas, o pessoal do "bicho".

E agora como iria fazer para alimentar a sua mulher e comprar o leite para a mamadeira do nenê?

Tinha hora que queria que a mulher sumisse de sua vida...Ficava regulando a vida dele, tentando controlar cada passo que queria dar...Mas, outras vezes sentia até pena dela, pois a tinha engravidado, e por causa disto ela tivera que sair do trabalho que tinha na casa daquela madame que a trouxera do norte, lhe tratava por afilhada, lhe dava de tudo e ainda a deixava estudar no curso noturno, que ela faltava para irem namorar na areia da praia.

Ele sentia que precisava reagir, precisava comandar os seus nervos e músculos para tirar seu corpo do meio daquele vômito fétido, no meio do qual caíra quando tentava discutir e bater na pobre coitada que cedo ou tarde voltaria para novamente lhe dizer que o amava. Mas o corpo não o respeitava, ele não controlava os seus movimentos, e seu corpo se movimentava como se ele fosse uma lagarta encolhendo e esticando e também serpenteava no meio daquela gosma que envolvia seu corpo negro e semidesnudo.

Quanto tempo havia passado ali?Não fazia a menor ideia, aliás, ele não sabia, mas, não mais estava ali, onde caíra e não mais levantara.

Já o haviam levado, seu corpo jazia inerte, sobre um leito no CTI de um hospital público, onde dera entrada em coma por overdose, e seu corpo sobrevivia ligado a alguns aparelhos que ele nem sabia que existiam...

Mas, sua mente ainda lutava, continuava viva e trabalhando, pensando na marmita que sua mulher iria preparar para ele levar para a obra e que não poderia ter uma coxa de galinha, ou um bifinho, daqueles que só ela sabia preparar e que ele não sabe como, ficava tão macio quanto os que havia comido escondido na casa da madame em que sua mulher havia trabalhado.E o leite do nenê? Será que o dono da vendinha faria fiado para ele naquela semana? Afinal, ele sempre pagava direito...

E o corpo, já não tão inerte, respondia timidamente, com alguns movimentos (involuntários, segundo o médico) que ele continuava se esforçando para faze-los, pois sua mente ainda lutava para reagir...

E ao mesmo tempo em que tentava movimentar aquele corpo paralisado pelo excesso cometido numa noite em que a sorte no jogo lhe acompanhara durante todo o tempo, lembrava de cada instante de sua miserável vida. Sua infância passada por entre as vielas daquele morro em que fora criado, cada instante daqueles anos foi sendo repassado em sua memória, trazendo de volta a dor de ver o pai ser assassinado pelas balas que lhe foram cravados no corpo, na disputa por ponto de venda de drogas, pôde lembrar de seu irmão e da sua irmã, ele cooptados pelo tráfico e ela pela prostituição. Da mãe lembrava muito pouco, só sabia que ela tinha fugido com um marinheiro estrangeiro que conhecera no porto, e que lhe prometera uma vida melhor do outro lado do mundo e que nunca sequer havia mandado uma carta...Mas, também tinha boas lembranças, a avó que lhe trazia balas gostosas, quando voltada das casas das madames em que ia entregar as roupas que lavava e passava e ainda lhe dava algumas moedinhas com as quais ele comprava pipa e bolinhas de gude, os anos em que fora a escola, não que fosse bom aluno, mas as professoras lhe tratavam com carinho, os jogos de futebol com os amigos no campinho rala-côco lá no alto do morro, os amigos que ficaram desta época, os que ficaram vivos e os que morreram no dia a dia violento daquele lugar.

Mas, ele tinha que continuar a se esforçar para movimentar cada pedaço do corpo que ainda não lhe respondia satisfatóriamente, queria levantar dali (ainda achava que estava caído no meio do vômito no chão do seu barraco), e já arrependido ir procurar a sua mulher e traze-la com a filha para casa, pedindo seu perdão, para o comportamento errado que tivera.

