Se eu conversasse com os deuses tenho certeza de que seria tudo bem mais fácil
porque eu falaria várias línguas, todas as línguas.
Mas, no momento, reconstituo a única que não está escrita
em memória nenhuma, a de gosto de nada e vazia de gestos com bola estranhas
em cima de vogais rudes.
Alguém me explicaria coisa por coisa: as chaves, os remédios,
as toalhinhas de papel dependuradas no corrimão, as fivelas brancas e
as vermelhas, os sapatos de couro e as revistas importadas.
Nenhuma pista e os monólogos iam fluindo com deuses imaginários
desses que a gente pensa que inventa, como se furasse a imaginação
do espírito com uma agulha. Porque inventar entidades a gente não
inventa, a gente pensa numa e ela acontece, não é assim? É
assim sim. Tudo que a gente pensa é. Estão aí de prova
os arquétipos e seus brinquedos inventivos como a psicanálise
e o esoterismo que para dizer a verdade são a mesma coisa no fundo no
fundo tem um pouco de alucinação dos dois lados revestida de lucidez
e velas espalhadas pelos cantos e imagens e cheiro de flores.
O problema é que a comunicação andava falhando ultimamente
e eu sei por quê. Sei exatamente por quê. É porque ela passou
a andar com uma cópia a mais da chave do apartamento na bolsa, enquanto
suspira palavras estranhas, grunhidos resmungos.
Distraída, esqueceu essa cópia sobre a mesa da cozinha, perto
de duas cascas de banana. Ela, que até então comia uma
banana por dia, a fruta mais brasileira.
Sei por quê começou a me perguntar sobre analgésicos, antiestamínicos
antidepressivos e ácidos em geral; paralisias do sono, os transtornos
bipolares, as mudanças bruscas de peso e de humor, as ideias suicidas,
os inibidores e os estimulantes.
Sei dos antagonistas e dos protagonistas. Sei dos espasmos e dos vômitos
de madrugada. Sei dos revertérios e das sobras de roupas trazidas da
rua, catadas nas bilheterias dos bares e lanchonetes vips das livrarias, das
galerias, das exposições de arte, dos recitais, dos teatros e
dos saraus sem graça que ela deu de frequentar quando começou
a sair com a mulher europeia .
Toda a agência de turismo sabia de tudo. As coleguinhas de trabalho, os
bichinhas.
Ela achou melhor se apaixonar por senhoras europeias nada lúcidas,
pelo menos, mais espertas que eu de alguma forma e que gostam muito de gastar
dinheiro à toa em São Paulo.
Assim que ela apareceu com as fivelinhas do pecado eu percebi a primeira traição.
Ela é jovem, mas daquelas que não sabem esconder nada, diferente
de como fazem as mulheres da minha idade em que erros são charmes.
Quarenta e sete. Ela tem vinte e três.
Vai ver é por isso que eu queria conversar com os deuses talvez as Parcas,
as que sabem de tudo e não sabem de nada.
Depois da fivelinha, também deixada por aí sem que se saiba ao
certo se por amor ou honestidade, vieram as revistas mostrando a Europa, com
as palavras escritas em línguas que ela nem imaginava que existiam.
Gostava de chá de morango. Então, na semana passada, escorregou
com a saliva a notícia de que havia bebido sua primeira dose de uísque.
Sem mais nem menos disse assim: tomei uísque. E ficou esperando a minha
reação. Eu tive medo de saber o que dizer por causa da coragem
da resposta.
Eu falei onde bebê?
E foi então que o poste, com cara de uísque, com cara de gente,
com cara de gente que bebe muito uísque e mistura remédios no
meio, ela, a estrangeira, a que escreve certo por linhas tortas, a que não
se incomoda com o sol nem com o sal porque usa meias na praia, nem com o barulho
das crianças porque usa fones de ouvido, que adora a cidade porque nunca
foi assaltada, que joga comida aos pombos na Liberdade, que não sabe
falar português direito, levantou seu semblante pálido como se
fosse me benzer e disse hejdå bananer. Ela veio me buscar Cosete.
Era hora de dizer adeus à Bebê.
Antes que eu estendesse a mão para cumprimentá-la, ela apontou
para a mesa, mostrou as cascas e as chaves, não sorriu, que seria muito
para a minha cabeça. Saíram com a Cloé me dando um beijo
na testa.
Uma vida de aventuras nunca acaba bem.