Delphyr é o décimo oitavo planeta do Sistema Solar localizado
na Via Láctea. É, por assim dizer, o último da organização
planetária. Foi descoberto segundo consta nos Anais da Biblioteca Universal,
muito antes do planeta Terra, o terceiro planeta da ordem, passar pela sua penúltima
e terrível catástrofe cósmica. Possui atmosfera semirrarefeita,
e aspectos interessantes na sua movimentação espacial; quando em
determinadas épocas da sua evolução, afasta-se para longe,
recebendo luz e calor de outro astro solar, posicionado em outro Sistema Solar
menor, que coincidentemente atravessa o seu caminho. E, essa mudança climática,
ocorrida a cada 85 mil anos, altera e exerce uma considerável influência
na sua atmosfera, principalmente, sobre o ecossistema, pois durante os 2.430
dias que demora a dar uma volta no seu eixo, mais os 848 para realizar as noites
completas, quando tem a sua aproximação mais crítica, Delphyr
penetra na zona de atração modificando o seu movimento cíclico
para uma súbita parada, enquanto rotaciona o seu eixo, até o afastamento
do sol. E fora da sua atração magnética vai retornando ao
seu giro normal, e ao seu antigo plano de órbita.
Mas quando o seu polo se inclina atraído pelo sol do outro sistema
solar, o calor vai processando lentamente o descongelamento milenar das calotas
polares, compostas de sal amoníaco e outros elementos. E durante esse período,
acontece um fenômeno chamado "Posyra": a atração
exercida pelo sol sobre Delphyr cria uma espécie de zona de super aquecimento,
ou bolsão térmico concentrado muito forte, principalmente nas áreas
centrais. E aquilo que a natureza deixou estagnado no fundo do gelo e camadas
de hidrogênio metálico, convulsiona no ar e se dissemina pelo planeta
em busca de comida. A atmosfera, agora com quase 0,00021% de oxinitrogenado,
não impede que minúsculas criaturas mutantes avancem enterrando
seus esporões no solo repleto de crateras e pedregulhos, enquanto vão
sugando complexos protéicos retirados do nitrogênio, do metano e
da amônia em forma de gelo. Abaixo, nas profundezas do solo, misturados
aos compostos salínicos e alcalinos, permanecem as criaturas, que por
suas dimensões seriam fatalmente esmagadas pela gravidade. Esses são
os "Paghus". Seres parasitas vindos na cauda de um cometa, cuja rota
muito próxima, quase se chocou com Delphyr, contudo, depois de passar,
deixou na superfície grande quantidade de nuvem plasmática e lixo
cósmico. Esses seres ou animais, que vivem em imensas colônias ou
grupos reduzidos, não possuem nenhuma forma expressiva, apenas uma massa
volumosa, cheia de ramificações enraizadas que, quando necessárias,
servem para locomoção. Entretanto, têm o hábito de
permanecerem estacionadas e subtraem dos "Volmeros", as minúsculas
criaturas naturais do planeta, o alimento, que após o período de
sol, retornam para os subterrâneos com o triplo ou mais do tamanho e peso.
Instalam-se nos Paghus e trocam com eles suas energias enquanto Delphyr
faz a volta em redor do sol amarelo.
Venetrya, Maarduk e Kartennia são os satélites artificiais
e giram em sentido inverso ao sol e ao planeta. Venetrya possui atmosfera e a
sua superfície é coberta por uma mistura de metano e nitrogênio
congelados. Maarduk é o maior de todos. E, é quase a metade
do tamanho de Delphyr. Tem o núcleo rochoso com tênue atmosfera
de metano. Há indícios de que anteriormente não fosse um
satélite, mas um planetóide com órbita irregular, que foi
atraído por Delphyr. É completamente gelado nos polos, e
uma característica elíptica. Possui ainda um sistema de 3 anéis
azulados. Kartennia, o menor de todos é congelado, sem atmosfera e visto
de longe, reluz como um ponto metálico.
A entrada do planeta Delphyr em sua órbita original é realizada
com o início do ciclo de fortes tempestades e furacões violentíssimos,
que varrem a sua superfície vulnerável, em fase de congelamento.
E num torvelinho gigantesco de poeira; partículas de metano e amônia
gelados, volmeros e raízes de Paghus são atirados ao espaço
infinito, misturando-se às nuvens gasosas existentes, que se dilatam pelo
cosmo. E, assim, ficam estacionados anos-luz naquela mobilidade aparente, até
que acontece uma explosão e origina nova expansão na atmosfera estelar,
e, por esse impulso, a nuvem se dispersa, se alonga pelo obscuro firmamento...
