A Garganta da Serpente
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A Dialética do Casal

(Inaldo Tenório de Moura Cavalcanti)

Casados há quinze anos, os dois no segundo casamento: ele, um professor aposentado na cadeira de literatura internacional em uma Universidade Pública de renome, perto de completar setenta anos; ela, na ativa, gerenciando uma pasta em um banco nacional, com doutorado em economia, tem quarenta e cinco anos.

Depois de um dia pesado de trabalho para ela, sem que tenha havido muito diálogo depois do seu regresso, especialmente no que se refere a seu trabalho. Ele, na verdade, nunca gostou de discutir sobre economia. Foram se deitar: ele de pijama, calça e camisa; ela com uma camisola de seda verde-água.

Sem muita conversa, ele vai acariciá-la

- Hoje não quero sexo.

- Não quer sexo ou não me quer?

- Como lhe aprouver, aceite. O resultado, para você, será o mesmo.

- Você tem outro?

- Tenho vários que teimam em dormir comigo. Eu não lhes quero, mas não consigo me livrar deles.

Inicialmente ele toma um susto, mas logo percebe que não é de homem que ela está falando.

- Estes também me perseguem, mas sempre encontram a porta fechada.

- A única coisa para a qual você não fecha a porta é o sexo. Depois dizem que os velhos...

- Eu pensei que você tivesse se casado comigo por eu ser um homem, não que estivesse pensando que fosse uma cadeira de balanço.

Ela fica irritada e levanta-se da cama

- Você não sabe separar as coisas. Todas as conversas têm que terminar na cama para você.

- Não necessariamente. Você sabe que eu sou eclético... (ele está sentado)

- E sua comicidade me dá vontade de vomitar.

- Faça-o, antes que morra asfixiada de infelicidade.

- Desculpe-me.

- Não é todo dia que estou querendo fazer sexo. Antes fosse. Porém, isto não deixa de querer estar com você.

- Desculpe-me. Meu dia não foi dos melhores.

- Seu mau dia vai dormir na sua cama? Você quer que eu vá dormir no outro quarto?

Diz seriamente e se levanta com o travesseiro.

- Você tem algum livro que eu possa ler? Não estou com sono.

- Que gênero literário você prefere?

- Conto.

- Não tenho nada de novo. Todos que tenho você já conhece.

- Eu queria algo leve.

- Leia a Bíblia. Os Salmos são pura poesia.

- É verdade. Mas fica para depois. Agora que o diálogo retornou, eu quero sexo.

- Eu vou ler Sartre.

Diz e vai procurá-lo na estante.

- Mas você estava excitado!

- Por isso mesmo.

- Existencialismo... Sartre faz qualquer um brochar.

- É um direito. Sua complexidade aguça a inteligência. Nem tudo pode ficar firme.

- Depois do dia que tive, só o que me faltava era dormir com a literatura.

- Durma com a religião... pode ser um bom sonífero.

- Não durmo com gênero literário, nem com credo religioso, nem com música... mas sem memória, sem lembranças, sem meditação. Assim é que vem meu sono.

- Você precisa não existir para dormir. O pós-sexo lhe dar essa sensação?

Como não obteve resposta, ela apenas sentiu que não havia colocado o ponto final, ele continuou

- Por isso você dorme tão rápido depois que transamos. É como o macho da tarântula que foge rapidamente para não ser devorado pela fêmea.

- Nós estamos casados há tanto tempo e eu não sabia que você era tão prolixo no relacionamento conjugal. Esse meu comportamento é espontâneo, não é uma filosofia; não é invenção de nenhum analista, não tem nada a ver com religião.

Respirou profundamente.

- Pronto! Você expulsou o mau dia da minha cama; agora assuma o lugar dele.

- É uma fuga... ou uma descoberta?

- Não tente encontrar explicações. O sexo também não requer reflexões. Enquanto há amor, o fluxo do prazer é muito mais completo. Que tal trocar Sartre por Sade?

- É um pecado mortal. Eu quero chegar vivo aos noventa. Pensei um poema de Rilke.

Pega um livro que está sobre a escrivaninha, abre-o e começa a declamar enquanto ela vai tirando sua roupa: "Diante de ti levantamos imagens, como paredes..." Ela tira sua calça, ele a ajuda automaticamente, sem desviar os olhos da leitura. Tira sua camisa... "de modo que ao redor de ti mil muros crescem:" Ele já está nu e ela puxando-o por uma mão enquanto a outra segura o livro, terminando o poema: "e assim é que velam nossas mãos devotas/sempre que a ti se abrem nossos corações". E os dois caem na cama a se beijarem, enquanto ele vai tirando a roupa dela e, nus, se entregam a uma longa cena de amor. Só que desta vez ela não dormiu: suados, foram tomar banho juntos e se a acariciaram por um longo tempo.

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