Ele queria ter coragem para mudar sua vida, afinal os caras que trabalhavam para o tráfico estavam sempre com dinheiro no bolso, vestiam roupas legais, de marcas famosas, andavam em carros legais, geralmente roubados, mas não ligavam, porque a toda hora trocavam, e aí poderia comprar um barraco maneiro para a mulher que ele tinha desgraçado a vida quando lhe tirara da casa da madame. E daria para aquela criança as melhores fraldas descartáveis, em lugar daquelas fraldinhas de pano que tinham que ser lavadas a cada vez que a menina fazia suas necessidades, e também roupinhas compradas na C&A daquele shopping legal, ao invés de ter que vesti-la com as roupinhas já usadas que a madame ainda mandava, dos filhos de outras mulheres que ela juntava, e mandava para os mais pobres lá do morro.Mas também tinha o outro lado da moeda, e se morresse crivado de balas como havia acontecido com seu pai e seu irmão mais velho?

Para onde iriam sua mulher e sua filha, se algo de ruim acontecesse com ele? A mulher era tão nova e indefesa, naquele lugar que ela só foi morar porque ele a levou, e ainda a prometera passear com ela no norte para que a mãe dela o conhecesse e a filha que tinha nascido. Não, ele não tinha coragem suficiente para viver daquela forma.

Ele precisava sair dali, movimentar cada pedaço daquele corpo que teimava em não corresponder aos seus comandos, precisava cumprir as promessas que fizera aquela mulher que ele tinha vergonha de dizer que amava, e aquela criança que nascera deste amor, mas que ele pouco dava carinho, pois não tinha muito "jeito" com crianças. Estava decidido, levantaria dali e faria tudo diferente.

Diria a mulher que não usaria mais drogas, não tomaria mais do que algumas cervejinhas que manteria na geladeira de casa, e fariam mesmo aquela viagem para a mãe dela conhecer a criança. Teria que trabalhar bastante, pois como ajudante de pedreiro não ganhava muito, mas ele ia aceitar o emprego numa construtora que seu primo trabalhava, pois lá assinariam sua carteira, e se ele se esforçasse poderia ser promovido a pedreiro, pois ele já sabia levantar parede, bem alinhada até, e sabia também rebocar, fazia uma parede ficar certinha e lisinha. E se conseguissem uma vaga para a criança na creche da comunidade, poderiam, com a mulher trabalhando, fazendo faxina como diarista ou como empregada fixa na casa de uma madame, ter a casinha que sempre sonharam. O terreno aonde seu barraco se apoiava, não era grande, mas daria para fazer um sobradinho, e aí então teriam móveis novos, comprados em 15 vezes nas Casas Bahia.

A casa teria de tudo, micro-ondas, vídeo cassete ou DVD, jogo de sofá na sala geladeira duplex frost free, fogão novo, máquina de lavar, televisão na sala e outra no quarto, teriam até telefone para a mulher poder ligar para as amigas e para a mãe no norte. A filha teria seu próprio quarto, todo bonitinho, com moveis de quarto de criança, tudo cor-de-rosa, bem... a sua mulher saberia como enfeitar para ficar bonito como era o quarto da filha da madame aonde a mulher havia trabalhado

Iriam às noites de sábado no forró que a mulher gostava para dançar, ou então ao pagode, ele tomaria uma ou duas cervejinhas, nunca mais do que isto, pois seria o homem do qual a mulher se orgulharia. Aos domingos pela manhã iriam à praia, e quando voltassem comprariam um daqueles frangos que ficavam rodando naquelas maquinas na porta das padarias, e que cheiravam longe, e assim seriam uma família normal, sem aquelas situações que ele fazia sua mulher passar hoje e que agora o envergonhavam e a ela perante as vizinhas.

Nas férias, iriam ao norte para conhecer a sogra e para que ela conhecesse a neta, e seria um novo homem, que a mulher faria questão de apresentá-lo como marido. Ah! Sim, também casaria de papel passado, tudo preto no branco, para dar seu nome a mulher, para que todo mundo soubesse que ela não era qualquer uma, seria de fato uma senhora casada.

E de tanto pensar e tentar se mexer foi ficando cansado e sentiu o sono se aproximando, e deixou-se levar para o mundo dos sonhos.

Então o médico entrou na sala de espera e comunicou aquela mulher que aguardava ansiosa com uma criança ao colo, que o paciente que estava em coma por overdose de drogas havia acabado de falecer.

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