E a consequente emissão de ondas de gases explosivos desencadeia o
lançamento de meteoritos para todos os lados e quando esse tipo de evento
acontece, os projéteis em tal velocidade atravessam zonas remotas do espaço
em direção ao infinito, ou desviam suas rotas para outros mundos,
atraídos por seus campos gravitacionais.
A Terra é o quarto planeta do Sistema Solar cuja superfície é
habitada. Os outros três são Aberr, Erbhus e Altaïre
- claro que a presença de vida inteligente, neles existentes, não
é como se pressupõe (mas isso é assunto para outra história).
Possui uma atmosfera diferenciada possibilitando a vida nas suas mais variadas
formas e estruturas orgânicas. É um mundo magnífico levado
às proporções da perfeita coordenação genética.
Muito se sabe, pelos bastidores científicos galácticos, que o planeta
é geologicamente o mais antigo do sistema solar, entretanto, a vida só
foi implantada após as últimas transformações ocorridas,
quando por ironia do destino, "aquele" que fora preparado para ser a
"encubadeira" da célula matriz e o desenvolvimento de
uma criatura especial, foi bombardeado por raios cósmicos intermitentes
e chuvas de meteoritos constantes; sendo, portanto, abandonado; e a Terra, com
a mistura de múltiplos gases provenientes de um processo seletivo natural,
se tornou o "celeiro" ideal para a criação e organização
do material nuclear. A biodiversidade do planeta gerou comentários curiosos
de cientistas renomados dos países baixos, que se espantaram com a explosão
dominante de determinadas criaturas, dentro do seu meio ambiente, revolucionando
os conceitos, até então, sabidos como verdades inabaláveis.
O Sistema Solar não ocupa um lugar de relevância dentro da galáxia,
contudo a estrela maior, apesar da sua pequenez diante da gigantesca Vasthor -
apenas 5 anos-luz de distância e quase 250 mil vezes maior -, representa
o farol referencial para os navegantes estelares que se aventuram por aquelas
paragens, além de possuir um polo magnético poderoso e equilibrado.
Tudo o que não é fatalmente atraído para sua fornalha perene,
é sugado pelos campos gravitacionais dos planetas que giram ao seu redor.
E a quantidade de lixo cósmico que cai na Terra é algo assustador!
Impossível até de ser detectado por quaisquer tipos de instrumentos,
já que nem tudo o que invade a atmosfera terrestre possui características
inorgânicas...
Os raios cósmicos adentram a atmosfera e são absorvidos pela própria
massa de energia que envolve e protege o planeta. Os meteoritos aos milhares
e milhares de pedras, de diversos tamanhos, ao encontrar a mesma barreira, são
transformados em partículas e evaporam ou atingem o solo em velocidades
tal, que penetram profundamente nos terrenos arenosos, nos mares, nos polos...
Em todos os lugares, e permanecem lá, até que após o impacto
traumático, a própria natureza do planeta, no seu processo lento
de simbiose, vai buscando a melhor condição adaptativa às
formas alienígenas ou não, dentro do seu meio ambiente, e começa
alterando as moléculas, atuando sobre os micro-organismos. E neste mundo
de reserva alimentícia abundante e inesgotável, a evolução,
a mutação, a expansão para aquilo que veio do espaço,
não é nenhum obstáculo; logo encontra espécies animais,
minerais ou vegetais que devoram, ou criam situações em que se transformam
em inimigos hostis dos hospedeiros, não importando o fim, nem as consequências
para os mesmos. Vital é a sua sobrevivência!
*****
O amanhecer na cidade, já é algo incomum. Ainda mais num domingo
de primavera, quando as árvores e os jardins estão multicoloridos;
e bem cedinho ainda, vemos as gotas de orvalho deslizando pelas folhas, pelas
pétalas das flores, e depois, o sol vai despontando e trazendo o seu brilho
amarelado, como num longo beijo, que vai penetrando na sombra e revelando os
segredos ocultos na natureza. Pelas ruas da cidade as pessoas fazem suas caminhadas
matinais, umas isoladas, outras em grupos. Assim nasce o dia em Petrópolis,
cidade serrana localizada no Estado do Rio de Janeiro, incrustada nas montanhas.
