Andando pelos corredores logo reparei nas cores predominantes: o branco das
paredes e o azul dos assentos. Tudo exageradamente limpo e impessoal. Cruzando
outras pessoas, rostos preocupados, expressões cansadas. Minutos de um
lado para o outro numa confusão de portas e salas bem iluminadas. Finalmente
localizei a Unidade de Tratamento Intensivo, a famosa UTI. Entrada não
permitida!!! Apenas contato visual! Sete janelas do tamanho de uma TV de 14
polegadas. Vidros grossos e esverdeados chapados numa parede comprida e branca.
Dispostas uma ao lado das outras com o hiato de aproximadamente um metro entre
elas. Escolhi uma que se encontrava vazia e fiquei a observar: médicos
com pranchetas nas mãos conversavam e andavam de um lado para o outro
averiguando, anotando, olhando. Embaixo de cada janelinha estava disposta uma
cama de UTI com o seu respectivo paciente. Aparentemente consegui identificar
minha avó através da janelinha mórbida numa dessas camas.
Reparei também numa outra cor de presença forte além do
branco e do azul: o verde dos equipamentos médicos e do vidro da janela
que parecia funcionar como um filtro deixando tudo dentro da sala levemente
esverdeado.
Ela estava numa cama que se localizava entre duas daquelas janelinhas, porém
mais para a da direita, onde me postei. Toda aquela verde parafernália
médica atrapalhava minha visão, a face dela estava levemente inclinada
para a esquerda. Na ponta dos pés procurava a certeza já meio
irritado, pois à minha frente grudados na janelinha encontrava-se uma
família inteira em uma demorada e árdua discussão sobre
se aquela senhora era ou não era a fulana de tal. Depois da certeza tive
de convencer toda aquela família (tios, tias, irmãos e etc) de
que aquela senhora não era a Dona fulana de tal, mas sim a minha avó
e eu tinha certeza!! Delicadamente sugeri que eles procurassem outra janelinha
pois aquela era minha. Agora sim, dava para ver melhor. A tal parafernália
verde na verdade era uma máquina de oxigênio para respiração
artificial. Havia uma outra logo na sequência que sustentava uma
série de bolsas de soros. Outras medindo pressão, pulso, sei lá.
Várias! Li umas letrinhas miúdas na borda inferior da máquina
"oxigênio" e vi um tubo adentrando pela boca de minha vó
fazendo o peito dela levantar..... e abaixar.... levantar.... e abaixar. Não
precisava ser médico para constatar a gravidade da situação.
Aquilo era a UTI, ou seja, casos graves. Ela era a única com todos aqueles
aparelhos, logo, caso gravíssimo. Não voltei para chamar minha
mãe e familiares que provavelmente estavam perdidos pelo hospital ainda
na procura pela UTI. Parado com o nariz no vidro fiquei ali, estático,
observando: levanta... abaixa... levanta... abaixa... Por um tempo troquei de
lugar com ela e não me senti nada bem. Provavelmente não sentia
nada. Estava inconsciente... Mas tão desconfortável!!!!
Meus familiares após pouco tempo apareceram ofegantes. Sai e disponibilizei
o lugar a eles. Fui para a janela da esquerda donde só conseguia visualiza-la
da cintura para baixo do corpo. Por uma janela normal do lado oposto da UTI
observei o sol forte e imaginei a vida lá fora, diversão. Retornei
minha atenção para a UTI. Nada agradável aquela cena. Só
uma pessoa poderia entrar. Lógico, seria minha mãe; enfermeira
aposentada entenderia melhor a explicação do quadro clínico
por parte dos médicos responsáveis. Ao todo ficamos uns vinte
minutos por ali pasmando com aquela cena. Num determinado momento minha mãe
aproximou-se de mim e fez a seguinte observação:
- Filho, acho que ela não está bem!! Olha quantas bolsas de soro.
Uma! Duas! Três! Quatro! Cinco! Seis!
- Não mãe! Aquelas outras duas são da outra senhora. Olha
só para onde vai o tubinho.
