"Falar de vidas passadas, é polêmico, das recordações
delas muito mais. Mesmo assim senti a necessidade de dividir essas lembranças.
Perdoem-me os céticos, porém posso afirmar, que cenas do meu cotidiano
do passado, estão gravadas nos refolhos da minha alma, no meu Eu! Como
e o por quê do desencadeamento dessas recordações; desconheço.
Brotaram de forma natural e espontânea.
Deixo então, só o relato, as conclusões ficam por conta
de quem estiver lendo. Enquanto escrevo, as imagens, cenas, diálogos
aparecem mais vivos do que nunca.
A narrativa seguirá as migrações através das épocas,
independente do desabrochar das lembranças. O filme que passava na televisão,
não foi interessante o suficiente para me manter acordada. A madorna
que antecede o sono, levou-me ao desconhecido. Deslumbrante paisagem descortinava-se
diante dos meus olhos. O sol, brilhava intenso no céu azul, os campos
verdes, ao longe, montanhas que ainda mantinham a neve no alto do cimo. Postei-me
de forma que ao meu lado esquerdo, uma residência chamava a minha atenção.
Edificada com estuque, pedras e o telhado em palha. Dentro um único cômodo,
uma ampla cozinha, lareira, onde uma panela de ferro cozinhava a refeição.
Completando o ambiente, rústica mesa de madeira e bancos. Volto á
admirar a beleza do local. Tenho consciência de que está frio,
porem não sinto. Duas mulheres saem da casa, rindo, conversando, felizes.
São jovens camponesas de um biótipo interessante. Encorpadas,
altas, de pele e cabelos claros. Vestem roupas estranhas, de longos vestidos
com aventais, tamancos de madeiras e na cabeça um chapéu parecido
com o usado pelas holandesas. As vejo agora trabalhando. Moendo grãos.
O artefato para a moagem é composto por duas grandes pedras. Uma fixa
e a outra móvel; presa no alto por larga tira de couro ligando dois cabos
de madeira para que o manejo em ritmo cadenciado de vai-e-vem necessário
para a trituração de grãos. Trabalham cantando em um idioma
totalmente desconhecido. Lembra alguma língua eslava, quem sabe algo
como o alemão. Reconheço-me em uma delas. Sou "levada"
a prestar atenção à outra, e vejo-a minha cunhada, esposa
do meu irmão.
Acordo cantando a mesma música. Outra época, nova reencarnação
de marcante lembrança, o que justifica a minha fixação
nas atrocidades do holocausto e a minha identificação com o apelido
carinhoso com o que meus familiares me tratam : Sara. Vejo-me moça, na
faixa de dezesseis anos, cabelos ruivos, curtos, vestida com sarja, correndo
nas ruas, entre prédios de três andares e bombas caindo. Esta me
acompanha sempre. Acredito que marcou tão violentamente a ponto de alterar
o meu duplo-etéreo a ponto de ainda responder pelo nome que usava à
época. Em um pretérito mais próximo do presente, pude constatar
a veracidade dos fatos através de dados.
Nesta reencarnei muito próxima da minha atual. A descrevo com muito
carinho e amor. Minha mãe, nasceu em uma cidade próxima de Curitiba,
Agudos do Sul. A família Fagundes foi uma das pioneiras da região.
Meu avô era próspero fazendeiro, proprietário de terras
. O coronel Zacarias e Dona Ana tiveram vinte e dois filhos. Muitos morreram
de doenças que hoje são simples e tratadas com facilidade, outros
de forma violenta. Devido às divergências políticas e a
agressividade da época. Não cheguei a conhecê-los, morreram
mais de quinze anos antes do meu nascimento. Com cinco anos quando fui com meus
pais, conhecer a cidade natal de minha mãe, para surpresa deles, eu conhecia
todo o trajeto. Cada pedaço de estrada antevia uma curva aqui, uma ponte
acolá. Tudo me era familiar. Minha mãe, me levou à casa
que foi dos meus avós; como também fazer visitas para conhecer
aos parentes que ainda persistiam em continuar morando lá. Almoçamos
com vários familiares, que haviam vindo de suas casas para receberem
os que moravam em Curitiba.
O tempo passou. A menina virou mulher e mãe. Uma tarde, minha mãe
e suas quatro irmãs conversavam lembrando os velhos tempos. Eu ouvia
tudo deliciada. Do nada, lembrei e entrei na conversa para surpresa de todos;
inclusive minha. Era como lembrar a atual infância. Vi a casa dos meus
pais (avós), no alto, rodeada com varanda de treliça onde roseiras
entrelaçavam-se no madeirame transformando em caramanchão. Na
parte de trás a porta da cozinha dava para um leve declive que levava
para ao rio de pedras. Poucos metros da casa, o poço que fornecia a água
para a nossa casa. Eu tinha uns cinco anos, era loura, usava tranças,
vestido florido; corria alegre em direção ao rio acompanhada de
um cachorro. Nas margens, uma plantação de melancia, com frutos
grandes e saborosos. Como sempre fazia, tirei um e o prendi entre as pedras
para refrescar, voltando a brincar feliz e descontraída. Sabia que meu
pai estava doente e minha mãe não queria que o atrapalhasse. Mesmo
assim, me atrevi a ir vê-lo. Nossa sala tinha uns bancos, estilo Luiz
XV, que serviam de sofás, uma peça de porcelana ao lado dessas
cadeiras, que vim saber por minha mãe e tias, que eram escarradeiras,
coisas usadas na época. Da sala, para o quarto dos meus pais havia um
pequeno degrau, a porta entreaberta era um convite: espiei!
Tudo estava como sempre. A disposição dos móveis os adereços
de decoração. O amplo quarto abrigava moveis trabalhados em madeira
escura. A janela, com brancas cortinas de crochê, ficava em frente à
cama do casal, esta muito alta com dossel, lençóis alvos e muitos
travesseiros de penas de ganso, assim como o acolchoado que descansava aos pés.
Mesas de cabeceira com tampo de mármore branco, guarda roupa de quarto
portas, cômoda com gavetas e sobre ela um conjunto de bacia e jarro com
água. Completando o ambiente uma escrivaninha. Meu pai me viu e me chamou
para junto dele. Ouço a minha mãe dizendo: menina, não
incomode seu pai, ele está doente.
- Deixa ela Ana. Não está me incomodando. Já havia acordado.
Subo rapidamente ao leito e me aconchego feliz e segura ao lado do meu pai.
Agora, escrevendo, ainda sinto o cheiro dos lençóis e dos doces
que estavam sendo feitos na cozinha. Aí terminam as minhas lembranças.
O que conto a seguir foi transmitido pela minha tia mais velha. A menina de
trança, chamava-se Felicidade, tinha uma irmã gêmea, que
viveu só três meses. A Felicidade faleceu com seis anos vitima
de sarampo e grupe. O que trouxe muita dor ao coronel Zacarias, ela era a sua
predileta.Foi enterrada no cemitério de Agudos do Sul. Uma prima foi
verificar os registros de nascimento e óbito, encontrou os dados necessários
para a veracidade da história. Fez mais, foi procurar o mausoléu
da família e lá está uma fotografia da menina; segundo
ela, parece muito comigo em criança.
Ainda não tive coragem de procurar o meu próprio túmulo.