Possui um clima de altitude agradabilíssimo, - muito parecido com o
dos Alpes Suíços -, para onde muitos turistas de diversas partes
do planeta vêm passar as férias, visitar os museus, ficar nos finais
de semanas nas dezenas de pousadas existentes espalhadas pela região,
cercadas de extensas áreas verdes, parques florestais, cascatas e cachoeiras
de águas muito frias, límpidas e rejuvenescedoras. Mais adiante,
a poucos quilômetros, subindo uma estrada de asfalto que termina numa bifurcação,
dando continuidade a dois caminhos de barros: o da direita vai para residências
no sopé da montanha, o da esquerda, continua em zigue-zague até
chegar num local aprazível, sempre cheio de pessoas, carros e um rio que
desliza sobre pedras redondas, formando pequenos lagos onde crianças e
adultos se refrescam alegremente.
Mas se na cidade e cercanias, tem-se a visão do raiar do sol de forma espetacular,
quando se está no cume da montanha, além do centro urbano, cercado
de vales que deixam ver lá embaixo, quase aonde a vista não pode
alcançar, minúsculas casinhas brancas, num quadro bucólico.
E o amanhecer? Magistral! A mais completa harmonia das coisas divinas que os olhos
humanos podem ver. O céu azul escuro num tom profundo que vai absorvendo
as estrelas, enquanto se transforma com a chegada dos raios solares, que atravessam
as nuvens no horizonte. Àquela altitude elas se parecem com um tapete de
algodão em flocos e muito fofos, vista por debaixo; porque acima, é
como se uma máquina descomunal tivesse aparado a crista, deixando tudo
reto, uniforme. Depois, o sol desponta exuberante e magnífico, deixando
à mostra a bola vermelha alaranjada que vai dispersando as nuvens lentamente,
e revelando uma imagem fotográfica perfeita de toda a paisagem ao redor.
E o ar frio matinal começa a dar lugar ao mormaço quente, dando
amostra do que seria um dia ensolarado e de muito calor.
Essas eram as imagens gravadas nas mentes de todos aqueles que já haviam
acampado no Morro Açu: inesquecíveis. Cachoeiras e pequenas
cascatas que entrecortando o caminho, próximo aos locais seguros para pernoitar
ou se proteger da chuva e do frio. E essa cena quase surreal entremeada de bucolismo
paradisíaco é que os excursionistas que subiram ao amanhecer, até
o cimo da montanha, naquele domingo, pretendiam encontrar. Já haviam passado
pelo "Portal", uma árvore gigantesca em cujo tronco o tempo abriu
uma espécie de passagem, e chegavam ao famoso "Véu da Noiva",
uma cachoeira estupenda, surgida do mais perfeito e diáfano Tule. Àqueles
que subiam pela primeira vez, tudo era novidade, mas para os que constantemente
faziam o trajeto, percebiam alguma coisa de errado. Um silêncio estranho.
Geralmente àquela hora já se escutavam vozes, gritarias, pessoas
subindo ou descendo a montanha, ou perambulando pelas trilhas, sons de rádios...
Nada. E a vegetação estava mais fechada. Com um tipo de enraizamento
que subia pelas árvores como se fossem braços num forte estrangulamento.
E as flores amarelas com pétalas enormes manchadas de roxo, eram desconhecidas,
e se espalhavam por todos os cantos. Tinha-se a impressão de que todas
se voltavam para eles em movimentos tênues, imperceptíveis! Não
se notava da primeira vez, somente alguns minutos depois é que confirmavam
aquele efeito.
E estavam lá! Todas!
Parecia um festival silencioso, onde cada uma executava a sua música íntima,
num bailado gestual e...
... jovens sorridentes com olhares esquisitos se aproximaram dos visitantes lhes
oferecendo flores que exalavam perfumes suaves e inebriantes, quase hipnóticos.
Todos aceitavam de bom grado, afinal, quem poderia ou teria forças para
recusar aquele oferecimento, quando enfiavam-lhes as flores quase nariz à
dentro?
... e os excursionistas foram caindo um a um, em espasmos convulsivos, até
ficarem completamente parados, imobilizados, aparentemente mortos. E, de repente,
ao redor dos seus corpos o solo começou a se mover, a terra a ser revolvida
até surgirem raízes volumosas, que os foram envolvendo com suas
ramificações, encerrando-os numa espécie de casulo resinoso.