- AH!! É! - Que conforto!!!
Dezesseis e trinta. Ficamos do lado de fora, minha mãe vestia avental
verde e entrou em cena. Num primeiro momento ela ficou próxima da minha
vó para depois conversar com os médicos . Chegou bem perto dela.
Minha prima e tia do lado esquerdo e eu na janelinha da direita. Estava atentando
para as expressões de minha mãe no intuito de conseguir mais informações
sobre a situação. Ficou do lado da cama um certo tempo imóvel,
depois observou os equipamento lendo os dados acusados nos visores. Pegou no
lençol que cobria a vó e levantou, neste momento vi que as mãos
dela estavam amarradas á cama na altura da cintura. Segurou numa das
mãos e começou a chorar (mais tarde minha mãe disse que
ao chamar por seu nome sentiu ela aperta sua mão). Naquela altura já
não precisava mais observar. Pelas reações de minha mãe
mais do que nunca sabia que a vó não tinha muitas chances de sobreviver.
Ao me retirar da janela 14 polegadas tive vontade de pedir para os outros familiares
fazerem o mesmo. Desejava que minha mãe tivesse aquele momento sem ser
vigiada por nós; mas não foi necessário dizer nada. O tempo
do olhar acabou e uma enfermeira fechou uma cortina verde que impedia qualquer
visão.
Esperando o retorno ficamos por ali conversando nos corredores. Outros familiares
chegaram. Alguns foram para fora do hospital respirar outros ares e ficamos
eu e meu tio na espera. Um outro senhor ao passar por nós parou e trocamos
desgraças. Ficamos a prosar sobre marca-passos, assunto dos mais interessantes.
Os marca-passos são importados e pelo que entendi regulam as batidas
de um coração que já não marca nada sozinho. Todos
são fabricados fora do Brasil e por isso de difícil aquisição.
O valor médio é 20.000 reais. Nada que uma pessoa abastada não
possa comprar, mas não era o caso do senhor na minha frente. Ele estava
com sorte porém, o seguro cobria. Na verdade ele pagaria a mesma quantia
parcelada, muita sorte mesmo! Muitos membros da família dele usavam.
O mais interessante foi descobrir que após o óbito de um paciente
que possuía o marca-passo, esse é retirado, ajustado e devolvido
para a família. Ótimo, dessa maneira você tem uma reserva
caso precise usar outra vez. Ele se despediu e meu tio o confortou com a famosa
frase " É, a vida é assim mesmo!!" É, cada qual
com seus infortúnios.
Na calçada do hospital minha mãe chorando bastante nos informou
o que o médico disse. Ela, a vó, estava com as pupilas dilatadas,
isso indica derrame cerebral. Estava tão mal que nem podiam realizar
exames, ou seja, nem podiam movimentá-la. Visita só amanhã.
Escuto um barulho e ao me virar vejo uma mulher de joelhos na calçada
aos vômitos. Entro no carro, rumo a casa... Silêncio pesado.
Fiquei em casa nesse ínterim envolvido com a escrita dessas palavras.
Uns oram, outros escrevem. O telefone não parava de tocar um só
minuto. A cada toque um suspense. Esperamos...sabia que logo a chamada seria
do hospital e não viriam boas novas. Não tardou . Retornamos!
O hospital já estava fechado. Sabíamos a notícia que nos
aguardava. O médico deu voltas e mais voltas, enrolou mas chegou. Óbito.
Pedi para minha mãe esperar no saguão e fiquei envolvido com a
burocracia necessária num passear mórbido pelos corredores vazios
e desta vez mal iluminados. Por todo o hospital lá estava ele pregado
na parede em cruz ou em quadro. As frases eram as mais adequadas e menos confortantes.
Esperando liberar o corpo fiquei olhando o quadro colocado não sem propósito
naquela sala. A face do senhor de cabelos longos e loiros, olhos claros, uma
paz invejável que em absoluto não contextualizava com aquele lugar.
As frases tentam amparar mas apresentam-se inúteis. Todo o conjunto destoava
da realidade. " Tudo passa!!". Não se desespere". Ironia!
