A Garganta da Serpente
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Espelhos... espelhos

(João Carlos Viegas)

Quebrei os espelhos para viver tranquilo, já gostei de me olhar nos espelhos mas meu corpo era outro; um porte capaz de seduzir. Retilíneo, sem barriga e ombros largos era a imagem que conquistei remando na Lagoa, correndo no Aterro. Chegava do trabalho, vestia short e camiseta: corria. Acordava, vestia short e camiseta, estacionava no clube: remava. Era bom admirar meu corpo nos espelhos na época em que almoçava no vegetariano e aqueles pratos não eram moda. Continuei jantando depois que a moda passou.

Corrida, remo e refeições sadias modelaram meu corpo. Só não detiveram o tempo que me fez parar de olhar espelhos. E chegou uma hora em que - além de não olhar - tive necessidade de quebrá-los.

Notei que envelhecia quando fui abordado na rua por uma caipira querendo me passar a perna. A mulher dizia que precisava vender os terrenos do pai em Minas mas não tinha dinheiro para a passagem. Era um conto do vigário que jogava em cima de mim porque minha cara de velho já podia ser notada. A safada queria que eu oferecesse a grana da passagem e, em troca, me daria uma porcentagem sobre a venda dos terrenos. Fugi da mulher sentindo vergonha por ser mais um velho otário andando pela cidade, um fraco à mercê dos pivetes e espertalhões que rondam idosos indefesos. Cheguei em casa com a certeza de que não poderia mais conviver com os espelhos.

Espelhos divididos com Valter refletindo os nossos corpos nus. Músculos e suores estourando no teto, nas paredes, em toda parte por onde espalhara os espelhos. Valter foi embora sobrando minha solidão e eles. Para que admirar a própria imagem se o reflexo mostra alguém isolado num apartamento? Eu ficava olhando os espelhos como se, por algum milagre, aquelas superfícies lisas pudessem ter guardado os reflexos de Valter. No entanto, meu rosto velho encimando um corpo envelhecido é a monótona repetição das imagens.

Ainda segurei o braço de Valter lançando a última súplica. Ele me empurrou sem qualquer esforço livrando-se de um velho. Para que um jovem quer um velho amante? Nem as compensações materiais interessavam. Valter não é desses rapazes que transam com homens por causa de apartamento, carro e algum dinheiro; coisas que a recessão vai me tirando. Ele gostava de gozar com homens e meu corpo não proporcionava mais esse prazer. Fiquei sozinho com os espelhos e o aprendizado da velhice.

Numa sexta-feira, vi meu ex-amante com um gringo no Metrô. Os dois conversavam em inglês sem perceberem minha presença. As portas se abriram na Estação Carioca, saltei atrás me embolando com Valter. O gringo gritava num português de merda. Juntou gente, veio a segurança... larguei Valter, me encostei na parede e chorei. Saí do Metrô vaiado.

Para que serve um espelho se não posso mergulhar na minha própria imagem que tanto admirei um dia?

O tempo me custa a passar desde a aposentadoria. Fizeram festa com coca quente, os putos! Até placa de prata com meu nome e agradecimento pelos anos de serviços prestados, me deram! Muitos que me chamavam pelas costas de tia velha, me abraçaram jurando sentimento de saudade.

Vivi anos dividindo meu tempo com a repartição na qual cheguei como farmacêutico recém-formado e atingi o cargo de chefia no Departamento fármaco-químico industrial onde fui responsável por fórmulas e fórmulas aprendidas bem antes de sentir a urgência de quebrar espelhos. Sempre pontual na chegada e relaxado no horário de saída. Sempre organizado nos relatórios e na fiscalização dos gastos com o material do Departamento. O funcionário modelo não questionou nada durante todos os anos que a placa de prata indicava como acumulados em tempo de serviço. Fechei a mesa, encostei a cadeira e estiquei com o grupo num chope no Amarelinho.

Minha velhice é assim: sem trabalho ou Valter e espelhos. Leio jornal, ouço rádio mas não ligo a tevê. Afinal, tela de tevê é tão artificial quanto um espelho que nada de bonito tem para refletir.

O tempo é tanto que posso até me lembrar de pessoas insignificantes como meu pai. Ele morreu num asilo em Santa Teresa. A velhice lhe doeu de tal forma que aceitou me receber enquanto agonizava. Levei frutas, pagamento da vaga e morfina quando a dor ficou acima do suportável. Vegetal murchando como alface que a gente esquece na geladeira. Dessa forma apodreceu o homem prepotente que foi meu pai. Não quero morrer podre; mais um motivo para quebrar espelhos.