... o cume não suportava mais a quantidade de gente que permanecia nele.
A sua formação calcárea arredondada para as bordas, terminava
num precipício sem fundo, ou melhor, os flocos de nuvens tiravam essa visão
do despenhadeiro. E as pessoas próximas ao abismo, se jogavam felizes como
se estivessem fazendo "smosh" num festival de rock in roll!
*****
E aos bandos, elas desciam pela estrada de barro e se espalhavam nas residências,
nos albergues, nas pousadas. Entravam oferecendo flores, e em seguida, sumiam
na escuridão. Preferiam andar pelos locais onde não houvesse grande
movimentação de veículos. E dessa forma, durante o dia, permaneciam
em grupos, escondidas nas matas próximas. De muitas, nesses momentos, seus
corpos se abriam da cabeça aos pés, deixando à mostra raízes
pulsantes que penetravam no solo. Delas restavam uma carcaça gelatinosa
que se perdia na terra remexida. Ao entardecer, as pequenas florezinhas amarelas
brotavam do solo, e na noite seguinte, as maiores eram arrancadas e levadas.
Sem as flores, as raízes se encolhiam traumatizadas até só
restarem um tronco seco e morto. As noites se sucediam e aconteciam sempre os
mesmo rituais sinistros. Durante o dia, às vezes, surgiam pequenos grupos
oferecendo flores às crianças e aos adultos. A situação
parecia descontrolada. O perfume das flores era inebriante e muito atrativo.
Dificilmente alguém se recusava em aceitá-las, e levar ao nariz
para sentir o aroma, era um rito quase que automático. As flores que chegavam
até à estrada de asfalto não eram tão grandes nem
resistentes como as do "Véu da Noiva". As raízes
pareciam fracas e queimadas.
Médicos, pesquisadores, cientistas, se reuniram para estudarem o problema.
Floricultores foram intimados a responderem sobre aquele novo tipo de planta
que surgia pela região. Desconheciam quem as pudesse ter plantado. Ninguém
sabia como as flores progrediam assustadoramente. Ao se observar o vale antes
de entrar na cidade, tanto abaixo quanto acima, misturadas às outras espécies
de flores, elas eram diferentes e se destacavam mais. Pois todas, como ímãs,
estavam voltadas numa só direção: as casas e seus habitantes.
E a forte fragrância era levada pelo vento em todas as direções.
Aqueles que eram pegos desprevenidos nos campos, ou próximos das matas,
e respiravam o aroma, fatalmente eram atraídos até às plantas
e tiravam-nas para cheirar. Muitos ainda conseguiam chegar em casa, antes de iniciarem
o processo de antibiose ou predantismo.
Certa tarde de sábado, o céu estava carregado de nuvens escuras
e o dia acinzentado, sem muita iluminação, quando surgiu de um atalho
próximo à estrada principal, um grupo carregando flores, e aproximava-se
de algumas pessoas distraídas, quando, de repente, um carro surgiu na rodovia;
de imediato, o grupo se voltou em direção ao veículo, que
reduziu a marcha para evitar acidentes, contudo, continuou acelerando. Após
a sua passagem bem devagar, ao olhar pelo retrovisor, o motorista viu algo que
o deixou horrorizado: a garota bonita que havia atraído a sua atenção
apodrecia, a carne se soltava, seus olhos explodiam e os ossos faciais derretiam.
O choque daquela visão foi tão forte e profundo que o deixou momentaneamente
perplexo, paralisado, e como que despertando daquele transe louco, arrancou velozmente,
porém ainda pôde ver outros corpos caírem nas mesmas condições.
As pessoas que estavam próximas e observaram o acontecido, saíram
em perseguição ao veículo desvairado, numa tentativa de conter
o motorista, mas o mesmo só pensava em fugir para bem longe daquele local
macabro. A imagem da garota com o rosto apodrecendo, não saía da
sua mente. Ficara como que estampada no para-brisa, e nem percebeu o entroncamento,
nem a carreta de automóveis, a pouca distância, vindo em sua direção.
Num reflexo, ainda tentou desviar-se do veículo pesado, mas chocou-se contra
a lateral, depois foi rodopiando e bateu violentamente na murada da ponte mais
adiante, que cedeu e o carro espatifou-se dentro do rio, nas pedras... E foi afundando
com as rodas para cima, engolido pelas águas lamacentas.
