A Garganta da Serpente
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Conto de Natal

(JB Alencastro)

Acordei cedo, como todos os dias. Hoje não trabalho. É véspera de Natal. Fui correr, depois comprar umas comidas. É o que me coube na Ceia. Desta feita vai ser na minha casa. Pela primeira vez, preciso caprichar. Tanto meu pai como minha mãe gostam desta data, mas estou pensando nas crianças. Sem elas não há sentido.

A esposa se divide em mil. Leitoa enorme para assar. Não cabe no nosso forno, pedi para o seu Zé da padaria. Uva Itália ou da tradicional? Levei ambas. Passas também. Decidi comprar um monte de frutas. Já está na hora do Natal ter uma cara mais brasileira, tropical. Aquele tantão de comida gordurosa é coisa do hemisfério norte. Mas como não ferir meus velhos pais, deixando de lado as longínquas tradições em que eles foram criados? Desesperei e fui adquirindo nozes, castanhas, avelãs, panetone, e tudo que eu particularmente não como. Só para agradar. Como as coisas estão caras... Gente que vai uma vez na vida e outra na morte em supermercado -como eu- estranha.

Presentes embrulhados debaixo da árvore, almoço chué. Já perceberam como o almoço do dia 24 é sem graça? Sentamos por obrigação. Meus dois filhos se perguntam sobre o que vão ganhar. Saindo da mesmice de escolher o presente, aqui ninguém escolhe nada, é surpresa. Mas eu reservei uma para todo mundo, vou contar. Aluguei uma fantasia de Papai Noel completa, com barriga falsa, bota e até o cajado. Aproveitando aquele que seria meu único momento de paz, deitei-me por quinze minutos para o tradicional e breve cochilo. Acho que no décimo quarto minuto, faltando aquele tantinho de sono, o telefone:

- Alô, JB Alencastro.
- Oi, doutor João, feliz Natal.

Mais uma paciente me desejando boas festas. Educadamente respondi.

- Parabéns a você e a toda sua família. E os gêmeos, como vão? Daqui a mais ou menos um mês, vamos ver a carinha deles, eihn?
- É sobre isso que eu queria lhe dizer. Estou sentindo umas dorezinhas. Sei que é véspera de Natal, mas o senhor não poderia dar uma olhada?

A cada quatro telefonemas que recebo, um é pertinente. Destes, geralmente me desloco para atender pessoalmente dois. E somente um resulta em uma internação. Mas eu sempre atendo, vou e examino. Porém, de acordo com minha estatística; não há de ser nada. Na volta pego a encomenda.

Apenas pródromos de trabalho de parto, um ensaio. Como eu disse. Passei um remédio para as cólicas discretas e fui-me. Não havia dilatação. Os coraçõezinhos estavam ótimos. Pressão materna boa. Só a avó que a acompanhava me disse, até mais tarde doutor. E isso ficou.

Rapidamente esqueci-me do fato. Havia muito que arrumar. Papai encomendou rabanada. Para ele Natal sem rabanada não era Natal. Fui pegar o arroz que mamãe plantou, para enfeitar a mesa. Busquei a toalha vermelha com motivos natalinos. Dei uma conferida na árvore. Nesta época ainda não havia cachorro no meu apartamento, eu não tinha capitulado .

Quem iria buscar a tia Eni? Ela não gosta de chegar tarde. Quase que peguei a minha moto e dois capacetes, para ir. Mas seria muita implicância. Fui de carro, mesmo. Sempre as tias -principalmente as solteiras- colocam defeito nas arrumações. Mas desta vez as regras seriam seguidas à risca. Já eram quase sete da noite. Apesar do horário de verão, escurecia. Céu chuvoso. Mas desde quando não chove no Natal? Deu dia 24/12 é batata, o céu acinzenta, e de noite; chuva.

Estava lanchando, o que é ótima estratégia para aguentar até meia-noite. A fome só aumenta e podemos nos entregar sem culpa a lauta refeição. Aí, o celular:

- Dr. João?
- Faaaaala mãezinha!
- Não é a mãe, é a vovó. Acho que vai nascer.

Por que será que quase sempre o nosso principal interlocutor é a mãe da paciente, o marido, a avó e nunca a própria? Vai saber... Mistérios que a obstetrícia ainda não desvendou. Sem titubear um só segundo, respondi.

- Vamos para o hospital agora, para eu examinar novamente.