Minutos antes no carro, a caminho do hospital meu tio especulava com minha mãe
sobre a morte, no assento traseiro apenas escutava. Semáforo vermelho.
Ao lado do carro um bar, meu tio olha e diz: " É, uns tristes ,
outros alegres". Vi bebidas, vi cigarros, vi bocas e desejos, vi sonhos,
vi risos, vida, distração. Me vi , vi você!!! A mesma certeza,
o mesmo fim . Vi a lua cheia, canhão de luz!
A lua a pico. Meia noite e pouco. Caixão comprado com coroa e tudo. Sem
vela. Família batista. Olhei a carteira de minha vó. Abri e curioso
fucei. Foto, só uma. Para a minha surpresa não era a minha. Naquela
carteira a caçula da família reinava. Minha priminha....
Não poderia deixar de narrar uma conversa que tive com ela durante o
velório. Na inocência dos seus cinco anos ela chega perto de mim
e me chama para passear. O corpo sendo velado e nós de mãos dadas
passeando entre cruzes de sombras longas e inclinadas e nomes desconhecidos
e passados. Percebi que ela estava perturbada com tudo aquilo. Disse para ela
,tentando tocar no assunto levemente, que a vó ia dormir para sempre.
Retrucou: " Mas ela não se mexe! Quando a gente dorme se mexe".
Olhei para ela e um tanto sério perguntei:
- Dá, você sabe o que está acontecendo, não sabe?
- Sei! A vó morreu.
- Ela estava velhinha Dá. Cuidou de mim, da sua mãe e de você.
Você quer entrar lá para ver ela?
- Não !
- Por que? Perguntei. Para o meu espanto ela respondeu
- Tenho angústia
Não falei mais nada e ficamos boa parte do velório de mãos
dadas passeando sob o sol de fim de tarde, luz amarela e forte. Já próximo
do enterro, no final do culto cantavam hinos em alto e bom som. Ela pediu para
que eu abaixasse e perguntou: " Por que eles cantam tão alto??"
Enquanto pensava em uma resposta ela mesma completou deixando interrogação
como exclamação: " É para a vó ouvir?!!!!"
Fingi distrair e deixei as palavras passearem no ar e se perderem sem rumo,
sem respostas....
Volto ao dia anterior...Caixão comprado, lua cheia, hospital. Tínhamos
que colocar as vestes. Fomos os três meu tio, mãe e eu. Peguei
a chave donde colocaram o corpo. Percebi por baixo da porta que a luz estava
acessa. Abri e entrei. A imagem era forte, desagradável, triste. O corpo
repousava numa bancada de concreto. Estava todo enrolado num saco branco e frágil,
quase transparente. Na altura da cintura tinha um laço como se embrulhado
para presente. Tudo muito sinistro e mórbido, real. Olhei para a parede
e também ele estava lá na sua apatia de sempre de braços
abertos. Minha mãe tomou a minha frente e começou a desenrolar
o corpo. Eu , numa bancada ao lado, comecei a separar a roupa. Aquela cena nunca
vou esquecer. Nua e pálida. As mãos, pés e queixo amarrados
como se estivesse com dor de dente. Olhos fechados! Minha mãe começou
a vesti-la, tremia e chorava. Balbuciava incessantemente "Ai mãe....
Ai mãe....Ai mãe.... Ai mãe...." por um breve momento
hesitei em tocá-la. Observei minha mãe transtornada e comecei
a ajudá-la a colocar a calça. Levantei os quadris e puxei a calça
para cima . Tudo pó. Tudo vermes. Coloquei-a sentada, parecia uma boneca
gelada. Começamos a vestir a parte superior. Ilusão. O odor no
recinto não agradava. Morte... morte... ela tinha medo da morte, muito
medo. Não gostava de hospitais . O braço direito não entrava
no casaco. Minha mãe cada vez mais nervosa "Ai mãe... Ai
mãe..." Comecei a sentir raiva, muita raiva de tudo aquilo. O corpo
mole , largado, sem vida, desajeitado, ferido, morto , acabado, nadificado.
