Todos sabem da dificuldade de um homem comum transformar-se em concertista famoso,
capaz de grande audiência em teatro que se apresente. A dedicação
diária ao instrumento, sempre num prazo mínimo de quatro horas
faz com que muitos nem pensem em tamanho trabalho.
No seu camarim, solitário como preferia ficar sempre, o pianista Eduardo
André olhava-se no espelho, ajeitando-se da melhor forma possível.
Traje apropriado para apresentação de grande gala, camisa alva,
passada com carinho, sapatos elegantes, vestiam o homem de pouco mais de quarenta
anos que, por si só, já dispensava maiores comentários.
Eduardo André nascera e crescera um homem muito bonito. Beleza rara;
era externa, no seu rosto bem feito, olhos profundamente significativos e seus
cabelos longos, sem exagero, onde já se viam fios grisalhos. Mas a sua
beleza exterior não se comparava a interior, fina, requintada, que desde
menino demonstrou quando sentava para tocar piano.
Devido a pouca idade, ainda não podia frequentar o Conservatório,
fato que não impediu que aos quatorze anos já fosse conhecido
como um grande talento, graças aos excelentes professores que o seu pai,
professor universitário de Física não havia descuidado.
Observando com a mulher a vocação até mesmo desmedida do
filho, não permitiu que o talento do jovem que no momento se vestia com
apuro, penteava os cabelos e ouvia um murmúrio de plateia grande,
bebia aos pequenos goles fino conhaque, intercalado com café, hábito
que havia adquirido quando fez um longo aperfeiçoamento com o pianista
Tamás Vásáry, talvez o maior do mundo atual. Quando Eduardo
André voltou ao Brasil, Vásáry falou apenas, dando um forte
abraço, "sucesso, maestro. Encante o mundo."
A família de Eduardo André mantinha relações com
pessoas de nível intelectualmente elevado, já que tanto pai como
mãe, eram professores respeitados. Dentre as amizades, havia um casal
que tinha uma belíssima filha, que Eduardo André sempre lastimou
a sua pouca idade. Marta era uma menina, ele só podia admirar. Mas levou
sua imagem enquanto estava na Europa, estudando. Jamais se esquecera de um só
fio dos seus cabelos dourados, sua educação esmerada, ainda que
tivesse apenas quinze anos.
Olhou o relógio. Nestes momentos, há um conflito muito grande
que se passa na alma do artista. Ao mesmo tempo em que aguarda ansioso dar o
melhor de si aos atentos ouvintes que lotam o teatro, ele sente a mais profunda
solidão. Afinal, vai enfrentar ouvidos educados, músicos famosos,
sempre presentes na plateia.
O jovem concertista deu uma olhada final no grande espelho. Estava muito bem,
mas a frase dita pelo seu mestre não lhe saia da cabeça. "Encante
o mundo"...
Levantou-se e foi direto para o palco; as cortinas já tinham sido abertas
e seu nome anunciado. Eduardo preferia assim. Não gostava da outra forma
de apresentação, a que quando as cortinas se abrem o pianista
já está sentado diante do instrumento de cauda longa, afinadíssimo
e com brilho incomum sob as luzes do palco.
Entrou calmamente, com um sorriso sincero que agradava aos homens e entusiasmava
as mulheres. Com a mais absoluta elegância, cumprimentou o público
curvado-se enquanto a mão esquerda segurava de leve a extremidade do
piano., olhando logo depois para todos que conseguia. Qual não foi seu
espanto quando seus olhos viram Marta, já uma mulher e que ele soubera
casada. Linda, num belo contraste do seu vestido negro com os seus cabelos dourados.
Ajeitou-se com elegância no banco e tocou. Seus dedos pareciam estar movidos
por força estranha. O repertório era Chopin, e a emoção
por pouco não leva a Eduardo André compor, como o mestre, em pleno
recital, uma peça semelhante à Grande Polonese. A visão
de Marta havia tocado profundamente o concertista, que a cada toque sutil, delicado
ou vibrante, mais se entusiasmava, nunca havia acontecido este fato antes.
A cada música que se sucedia, os aplausos, como a música executada,
estavam num crescendo. Há muito a plateia do Teatro Municipal
do Rio de Janeiro não tinha o encantamento pelo qual estava passando.
A música enchia o belo teatro, descendo pela sua escadaria, espalhando-se
maravilhosamente.
Terminado o concerto, Eduardo, como não poderia deixar de ser, foi aplaudido
de pé e as aclamações da plateia fizeram que ele
voltasse ao piano mais duas vezes.
Quando mais uma vez agradeceu com a elegância característica, viu
que Marta batia palmas e lançava um belo sorriso.
As cortinas fecharam-se por definitivo. O jovem concertista, de cujos olhos
saiam lágrimas de um amor que não se realizou, molhavam sua face
e Marta não saberá nunca que o concerto foi dado para ela...