Se fosse uma real emergência, ela iria. Se não, pediria para ver amanhã de manhã. Ou então eu a examinaria e tranquilizava a família. De um modo ou de outro, tudo ficaria bem. E ainda completei.

- Deixa-me falar um pouquinho com ela.
- Espera que ela está no banheiro.
- Olá amiga, tudo beleza?
- Não, doutor. A barriga está endurecendo, umas duas vezes em cada dez minutos.

Bom, isso era sinal de que algo realmente estava acontecendo. Sinal não, sintoma. Separei a roupa no carro e fui. Lá chegando, qual não foi o meu espanto ao ver que o primeiro gemelar estava baixo, encaixado, cefálico (de cabeça) e as contrações, firmes. Internei. Fiz os cálculos. Eram oito horas, cinco centímetros de dilatação, um centímetro por hora, nasceria uma da manhã. Tranquilo. Ainda iria demorar mais, porque era o primeiro filho. O Natal das crianças estava salvo.

Cheguei em casa meio esbaforido pela emergência. Já levei uma bronca:

- Poxa, nem no Natal esse povo te larga, né? Porque não foi ser escritor, como sempre quis? Ou se escolheu Medicina, fazia Cirurgia Plástica, que dá dinheiro e não tem emergência...

Nem respondi. Dentro do meu armário estavam meus grandes trunfos. Os presentes-surpresa. Seria uma grande noite. Eu havia me mudado recentemente para este apartamento. Enorme. No mesmo prédio dos meus pais. Papai teve um derrame há dois anos e ficou hemiplégico, a metade esquerda do corpo paralisada (eu tenho que parar de escrever do jeito científico, se não ninguém entende, mania de médico-professor...). Foi a melhor maneira que encontrei de ficar mais perto dele. Apesar dos meus ganhos não serem compatíveis com o luxo do local, valia o sacrifício. Aliás, esta palavra -sacrifício- é uma das que mais estamos acostumados. Médico perdeu o status financeiro e um pouco do respeito da população, mas trabalho, só aumentou...

Tomei um banho rápido, penteei o cabelo para trás e prendi firme. Mamãe não gosta que
eu use rabo-de-cavalo, acha que não condiz com um médico. Fazer o quê? Sou contra os estereótipos e faço o que quero. Até contrariar a mãe em dia de Natal... Contudo exagerei um pouco no perfume que ela adora. Filho cheiroso compensa.

Os convidados foram chegando. A sogra, sogrão, cunhada, cunhado, concunhado, e as crianças. Meu alvo principal. Além do meu irmão e sua família. Olhei todos de relance. Eram bonitos e estavam bem vestidos. Legal ter uma família assim. Respirei fundo. As dez eu teria que reexaminar a paciente. Na volta eu faria a grande cena.

Conversas sobre o clima, alguns tomando vinho -detesto cerveja- os antigos relembrando natais passados. Inúmeros telefonemas. Senti-me muitíssimo bem em poder receber todos aqui. Fui colocar a roupa de Papai Noel. Retirei qualquer detalhe que pudesse me identificar, correntinha, relógio. O carro estava no posto, lavado, do outro lado da rua. Tudo fora cuidadosamente planejado. Eu atravessaria a rua, as luzes da sala apagadas e a meninada vendo-me chegar a pé, com o indefectível saco nas costas. Não precisa nem dizer que o característico soar telefônico me alertou. Pode tocar mil vezes, mas quando é importante; nós sabemos.

- Doutor João é a enfermeira do posto um. A paciente disse que está apertando.
- Pode deixar que daqui a pouco estarei aí.

Eu travestido de bom velhinho. Com o aparelho na mão. Carros parando. Mãozinhas pequenas acenando. Minha família inteira na sacada. Filhos gritando e chamando com fé. Atravesso a rua ou não? Deixo todos na mão e vou fazer o parto? Meu coração dispara e tomo a decisão habitual, vou para a maternidade. O dever me chama. Aí o infeliz trina novamente.

- Doutor João sou eu, seu residente. Estou aqui de plantão e examinei a paciente do senhor. Está sete centímetros e os fetos estão bem. Não precisa vir. Quando for a hora eu te chamo. Estou do lado dela, já expliquei tudinho. Ela espera o senhor. Quero ver um parto gemelar feito pelo senhor. É normal, né? Pode ficar tranquilo. Feliz Natal!
- É normal, está tudo normal. Já, já estou chegando.

