A Garganta da Serpente
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Eimeé e Jaguar

(Janaína Behling)

Deveria sempre se sentar nas primeiras fileiras dos auditórios. Uma miopia mal resolvida a impedia de escolher o fundão, que tanto dava conforto pra tossir e esfregar o nariz. Grudada nas cadeiras das primeiras fileiras, esfregava a cara era na tela.

A sessão estava marcada para as catorze horas. Por motivo de falta de energia nas galerias do cine Gemini e boa parte da Avenida Paulista, a exibição seria adiada para o dia seguinte com trocas de ingresso. Com a boca meio seca de raiva, acabou ficando sem jeito e sem vontade e sem nada. Perdeu um tempo fechando uns botões do casaco e saiu com ar de quem entende tudo direitinho, apesar da vontade de reclamar da porra do sistema de iluminação do prédio, da prefeitura, da constituição e da puta que pariu.

Foi aí que a gente se conheceu ela disse.

Foi quando eu saí do cinema e um ripe me ofereceu uns colares e eu me assustei com a rua toda pensando no escuro sem cinema ela disse, gritando puta que pariu no meu inconsciente.

Era verdade, porque desde a hora que todos saíram do cinema todas as coisas não pareceram estranhas, inclusive ouvir gritos inconscientes. A certeza das coisas nunca está nas evidências. Mas ela era míope.

Tomaríamos um ou dois cafés. Talvez três. Não. Muito. Papo de quem não tem assunto espera sempre ter mais tempo.

O fato é que eu tinha esquecido como se paquera. Casamento é assim a gente sai se esquecendo de tudo. Alguns se sentem culpados por lembrar. E a gente estava se paquerando não sei exatamente por qual razão. Deve ser por causa de uns olhos verdes, seus croquis de arquiteta perdida no cinema da tarde, de onde você vem?

Eu venho da escola. E você?

Do meu escritório. Era arquiteta mesmo. Um cheiro de assunto, queimado na rua repleta de gasolina e batatinha frita. Ainda não entendi por quê lhe ofereci o café que ela aceitou.

Nenhuma das duas tinha vida antes e depois da morte. Só aquele momento de tomar café na rua e conversar, sentindo cheiro só de café. E rir. E olhar. Silêncios entre uma coisa e outra.

Gente descontida que se diz capaz de recuperar suas mazelas em jogos escusos como esses são a cara da coragem. O que não preenche é passado, isopor do tempo. Naquele momento, depois de não ver filme nenhum eu cairia no sono que a gente dormisse. Minha vida estava por um fio entre uma cafeteria e dois pontos de ônibus.

No dia seguinte deveríamos voltar à Gemini para ver Eimeé e Jaguar, aquele filme alemão que nos uniu.

(6/12/2008)

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