Com o acidente, o trânsito virou o caos. Centenas de automóveis em
filas quilométricas, iam andando em marcha lenta... E ninguém havia
entendido o que ocasionara as mortes horríveis daquelas pobres criaturas,
se o carro passara bem devagar entre elas. Nem compreendiam o porquê da
sua fuga desesperada, ocasionando a própria morte e toda aquela situação
catastrófica.
Mas o que eles não estavam preparados para ver, nem suas mentes aceitariam
com tanta lucidez, nem suas emoções conseguiriam suportar com firmeza,
se aproximava aos montes, vindas de todos os lados. Pareciam brotados do chão,
pois tão logo a noite baixou, elas chegaram...
Suas peles não possuíam mais a cor rosada, nem seus rostos qualquer
expressão, em lugar de olhos tinham órbitas esverdeadas luminescentes.
Eram adultos, crianças, adolescentes, velhos, homens e mulheres trazendo
flores perfumadas, que ofereciam àqueles que se encontravam fora dos veículos.
A pouca luz reinante os transformavam em espectros macabros. E sob a luz dos
faróis assumiam formas demoníacas. Muitas pessoas amedrontadas entravam
nos carros e procuravam safar-se pelo acostamento. E a combustão, a fumaça
gerada pelos motores começava a causar entre aqueles "seres diferentes"
mortes estranhas. Os corpos se decompunham em cima da lataria dos carros, muitos
com suas carnes em deteriorização procuravam entrar nos carros,
e se chocavam contra os para-brisas, janelas laterais. Aterrorizados,
todos queriam fugir do local, mas o trânsito se tornara tumultuado. E de
veículos tombados nas valetas às margens da estrada, com as portas
escancaradas, viam-se dentro, rostos cobertos pelas flores amarelas.
De repente as pessoas começaram a tomar consciência da realidade
dos acontecimentos. Alguma coisa estava se sucedendo e relacionava-se com aquelas
flores amarelas. Custou-se muito a perceber, e as consequências trágicas
eram sentidas nas famílias das comunidades locais, onde ocorriam mortes
sem a menor chance de salvação. Pegar vivo alguém que tivesse
cheirado a flor se tornara uma tarefa muito difícil, pois independente
dela estar isolada ou não, de uma hora para outra, suas carnes se deterioravam,
seus olhos se tornavam putrefatos e seus ossos se diluíam. A carcaça
arriava no solo num bolor fedorento e gelatinoso. O que ocasionava essa situação,
as próprias autoridades ainda tinham dúvidas a respeito.
A flor examinada exalava perfume embriagador e todos utilizaram uniformes especiais
no laboratório. Precisou ser isolada dentro de redoma de vidro especial,
e se tornou avermelhada com estrias amarelas. E quando posta em gravidade abaixo
de zero, adquiriu tonalidade verde chumbo e as nervuras se incharam como veias
na medida em que se reduziu mais a pressão interna. Até que a redoma
explodiu com o crescimento desordenado das raízes. Tão logo o ar
ambiente dominou, a flor foi voltando ao tamanho e tonalidade normais. As fotografias
ampliadas mostraram nas pétalas, a impressão simultânea de
várias cores constituindo faixas paralelas que se confundiam nas bordas,
e no interior, milhares de carpelos formando plataformas cheios de microesporos
arroxeados, que após novas exposições macroscópicas,
conseguiram descobrir minúsculos insetos com esporões que infestavam
a flor.
Começaram a teorizar que a flor era desconhecida, podia ser até
alienígena, mas estava próxima das plantas classificadas como angiospermas,
contudo não sabiam dizer nada a respeito dos micro insetos encontrados
nos carpelos. Tais plantas eram consideradas as formas vegetais mais evoluídas
e predominantes do planeta Terra, cujo aparecimento se dera há mais de
118 milhões de anos, com mais de 250.000 espécies identificadas.
Aquela parecia estar passando por uma sequência de mutações;
deveria ser catalogada e preservada com a máxima segurança. Mas
um descuido no laboratório e o perfume da planta se alastrou pelas repartições,
e, tempos depois, encontraram três assistentes desmaiados. Mais que depressa,
foram colocados em cabines isoladas e proibidos de quaisquer contatos externos.
Iniciariam quase que imediatamente as pesquisas, experimentando em cada um tipos
de vírus diferentes, e uma bateria de análises, até o dissecamento
de tecidos.
