Então apareci de supetão numa dessas salas de imprensa-de-hotel-chique
e eu não combinava com a textura das paredes ou com o mármore
do piso ou com as cortinas drapeadas sugerindo dois séculos atrás.
A curva do anel solar se insinuava centímetros à frente dos meus
tênis. Eu tava escondida e segurava o ar nos pulmões cheios de
nicotina, a fim de não ser descoberta pelos seguranças do virtuoso
e alcoólatra artista do rock. Terminava meu quinto cigarro e cuspia uma
secreção com detalhes de sangue. Provavelmente parte do pulmão
que se descolava do resto e o resto era eu, ou O QUE sobrou do tratamento psiquiátrico
à base de drogas e sugestões de autoafirmação.
Provavelmente os seguranças da clínica tavam revistando a cidade
atrás da louca que colecionava recortes e discos do cara que me fazia
promessas de tornar o mundo um lugar melhor de se viver. Se os médicos
acreditavam numa cura, eu também. Assim, espremia-me entre um pano e
o concreto da parede para esperá-lo. Esperar pelo Salvador. Esperar por
aquele que me libertou dos comprimidos coloridos. E que também os ingeria,
quando não tava drogado ou atirado no chão podre de bêbado
após compor retalhos de músculos, carnes, cartilagens e transformar
o monstro da existência em melodia, em historinhas tristes de corações
partidos na guerra (diária). Ele era o meu Mundo. E eu era mais que uma
fã; um signo. E mais que uma Mulher; a Dele, a que ele sempre esperou
na pobreza da sua mansão repleta de esqueletos, tapetes persas e privadas
com vômitos. E eu a era a SUA MULHER e tava armada. O homem que cantava
pra mim, que me levava pra conhecer a Beleza, que abrira a janela da prisão
e pusera os meus dois pés num chão de nuvens... Bem, eu o esperava
aparecer para a coletiva com a imprensa nacional, enquanto decidia se o matava
com um tiro na nuca ou na testa.
A dúvida me parecia razoável. Ainda restava-me um pouco da Razão.
Eu não era o Charles, e tampouco Daron era Lennon. Estávamos predestinados
ao encontro. As vozes que surgiam eram reais, os malucos que escreviam em revistas
e jornais chegavam em bando. Precisava me acalmar. O cano do revólver
tava gelado. E isso me lembrava as agulhas das seringas com líquidos
escuros e oleosos. Eu chorava de amor pelo cara de um metro e setenta e completamente
abatido e altamente famoso que acabava de sentar expondo a nuca nua para a morte.
Uma pessoa tão iluminada como ele não podia sofrer nesse planeta
sórdido e desumano. Os flashes das máquinas estouraram. Pisquei.
Olhei através do tecido da cortina: asas longas, dentes pontudos, os
vampiros queriam sangue. A vítima era o Deus.
Atirei. A gritaria rompeu a velocidade do bom senso.
Atirei outra vez. Protegi o meu amor da mediocridade.
Atirei pela terceira vez no idiota que perguntou:
-Daron, você prefere transar com a luz acesa ou apagada?
O rock star se atirou pra debaixo da mesa, a toalha tremia. E eu fui pega pelos
cabelos e atirada pra dentro de uma cela acolchoada. Ainda ouvia vozes. E uma
delas me dizia:
-Ele precisa de você, tá só no meio das feras.
Fugi pela tangente entre paralelas curvas.
Eu mirava novamente o alvo. Agora com os olhos marejados de lítio. Cinco
seguranças e o Medo. O alvo bebia e vomitava três vezes mais. Tava
arrasado mas cantava, tocava e escrevia como um verdadeiro artista, como um
louco. Numa dobra da esquina nos encontramos. E ele atirou em mim. Na cabeça,
de raspão. Sem dúvida alguma havíamos nascido um para o
outro. Ontem na manchete dum jornal fuleiro:
ROQUEIRO É INTERNADO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA.
E eu era entrevistada por um bando de insanos que me perguntavam se eu sabia
de algum caso em que o artista perseguia e tentava assassinar o fã...?
Respondi que não.
A gente só desejava a Graça do Deus.