Quebrei os espelhos para viver tranquilo, já gostei de me olhar nos espelhos
mas meu corpo era outro; um porte capaz de seduzir. Retilíneo, sem barriga
e ombros largos era a imagem que conquistei remando na Lagoa, correndo no Aterro.
Chegava do trabalho, vestia short e camiseta: corria. Acordava, vestia short
e camiseta, estacionava no clube: remava. Era bom admirar meu corpo nos espelhos
na época em que almoçava no vegetariano e aqueles pratos não
eram moda. Continuei jantando depois que a moda passou.
Corrida, remo e refeições sadias modelaram meu corpo. Só
não detiveram o tempo que me fez parar de olhar espelhos. E chegou uma
hora em que - além de não olhar - tive necessidade de quebrá-los.
Notei que envelhecia quando fui abordado na rua por uma caipira querendo me
passar a perna. A mulher dizia que precisava vender os terrenos do pai em Minas
mas não tinha dinheiro para a passagem. Era um conto do vigário
que jogava em cima de mim porque minha cara de velho já podia ser notada.
A safada queria que eu oferecesse a grana da passagem e, em troca, me daria
uma porcentagem sobre a venda dos terrenos. Fugi da mulher sentindo vergonha
por ser mais um velho otário andando pela cidade, um fraco à mercê
dos pivetes e espertalhões que rondam idosos indefesos. Cheguei em casa
com a certeza de que não poderia mais conviver com os espelhos.
Espelhos divididos com Valter refletindo os nossos corpos nus. Músculos
e suores estourando no teto, nas paredes, em toda parte por onde espalhara os
espelhos. Valter foi embora sobrando minha solidão e eles. Para que admirar
a própria imagem se o reflexo mostra alguém isolado num apartamento?
Eu ficava olhando os espelhos como se, por algum milagre, aquelas superfícies
lisas pudessem ter guardado os reflexos de Valter. No entanto, meu rosto velho
encimando um corpo envelhecido é a monótona repetição
das imagens.
Ainda segurei o braço de Valter lançando a última súplica.
Ele me empurrou sem qualquer esforço livrando-se de um velho. Para que
um jovem quer um velho amante? Nem as compensações materiais interessavam.
Valter não é desses rapazes que transam com homens por causa de
apartamento, carro e algum dinheiro; coisas que a recessão vai me tirando.
Ele gostava de gozar com homens e meu corpo não proporcionava mais esse
prazer. Fiquei sozinho com os espelhos e o aprendizado da velhice.
Numa sexta-feira, vi meu ex-amante com um gringo no Metrô. Os dois conversavam
em inglês sem perceberem minha presença. As portas se abriram na
Estação Carioca, saltei atrás me embolando com Valter.
O gringo gritava num português de merda. Juntou gente, veio a segurança...
larguei Valter, me encostei na parede e chorei. Saí do Metrô vaiado.
Para que serve um espelho se não posso mergulhar na minha própria
imagem que tanto admirei um dia?
O tempo me custa a passar desde a aposentadoria. Fizeram festa com coca quente,
os putos! Até placa de prata com meu nome e agradecimento pelos anos
de serviços prestados, me deram! Muitos que me chamavam pelas costas
de tia velha, me abraçaram jurando sentimento de saudade.
Vivi anos dividindo meu tempo com a repartição na qual cheguei
como farmacêutico recém-formado e atingi o cargo de chefia no Departamento
fármaco-químico industrial onde fui responsável por fórmulas
e fórmulas aprendidas bem antes de sentir a urgência de quebrar
espelhos. Sempre pontual na chegada e relaxado no horário de saída.
Sempre organizado nos relatórios e na fiscalização dos
gastos com o material do Departamento. O funcionário modelo não
questionou nada durante todos os anos que a placa de prata indicava como acumulados
em tempo de serviço. Fechei a mesa, encostei a cadeira e estiquei com
o grupo num chope no Amarelinho.
Minha velhice é assim: sem trabalho ou Valter e espelhos. Leio jornal,
ouço rádio mas não ligo a tevê. Afinal, tela de tevê
é tão artificial quanto um espelho que nada de bonito tem para
refletir.
O tempo é tanto que posso até me lembrar de pessoas insignificantes
como meu pai. Ele morreu num asilo em Santa Teresa. A velhice lhe doeu de tal
forma que aceitou me receber enquanto agonizava. Levei frutas, pagamento da
vaga e morfina quando a dor ficou acima do suportável. Vegetal murchando
como alface que a gente esquece na geladeira. Dessa forma apodreceu o homem
prepotente que foi meu pai. Não quero morrer podre; mais um motivo para
quebrar espelhos.
O Brasil jogava na Copa do Mundo e resolvi andar pelas ruas completamente vazias.
José Carlos Araújo parecia sair de toda parte narrando a partida.