Todavia, ao reunirem a equipe para começarem os testes, só encontraram
a massa gelatinosa dos três assistentes sobre a cama. O que poderia ter
acontecido? Indagaram aos seguranças, mas nenhum soube responder com certeza
o que sucedera. Foram analisar os vídeos gravados, e as imagens não
mostravam nada de especial, até que um dos assistentes pediu um cigarro
ao guarda de plantão. Depois de muita conversação e negação
por parte do vigilante, um cigarro foi passado aceso através de uma pequena
abertura na porta.
Após a primeira tragada o homem ficou imóvel. A fumaça
foi solta em meio a golfadas de uma gosma esverdeada e tosse seca. Na segunda
tragada ele sentiu dor no peito e caiu sobre a cama. O que se viu a seguir foi
o que todos já conheciam. O corpo se deteriorando completamente de forma
violenta e inexplicável. Nas outras fitas de vídeo, houve somente
a putrefação total dos corpos, como se algo, ou talvez a mesma coisa
que atacara o primeiro homem, se voltasse contra aqueles dois. Mas como, se estavam
em locais completamente isolados? Que o cigarro fazia mal a saúde, eles
sabiam, mas chegar aquele ponto em questões de minutos, e aquele nível
de destruição! O que poderia ter afetado os outros dois?
A resposta veio muito mais tarde, quando um dos cientistas almoçava
num restaurante em companhia do seu casal de filhos, e conversavam animadamente
sobre um filme que haviam assistido.
- Pai, os bandidos trancaram a garagem e colocaram a mulher dentro do carro, depois
ligaram o motor. O dióxido de carbono...
- Monóxido de carbono, seu burro! - cortou a menina.
-... o monóxido de carbono. A fumaça matasse ela!
- Vocês dois não devem ficar vendo esses fil... MONÓXIDO DE
CARBONO! É ISSO! - nem terminou de comer. Pegou o celular e chamou a esposa
para vir buscar as crianças. Era uma emergência. Depois se dirigindo
as crianças - Olha! Papai vai precisar ir embora agora, mas a mãe
de vocês já está chegando. Acreditem! É muito urgente!
Depois que tudo acabar eu...
Uma mulher se aproximou espavorida. Parecia muito desconsolada.
- O que foi desta vez? Você nunca consegue terminar o almoço com
seus filhos!
- Olá! Querida! O Juba falou uma coisa sobre uma mulher que morreu intoxicada...
- Pai, ela não morreu! - retrucou o menino. - Os policiais chegaram a tempo
de salvá-la!
Ele olhou para o filho e sorriu. Depois para a mulher.
- Olha, eles estão vendo muitos filmes de violência... Você
precisa prestar mais atenção nisso...
- O QUÊ? Desde quanto filme infantil é violento?
Ele a fitou abismado. Precisava voltar mais cedo para casa, conversar com ela
e estar mais presente na vida dos seus filhos. Beijou a todos e saiu em disparada.
Ia pensando: "o primeiro acidente em Itaipava, perto do Shopping, o motorista
estava devagar, e vinha bombeando o acelerador, e a fumaça que saiu do
tubo de escapamento foi absorvido pelos "seres", ocasionando suas mortes...
E o mesmo aconteceu à noite na estrada, e vem acontecendo durante toda
a semana. No laboratório a fumaça do cigarro foi quem matou o rapaz...
Mas e as outras duas? CLARO! Os dutos de ventilação! Mas eles não
são interligados... Cada tubo de ar é separado..." Chegou
ao laboratório onde outros cientistas estavam trabalhando.
- Monóxido de carbono! - entrou dizendo de surpresa.
Todos se voltaram para ele, sem entender.
- O monóxido de carbono é o causador das mortes... Ao ser expelido
pela fumaça dos carros matou as criaturas, e a fumaça do cigarro
matou um dos assistentes... Só não entendo o que afetou os outros
dois...
- Os tubos de ventilação foram ligados erroneamente durante a reforma
do prédio... Doutor, descobrimos também que os compostos nitrogenados
são as suas fontes de alimentação... Amônia, sais
de nitrato.
- Isso me cheira a fertilizantes... Mas como? Eu não consigo imaginar um
ser humano sendo convertido em planta...
- No intestino grosso...
- Não, é algo muito mais sério. - cortou o cientista. - Sei
que é difícil acreditar, mas vamos imaginar que por quaisquer cargas
d'água, uma planta qualquer perdida não sei onde, recebe uma quantidade
exorbitante de radioatividade, ou raios cósmicos e inicia um processo de
mutação, e acaba encontrando no corpo humano o hospedeiro ideal...