O Brasil jogava na Copa do Mundo e resolvi andar pelas ruas completamente vazias. José Carlos Araújo parecia sair de toda parte narrando a partida. Um carro com a bandeira brasileira surgiu e desapareceu mais rápido ainda. Eu era a única pessoa imune ao vírus da seleção caminhando pela calçada. Aí, me lembrei de Mestre Kaled, um monge budista que pregava o isolamento. Ele veio do Sry Lanka espalhar ensinamentos do iluminado num templo perto das Paineiras. Homem magro, cabeça raspada e vestido com grande manto amarelo. Muita gente frequentava o templo porque era num lugar isolado e se fumava maconha à vontade. Nessa época, conheci jovens de fácil conquista. Entre o incenso, a meditação e a admiração da natureza; me aproximava dos garotos que buscavam no budismo respostas para seus tolos questionamentos.

Mestre Kaled contava histórias com fundo moral valorizando o silêncio - esse mesmo silêncio que hoje me é insuportável. Havia uma fábula sobre um sujeito que falava demais e apareceu um garoto resolvido a lhe dar uma lição. O menino colocou bolinhas de bosta no estilingue e, cada vez que o falador abria a boca, vinha uma bolada certeira pela goela dele abaixo. A moral da história é óbvia: quem fala demais engole merda. Não corro esse risco, sou um homem calado cuja boca não se abre.

Fugi do templo assim que Mestre Kaled botou os maconheiros para correr. Eles eram meus parceiros quando, no apartamento, oferecia erva em troca de sacanagem. É bom lembrar que, nessa época, a aids não existia e o sexo livre até entre homens oferecia riscos reduzidos. Sem os chincheiros, o templo virou ponto de encontro rigorosamente espiritual e, os que se dedicam às coisas do espírito; se afastam do sexo. Portanto, sem penetrações e carícias; nada tenho o que fazer num templo ou numa rua enquanto rola o jogo do Brasil. Hoje, penso que devo fazer qualquer coisa que evite minha volta para casa, para o silêncio, para os espelhos.

Ela se chama Clara Garroux, tem o rosto alisado por diversas plásticas, mora no apartamento vizinho e me chamou para o Encontro da Saudade na Associação dos Servidores Civis. Solitária, Clara organiza bailes em toda a última quinta-feira do mês para mulheres e homens da terceira idade. Eu fui uma única vez e dancei com Clara que impregnou minha roupa com cheiro do perfume que usava.

O pior aconteceu! Clara Garroux resolve dividir comigo sua solidão. Eu não podia! Se nem mulheres mais jovens que deslumbram com seus corpos perfeitos nas praias ou nos desfiles de escolas-de-samba me atraem... imaginem Clara Garroux?! Ela disse que entendia minha situação porque a sociedade inibe o furor sexual dos velhos...

Clara palmeou meu pau quando voltávamos de táxi. Em seu apartamento, tinha vídeos pornográficos e mais! Não se importava em contratar massagistas para mènage. Revelei que rapazes atléticos me davam mais tesão. Clara se assustou. Os homens sempre propuseram que ela transasse com outra mulher porque isso faz parte do universo erótico masculino. Nunca! Clara Garroux tocara a pele de um viado. A minha imagem também não correspondia a ideia que ela fazia dos boiolas.

Clara Garroux conhece meu apartamento, admira os espelhos, aprecia fotos de antigos amantes em poses explícitas. Ela se deita na cama, levanta a saia e abaixa a grande calça especial para segurar barrigas que insistem em cair. Três dedos massageiam a xoxota. Depois de gozar, se recompõe, pede desculpas e sai. Nunca mais nos falamos, soube um pouco depois que morrera de acidente cardiovascular.

Agora, eu quero quebrar os espelhos. Trata-se de uma decisão que aliviará os poucos anos de vida que me restam. Amantes me fogem quando os abordo pensando que peço ajuda. Sou um velho nada diferente desses milhares que se espremem nas agências bancárias recebendo benefícios que o governo insiste em diminuir. Eu sou um velho que o país teima em varrer para debaixo do tapete.

Conheço fórmulas químicas e sou capaz de torná-las devastadoras na missão de quebrar espelhos, na urgência de quebrar espelhos.

Doeu muito, o rosto ficou queimado. Não importa, não há espelhos para demonstrar este arremedo de ser humano que me tornei. Aqui, sinto cheiro característico de hospitais, enfermeiras e médicos se revezam me atendendo. Queimei meus olhos com nitrato de prata. Duas vistas atingidas, não há possibilidade de recuperação. Para quem enxergou durante tantos anos, tenho nas imagens dos espelhos a compensação do prazer. A cegueira é estranha, muitas vezes, penso que estou vendo mas é sonho ou lembrança transmitida pelo cérebro.

Eu quebrei os espelhos... todos os espelhos... todos... todos... todos.. Agora, vivo inerte num mundo sem imagens.

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