Um carro com a bandeira brasileira surgiu e desapareceu mais rápido ainda.
Eu era a única pessoa imune ao vírus da seleção
caminhando pela calçada. Aí, me lembrei de Mestre Kaled, um monge
budista que pregava o isolamento. Ele veio do Sry Lanka espalhar ensinamentos
do iluminado num templo perto das Paineiras. Homem magro, cabeça raspada
e vestido com grande manto amarelo. Muita gente frequentava o templo porque
era num lugar isolado e se fumava maconha à vontade. Nessa época,
conheci jovens de fácil conquista. Entre o incenso, a meditação
e a admiração da natureza; me aproximava dos garotos que buscavam
no budismo respostas para seus tolos questionamentos.
Mestre Kaled contava histórias com fundo moral valorizando o silêncio
- esse mesmo silêncio que hoje me é insuportável. Havia
uma fábula sobre um sujeito que falava demais e apareceu um garoto resolvido
a lhe dar uma lição. O menino colocou bolinhas de bosta no estilingue
e, cada vez que o falador abria a boca, vinha uma bolada certeira pela goela
dele abaixo. A moral da história é óbvia: quem fala demais
engole merda. Não corro esse risco, sou um homem calado cuja boca não
se abre.
Fugi do templo assim que Mestre Kaled botou os maconheiros para correr. Eles
eram meus parceiros quando, no apartamento, oferecia erva em troca de sacanagem.
É bom lembrar que, nessa época, a aids não existia e o
sexo livre até entre homens oferecia riscos reduzidos. Sem os chincheiros,
o templo virou ponto de encontro rigorosamente espiritual e, os que se dedicam
às coisas do espírito; se afastam do sexo. Portanto, sem penetrações
e carícias; nada tenho o que fazer num templo ou numa rua enquanto rola
o jogo do Brasil. Hoje, penso que devo fazer qualquer coisa que evite minha
volta para casa, para o silêncio, para os espelhos.
Ela se chama Clara Garroux, tem o rosto alisado por diversas plásticas,
mora no apartamento vizinho e me chamou para o Encontro da Saudade na
Associação dos Servidores Civis. Solitária, Clara organiza
bailes em toda a última quinta-feira do mês para mulheres e homens
da terceira idade. Eu fui uma única vez e dancei com Clara que impregnou
minha roupa com cheiro do perfume que usava.
O pior aconteceu! Clara Garroux resolve dividir comigo sua solidão. Eu
não podia! Se nem mulheres mais jovens que deslumbram com seus corpos
perfeitos nas praias ou nos desfiles de escolas-de-samba me atraem... imaginem
Clara Garroux?! Ela disse que entendia minha situação porque a
sociedade inibe o furor sexual dos velhos...
Clara palmeou meu pau quando voltávamos de táxi. Em seu apartamento,
tinha vídeos pornográficos e mais! Não se importava em
contratar massagistas para mènage. Revelei que rapazes atléticos
me davam mais tesão. Clara se assustou. Os homens sempre propuseram que
ela transasse com outra mulher porque isso faz parte do universo erótico
masculino. Nunca! Clara Garroux tocara a pele de um viado. A minha imagem também
não correspondia a ideia que ela fazia dos boiolas.
Clara Garroux conhece meu apartamento, admira os espelhos, aprecia fotos de
antigos amantes em poses explícitas. Ela se deita na cama, levanta a
saia e abaixa a grande calça especial para segurar barrigas que insistem
em cair. Três dedos massageiam a xoxota. Depois de gozar, se recompõe,
pede desculpas e sai. Nunca mais nos falamos, soube um pouco depois que morrera
de acidente cardiovascular.
Agora, eu quero quebrar os espelhos. Trata-se de uma decisão que aliviará
os poucos anos de vida que me restam. Amantes me fogem quando os abordo pensando
que peço ajuda. Sou um velho nada diferente desses milhares que se espremem
nas agências bancárias recebendo benefícios que o governo
insiste em diminuir. Eu sou um velho que o país teima em varrer para
debaixo do tapete.
Conheço fórmulas químicas e sou capaz de torná-las
devastadoras na missão de quebrar espelhos, na urgência de quebrar
espelhos.
Doeu muito, o rosto ficou queimado. Não importa, não há
espelhos para demonstrar este arremedo de ser humano que me tornei. Aqui, sinto
cheiro característico de hospitais, enfermeiras e médicos se revezam
me atendendo. Queimei meus olhos com nitrato de prata. Duas vistas atingidas,
não há possibilidade de recuperação. Para quem enxergou
durante tantos anos, tenho nas imagens dos espelhos a compensação
do prazer. A cegueira é estranha, muitas vezes, penso que estou vendo
mas é sonho ou lembrança transmitida pelo cérebro.
Eu quebrei os espelhos... todos os espelhos... todos... todos... todos.. Agora,
vivo inerte num mundo sem imagens.