- Um parasita! - exclama uma assistente maravilhada.
- Sim, um parasita. - confirmou ele. - Só que ao invés de cooperação,
ela apela para o predantismo. Mas ela precisa sobreviver... Aqueles micro insetos
que encontramos nas flores, talvez sejam os que façam a verdadeira protocooperação,
isto é, vivem separados, mas, estando juntos é muito melhor para
ambos... As flores perfumadas atraem os humanos, que são induzidos a cheirá-las.
Então os micro insetos penetram pelas narinas, pela boca, são disseminados
pelo corpo todo, ou melhor, em se tratando de flores, polinizam através
da corrente sanguíneas, e atraem as vítimas ao predador, que
necessita dos compostos nutrientes existentes no corpo humano... Aqueles ferrões
descarregam uma espécie de ácido muito forte que é ativado,
penso eu, na presença monóxido de carbono ou dióxido de carbono...
- Doutor, então deve haver uma planta inteligente em algum lugar.
- Não se trata de inteligência. Na natureza existem formas que vivem
em harmonia e outras em desarmonia. No caso em questão, essa planta, ou
seja lá o que for, age de maneira violenta... Hostil! Ela usa uma outra
forma de vida para trazer o seu alimento...
- Por que "eles" só aparecem ao entardecer ou durante a noite?
- questionou um dos assistentes.
- Menos poluição, menos gases tóxicos, e o poder de assimilação
dos compostos orgânicos ser muito maior.
- Doutor, se essa planta está em algum lugar, poderemos achá-la seguindo
os ditos seres...
- Bem pensado! - elogiou um outro cientista. - Mas como faremos para nos aproximarmos
dela?
- Primeiramente vamos arranjar equipamentos para nossa defesa, em seguida iremos
pedir ajuda as autoridades locais, aos militares... Depois, começamos por
eliminar todas as flores próximas à cidade, e assim sucessivamente...
*****
As Organizações Não Governamentais ligadas à proteção
do meio ambiente, e outras instituições movimentavam-se preocupadas
com a destruição generalizada que aconteceria em breve, apelavam
para que se pensasse a respeito da situação, procurando outras alternativas
menos agressivas; que não causasse um impacto traumatizante na vegetação
local. Também era uma preocupação dos cientistas, que já
haviam experimentado outros tipos de gases e produtos nocivos para a planta,
mas não tão danoso para as outras espécies. Contudo, não
havia como evitar. Quaisquer que fossem as fórmulas utilizadas afetaria
tudo ao redor. O último teste realizado foi com dióxido de carbono,
como sólido branco. A flor adquiriu uma tonalidade marrom e secou. Os
micro insetos morreram. Numa experiência realizada no campo, onde existiam
muitas flores, as raízes se soltaram pelo ar, dando chibatadas violentas,
aprisionando soldados e cientistas entre suas nervuras, e sugando-os até
a morte. Um novo ataque com extintores de gelo seco, e elas desapareceram por
dentro da terra.
Então havia um tronco em algum lugar, de onde saíam raízes
que se espalhavam por toda a região. Durante o dia as flores voltavam a
brotar quase nos mesmos lugares atacados anteriormente. Começavam a perceber
que se quisessem obter sucesso, deveriam formar grupos e atacar de uma vez só.
Noite e dia continuamente, em revezamento.
Iniciaram tudo novamente. Usavam uniformes especiais e máscaras contra
gases, se protegendo também contra o aroma das flores. Num cinturão
quase fechado, foram caminhando lentamente, observando as flores de aspectos
diferentes, com pétalas amarelas e grandes ou pequenas. A região
toda passava por um pente fino. Qualquer pessoa suspeita era levada para um acampamento
afastado, onde era submetido a um simples teste: dar uma tragada num cigarro.
Uma grande parte do vale, dos bosques, dos jardins das pousadas foram sendo deixados
para trás. Começavam a ter uma ideia para onde as flores
seguiam: Morro Açu!
Uma outra equipe prosseguiu pelo sopé da montanha, e tiveram que lutar
contra raízes grossas e ameaçadoras, que foram destruídas
e incineradas. Partes delas afundaram no solo, deixando amostras de massas gelatinosas.
