A Garganta da Serpente
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Quando eu matei o teu rock 'n roll

(Janice Diniz)

Então apareci de supetão numa dessas salas de imprensa-de-hotel-chique e eu não combinava com a textura das paredes ou com o mármore do piso ou com as cortinas drapeadas sugerindo dois séculos atrás. A curva do anel solar se insinuava centímetros à frente dos meus tênis. Eu tava escondida e segurava o ar nos pulmões cheios de nicotina, a fim de não ser descoberta pelos seguranças do virtuoso e alcoólatra artista do rock. Terminava meu quinto cigarro e cuspia uma secreção com detalhes de sangue. Provavelmente parte do pulmão que se descolava do resto e o resto era eu, ou O QUE sobrou do tratamento psiquiátrico à base de drogas e sugestões de autoafirmação. Provavelmente os seguranças da clínica tavam revistando a cidade atrás da louca que colecionava recortes e discos do cara que me fazia promessas de tornar o mundo um lugar melhor de se viver. Se os médicos acreditavam numa cura, eu também. Assim, espremia-me entre um pano e o concreto da parede para esperá-lo. Esperar pelo Salvador. Esperar por aquele que me libertou dos comprimidos coloridos. E que também os ingeria, quando não tava drogado ou atirado no chão podre de bêbado após compor retalhos de músculos, carnes, cartilagens e transformar o monstro da existência em melodia, em historinhas tristes de corações partidos na guerra (diária). Ele era o meu Mundo. E eu era mais que uma fã; um signo. E mais que uma Mulher; a Dele, a que ele sempre esperou na pobreza da sua mansão repleta de esqueletos, tapetes persas e privadas com vômitos. E eu a era a SUA MULHER e tava armada. O homem que cantava pra mim, que me levava pra conhecer a Beleza, que abrira a janela da prisão e pusera os meus dois pés num chão de nuvens... Bem, eu o esperava aparecer para a coletiva com a imprensa nacional, enquanto decidia se o matava com um tiro na nuca ou na testa.

A dúvida me parecia razoável. Ainda restava-me um pouco da Razão. Eu não era o Charles, e tampouco Daron era Lennon. Estávamos predestinados ao encontro. As vozes que surgiam eram reais, os malucos que escreviam em revistas e jornais chegavam em bando. Precisava me acalmar. O cano do revólver tava gelado. E isso me lembrava as agulhas das seringas com líquidos escuros e oleosos. Eu chorava de amor pelo cara de um metro e setenta e completamente abatido e altamente famoso que acabava de sentar expondo a nuca nua para a morte. Uma pessoa tão iluminada como ele não podia sofrer nesse planeta sórdido e desumano. Os flashes das máquinas estouraram. Pisquei. Olhei através do tecido da cortina: asas longas, dentes pontudos, os vampiros queriam sangue. A vítima era o Deus.

Atirei. A gritaria rompeu a velocidade do bom senso.

Atirei outra vez. Protegi o meu amor da mediocridade.

Atirei pela terceira vez no idiota que perguntou:

-Daron, você prefere transar com a luz acesa ou apagada?

O rock star se atirou pra debaixo da mesa, a toalha tremia. E eu fui pega pelos cabelos e atirada pra dentro de uma cela acolchoada. Ainda ouvia vozes. E uma delas me dizia:

-Ele precisa de você, tá só no meio das feras.

Fugi pela tangente entre paralelas curvas.

Eu mirava novamente o alvo. Agora com os olhos marejados de lítio. Cinco seguranças e o Medo. O alvo bebia e vomitava três vezes mais. Tava arrasado mas cantava, tocava e escrevia como um verdadeiro artista, como um louco. Numa dobra da esquina nos encontramos. E ele atirou em mim. Na cabeça, de raspão. Sem dúvida alguma havíamos nascido um para o outro. Ontem na manchete dum jornal fuleiro:

ROQUEIRO É INTERNADO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA.

E eu era entrevistada por um bando de insanos que me perguntavam se eu sabia de algum caso em que o artista perseguia e tentava assassinar o fã...?

Respondi que não.

A gente só desejava a Graça do Deus.

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