Suspirei aliviado. E pequena lágrima rolou. Ainda bem que Papai Noel não usa maquiagem, porque senão ia borrar tudo. É bom dar aulas e confiar naqueles que ensinou. Restava-me umas duas ou três horas, mas nunca se sabe... Dei meia volta em direção ao meu prédio e a passos lentos -não se esqueçam de que sou idoso- fui sendo seguido por uma pequena multidão que se acercou. Só ouvia as perguntas emocionadas:

- Papai Noel entra no meu carro, papai te leva lá em casa, tem ceia gostosa.
- Papai Noel é você mesmo? Cadê as renas?
- Por que você está a pé?
- Sobe aqui! Sobe aqui!

Nesta última frase identifiquei bem as vozes de meus filhos. Entrei na sala em crepúsculo noturno. Tremeluziam ao fundo as pequenas lâmpadas da árvore. Todos estavam belíssimos. Eram príncipes. Pêndulos de bolas vermelhas. Símbolos de outrora. Dádivas de Deus.

Fez-se silêncio. Minha cunhada pediu para que todos se calassem, mas nem foi preciso. A emoção penetrou fundo. Então falei:

- João Felipe, meu filho.

Meu sobrinho, já grandinho, caminhou ainda em dúvida em minha direção e recebeu seu presente. Minha voz estava rouca. Grave. Estendi as sentenças. Parecia mesmo o dito cujo. Eu era a personificação do Natal, para a moçadinha.

- João Mário, meu filho.

Este veio mais devagar do que quando subi as escadas. Seu olhar era de estupefação. Abriu o presente ali mesmo. Era uma camisa do exército, igual ao que o pai usa para dormir a séculos. Estava escrito tenente Alencastro. Uma fivela dourada e um cinto verde-oliva. Ele não acreditou. Mas como estavam em seus braços aqueles presentes diferentes e maravilhosos, recuou extasiado.

- Maria Clara, minha filha.

Ainda muito miúda e serelepe, em sua loirice tropeçou e a aparei. Abracei-a apertado. Entreguei-lhe solenemente uma caixinha. Era de laca chinesa, vermelha. Dentro, uma bailarina. Rosa. Como toda a roupa da minha filha.

Tomado de júbilo dei a risada clássica.

- Oh! Oh! Oh!
- Feliz Natal a todos!

Subitamente João Mário falou:

- Seus olhos são iguais aos do meu pai.
- E o cheiro também, completou Maria Clara.
- Cadê o papai?


Disseram ambos, em uníssono.

Antes que eu pudesse responder. O celular piou doído em meu bolso. Seria
desmascarado? Um aparato tecnológico derrubaria um dos mais belos mitos que conheço? Então num rompante maravilhoso, eu falei:

- Oh, oh, oh. João Baptista de Alencastro?
- Doutor João vem, tá nascendo.

- Olha só! Somente o papai para ter o telefone celular do Papai Noel...

Falou João Mário, todo orgulhoso.

- Ele disse que não pode, está fazendo um parto, é gêmeos. Eu encontrei -o antes
de sair e ele me deu um abraço.

Silêncio. Não esperei nada. Virei-me e acenei, como eu via nos filmes. Saí em câmera lenta. Por um breve instante vi meu pai levantar-se da cadeira de rodas e piscar para mim com o polegar levantado. Joia.

Desci as escadas em desabalada carreira. Liguei a moto. Tudo foi muito rápido, como num sonho. Cheguei na Maternidade em exatos cinco minutos e vinte dois segundos. Era meu recorde pessoal. Habitualmente não corro na Harley. Mas neném é neném. Não espera. Imaginem a cena da aflita avó ao ver o famoso Dr. João, chegar numa custom preta, usando a roupa completa do Papai Noel e passar correndo na sua frente.

Entrei na sala de parto e a paciente estava na posição.

- Desculpa Dr. João, tirei o senhor do seu Natal.
- Sem problemas, mulher.
- Oi, doutor João, a bolsa rompeu sozinha e o primeiro gemelar desceu, mas eu arrumei tudinho.
- Fica frio, meu amigo. Vai dar tudo certo.

Reparei a mesa. O material estava na disposição contrária. Sou canhoto. Meu colega caprichou. Dei as ordens de praxe.

- Polvidine. Seringa de 20 ml. Xylocaína sem vaso constritor. Liga o oxigênio e põe um cateter nasal.