Entardecia. Todos se mostravam cansados, esgotados e muitos aguardavam substitutos.
De repente, do meio da mata verdejante, foram surgindo seres sorridentes e trazendo
flores. Mas não eram em grupos de dez ou vinte. Pareciam centenas, como
que gerados pela criatura demoníaca. Avançavam decididos, de braços
estendidos num convite amigável. Enquanto soldados e voluntários
armavam suas defesas descarregando os extintores de dióxido em cima dos
primeiros, os seres seguintes, simplesmente se jogavam contra a barreira de espuma
branca, e o que se via, eram corpos se deteriorando aos montes, se transformando
em massas sanguinolentas, esverdeadas, gelatinosas e fétidas.
Parecia que a planta queria a todo custo, se defender e evitar a aproximação
daqueles que desejavam a sua destruição. No meio do tumulto, uma
raiz gigante, com quase dois metros de espessura, brotou do chão, repentinamente,
e foi esmagando, pisoteando os soldados e voluntários. Houve uma debandada
geral ladeira abaixo até o sopé da montanha, onde se encontravam
os acampamentos.
Novas tropas com trajes especiais chegaram trazendo tanques maiores com dióxido
de carbono. Não podiam esperar até o dia raiar. Se não teriam
de começar tudo de novo. Agora, somente as tropas subiriam. Eram preparados,
possuíam táticas e técnicas para enfrentar o inimigo. E durante
a subida, pelo caminho, foram encontrando trajes militares vazios de corpos.
Com muito esforço conseguiram chegar até o "Portal", depois
prosseguiram em formação cerrada até o "Véu
da Noiva" e continuaram subindo pelo morro íngreme e escorregadio.
Helicópteros sobrevoavam o cume e áreas próximas, com potentes
holofotes, enquanto despejavam gelo seco por sobre a vegetação.
Uma das aeronaves ao retornar sobre uma árvore troncuda foi agarrada por
uma raiz gigante, espatifou-se contra o solo numa violenta explosão. As
chamas logo se espalharam, iluminando tudo ao redor. E os soldados viram algo
que parecia com um polvo, só que muito maior, colossal. Uma massa cinza
escura esverdeada, cheia de raízes e tentáculos enormes, ao redor,
dezenas de seres abraçados ao seu corpo, protegendo-o. Outras aeronaves
se aproximaram carregando tanques de gelo seco, e iam despejando sobre aquela
forma descomunal, enquanto os soldados atacavam embaixo. O que não era
uma tarefa fácil, pois dependiam do ataque aéreo para flanquear
o inimigo, impedindo que um dos tentáculos se aprofundasse na terra. Se
tal acontecesse, aquela coisa nunca seria destruída. A mata ao redor ardia
em chamas e o calor era infernal. Vez ou outra um soldado que tivera o seu traje
rasgado, era engolido por uma raiz, que penetrava pela abertura. Mais reforços
chegavam trazendo extintores e tanques de dióxido de carbono.
Clareava. Todos pensavam: agora ou nunca. Já estavam esgotados, mas precisavam
eliminar o inimigo de uma vez por todas. Atacaram por todos os lados, numa investida
forte e concentrada. Os seres que um dia foram humanos se transformavam em pastas
esverdeadas, e a planta foi encolhendo... encolhendo. Seus tentáculos raízes
perdendo o volume...
...E quando o sol despontava magnífico no horizonte, alguns voluntários
faziam uma última inspeção no local, enquanto cientistas
recolhiam amostras da massas esverdeadas, um outro recolheu ao acaso uma pedra
enegrecida cheia de ranhuras coloridas e pedaços metálicos que
reluziam na claridade matutina.
- Cara, como é lindo isso daqui. Que visual! - elogiou um soldado sentando-se
à borda do precipício.
- Passei muitas noites aqui, e já vi amanhecer melhor do que este... -
respondeu o outro tristemente olhando ao redor.
No furgão, junto aos vidros de massas esverdeadas, aquela pedra seria
apenas mais uma amostra, se dela não começasse a brotar uma flor
muito pequena, amarela e muito, muito perfumada...
Nota do Navegador: Existem no planeta Terra criaturas muito mais aterradoras do que os "Paghus", que se evoluíssem desmesuradamente, trariam sérios problemas para os humanos que já são predadores consumados, só que em menor escala. Histórias como essas fazem parte dos Anais da Biblioteca Universal, de onde compilei os fatos.
(19/02/2003)