Raiva, somente raiva. Por minhas costa ele olhava crucificado ainda. O braço
não entrava. Olhando aquela situação uma profusão
de imagens e pensamentos rondavam minha cabeça. Pensava no tempo que
tudo da conta, em guerras, lágrimas.... O mundo cairá sobre nossos
corpos doentes. Sobre nossa alma vazia. Sobre nossa cabeça oca.... Pedi
para minha mãe se afastar e com calma , sem pressa passei o braço
dela pelo casaco marrom. Impossível esquecer. Abotoei devagar e antes
de sair da sala arrumei a cabeça para que não endurecesse torta.
Por volta de uma da manha o carro da funerária chegou. Flores brancas.
Colocamos o corpo no caixão. E aos poucos um funcionário apto
para a função decorou o caixão , flor por flor. Aos poucos.
- Sabe, hoje foi um dia corrido. Cinco no dia e já é o terceiro
até agora. A tal comentário respondi somente "É"
Aquele ritual demorou uns dez minutos. Ele trabalhando e falando sem parar e
nós três um ao lado do outro ao lado do caixão. Acabado,
rumo ao cemitério. Já imaginava que teria de passar a noite lá,
cuidando do corpo. Não foi diferente! Meu tio foi levar minha mãe
em casa para descansar e lá ficamos, na sala de velório as 2:30
da manha: Eu, minha avó, ele de braços abertos na cruz, a duzentos
metro dois vivos na guarita de segurança e ao redor milhares de mortos.
Fazia um pouco de frio. O silêncio era quase total. Uma sinfonia de grilos
fazia sua apresentação, de hora em hora um pássaro cantava.
Tudo estava numa perfeita harmonia mórbida. A sala grande. Paredes brancas, luzes fortes. O caixão suspenso no centro por pedestais e eu ao lado. Sempre nos acostumamos com as pessoas em vida , fiquei ali esperando algum movimento que parecia tão eminente. Sabia que dali não viria nenhum. Lá, horas e horas intermináveis contemplando minha vó.
E só ali na tranquilidade absoluta dos mortos choramos eu e minha
avó na nossa intimidade, na nossa cumplicidade, sem palavras. Ali, ora
escrevendo, ora chorando me despedi dela
Nome: Irani Coutinho Fonte
Insuficiência respiratória
Acidentes Vascular Celebral
Hipertensão Intracraniana
Sexta feira da paixão. A vó morreu onde eu nasci. O café
já vai frio, não tem bolo, arroz doce ou tão pouco pudim.
Ela desejava ir para Cataguáses. Eu ao seu lado ver fotos antigas. Sexta
feira da paixão , Minha vó morta. Jesus crucificado.
Amém
Julio
A morte absoluta
MORRER.
MORRER DE CORPO E DE ALMA
COMPLETAMENTE
-
MORRER SEM DEIXAR O TRISTE DESPOJO DA CARNE,
A ENXAGUE MÁSCARA DE CERA,
-
CERCADA DE FLORES,
QUE APODRECERÃO - FELIZES! - NUM DIA,
BANHADA DE LÁGRIMAS
NASCIDAS MENOS DE SAUDADE DO QUE DO ESPANTO DA MORTE,
-
MORRER SEM DEIXAR PORVENTURA UMA ALMA ERRANTE...
A CAMINHO DO CÉU??
MAS QUE CÉU PODE SATISFAZER SEU SONHO DE CÉU?
-
MORRER SEM DEIXAR UM SULCO, UM RISCO, UMA SOMBRA,
A LEMBRANÇA DE UMA SOMBRA
EM NENHUM CORAÇÃO, EM NENHUM PENSAMENTO.
EM NENHUMA EPIDERME.
-
MORRER TÃO COMPLETAMENTE
QUE UM DIA AO LEREM O TEU NOME NUM PAPEL
PERGUTEM: " QUEM FOI?..."
-
MORRER MAIS COMPLETAMENTE AINDA,
SEM DEIXAR SEQUER UM NOME.(Manoel Bandeira)