Pintei a região perineal, sem pressa. Bloqueei o nervo pudendo, aspirando antes para ver se peguei um vaso. Dez mililitros na raiz, cinco no trajeto e cinco na pele. Fiz a incisão médio-lateral direita para abrir passagem, na vigência da contração, para não doer. Abaixei o períneo com o indicador e dedo médio, bilateralmente. O baby era cabeludo.

- Agora você vai respirar fundo e fazer força para baixo. Força comprida. Força de fazer cocô, entendeu?
- Faz assim, junto comigo.

Ela meneou a cabeça com um sim. Fomos inspirando e expirando juntos. Veio a dor. Dor universal, bíblica. Sem um gemido sequer em cima, lá embaixo o polo cefálico rodou. Aparei o rapazinho com suavidade. Cocei suas costas. Ele chorou forte, eu também; porém discreto.

- Doutor João, posso cortar o cordão? O senhor prometeu...

Assustei-me com o pedido. Com aquela correria toda, não havia percebido que o pai estava ali. Emocionado, porém calmo, disse -olhando para a tesoura romba, bem curta e arredondada que eu havia comprado especialmente para essas ocasiões:

- Claro amigão.

O pai trêmulo, seccionou-o por completo. Ainda faltava o outro gêmeo.

- Qual é o nome do rapagão?
- Depois eu digo. Quero ver o outro. O senhor falou que o segundo geralmente nasce mais cansadinho. Estou preocupado.

Auscultei o segundo, estava excelente. Deixei a natureza seguir seu curso. Mas ao tocar novamente a apresentação, percebi o bumbum. Pélvico, modo de nádegas. Como eu sabia pela bolsa e pelas placentas que seriam idênticos, perguntei:

- Se for mulher, tem nome? E se for homem?
- Se for mulher o senhor escolhe. Se for homem, eu. Aliás, já está escolhido.

Como nós compactuamos em não ver o sexo pela ultrassonografia, o momento tornava-se ainda mais mágico. Bem, dancei na escolha. Eu sabia que era do sexo masculino. Estranhamente o alarme do infecto celular soou. Ah, era meia-noite. Peguei o bom pé, executei a manobra de Bracht, desprendi os ombros e fiz um Mauriceau. Outro artífice obstétrico. Nasceu. Silêncio. Era homem.

É homem, doutor João. Vai se chamar José!
- E o primogênito?
- Oras, João. O primeiro baptizou e José é o pai. Hoje não é o dia que Jesus nasceu? Assim eu homenageio todo mundo. Um presente de Deus.

Tirei a placenta, girando-a no sentido horário. Suturei em dois planos. Verifiquei a integridade do períneo. Voilá! Tudo perfeito!

Saí pleno de alegria. Cumprimentei a vovó.

- Parabéns, minha senhora.
- Eu não disse, doutor? Bonita a motoca, depois a gente dá uma voltinha?

Não sei se foi piada ou o bom humor. Pois o encanto da vida tomou a velhinha. Eu adorei.

- É claro, mas outro dia, tá?
- Obrigado, doutor.

Voltei fazendo demorados "esses" pelas ruas. Inclinando a moto de brincadeira, extasiado.
Quando cheguei em casa percebi que estava ainda com minha vestimenta especial. Subi na minha mãe e me troquei. Uma boa mãe sempre tem uma muda de roupa em casa para o pródigo filho. Não havia vivalma, lá. Abri a porta do meu apartamento.

Maior emoção em minha vida senti, ao perceber que todos me esperavam. Haviam passado mais de duas horas desde o momento em que eu saí em altíssima velocidade. A cena pareceu estar congelada. As crianças na mesma posição. Um milagre. Só meu pai se encontrava sentado.

- Feliz Natal!

Gritaram todos. Debulhei-me em lágrimas. Um parto gemelar, minha família, a missão cumprida.

- Você não vai acreditar, o Papai Noel esteve aqui.

Eu ainda chorando, concordei. E hoje aqui sentado, sem poder correr, trabalhar ou festejar,
reestabelecendo-me de uma cirurgia, fico pensando. Meu pai faleceu. Minha mãe já não tem mais uma casa. Aquele foi nosso último Natal. E acredito piamente que: se Papai Noel foi ao meu lar, Deus aproveitou e entrou em meu coração. E naquela noite; nunca estive tão próximo Dele!

(Natal de 2004)

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