A Garganta da Serpente
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A gárgula

(Leonardo Praciano)

Foi lhe avisado que permanecesse quieto, endurecido do peito para baixo; que não espantasse a pomba rechonchuda no peitoral ou batucasse na gárgula, qualquer samba.

A negociação beirava entre silêncio e gaguejo, beirava às casas delirantes de Hendrix e o desatinado jogava para os curiosos, migalhas de seu misto como prova real de que nada queria naquela hora.

O homem sentado no pára-peito olhava para sua frente ornada pela triste postura de uma agência bancária; inclinava para o chão e minúsculas, as pessoas buscavam sua face, buscavam uma piada e o melhor ângulo para sua queda; distante notou o preço do marmitex e viu que aquela gente tinha fome...

Pegou uma foto da carteira, jogou-a para a multidão e ficou olhando enquanto o bombeiro flertava sua vida.

Estava localizado um pouco acima da janela do vigésimo terceiro andar, estava no terraço, no heliporto, na casa das máquinas... Importunando pombas e trabalhadores que esperavam logo sua queda, pois já se acabava a hora do almoço, queriam palitar os dentes. Como um desocupado como aquele tinha a audácia de prorrogar seu showzinho nos impedindo de voltar ao serviço, nos cansando com essa posição de olhar pra cima? Quem ele pensa que é?

Todos repetiam esses açoites incansavelmente. Todos se indagavam, esperando que algum conhecido do infeliz, passando pelo local, pudesse relatar a infância do indigente, seu último emprego, a mulher que havia lhe traído; seu bairro, ônibus, salário, categoria da habilitação, time do coração, último salário, se tinha irmãos, se eram casados, se ia à igreja ou era batizado; se sabia de quanto saíra o jogo de ontem ou se estava apaixonado:

Capricho do coração para animar beijos e dias da semana.

Na verdade, haveria um linchamento caso não houvesse ação, um motim pela honra da sociedade paulista que não pode enferrujar e nem admite ouvir tal comentário à seu respeito.

Parar esse compasso tão minimétricamente bem pensado? Nunca! Deus sabe o que faz!

Já se fazia horas desde o acúmulo de pessoas a procurar a pipa mandada, e desde o momento em que o sujeito aterrissou naquele pára-peito e se permitiu admirar, nada mais ocorreu; a entrada dos bombeiros, da polícia sempre segura de si, da televisão, da rádio, dos pregadores que entusiasmados clamam por Deus à vida do miserável que hoje quis tirar o dia para brincar de "pomba-humana" e jogar migalhas de misto-quente frio para a galera que acompanha sem fechar o bico - nem canta algo que lembre bico -, a tentativa de primeiro voou do já velho pardal.

Nada disso altera o comportamento do bem comportado suicida, se é que é essa sua meta; se for, brilhante!

Nada como um meio de semana para se parar uma rotina, nada como se parar um meio de semana; a gordura das cadeiras pedem essa pausa; os ponteiros sifilíticos dos administradores, os saltos-altos cochos e depravados das moças musculosas e tudo mais que o mercado revende; tudo protesta à favor dessa paralisação, dessa greve geral incentivada pelo ato nobre do pobre desocupado que ali, não faz nada além de olhar à sua volta, absorto em tudo e em nada.

Alvoroço em torno do churrasco grego... Os que chegam, deliram com a atração, analisam para não terem qualquer estupefação como amigo desesperado, namorado entorpecido, qualquer coisa que não se pode ser na beira de um prédio desse tamanho; logo se acomodam num embalo só, todos agitam, chamam o aterrorizado pardal, que do ninho não mostra o que pensa.

Que desista da bestial tentativa de voo, se entregue à polícia, se convença na negociação e seja esquecido após tirar os pés da beira.

Na verdade, ninguém suportaria ter que conviver com mais um cadáver, um autêntico que precipitou na clara aurora do meio-dia...

Justo ao meio-dia!! Horário sagrado de descanso e reflexão. Dê um tempo!

Não admitimos insolência ao nosso caráter como cidadão... A verdade é que o tempo já se lembrava que estava no meio do verão, e cortando um arranha-céu bainha, uma nuvem já expulsava o sol, preparando vias e sapatos para seus respectivos açoites.

Já a gárgula de lá não se movia, quieta assimilava o alvoroço que lá embaixo movia-se como um chafariz; ambulantes esqueciam de vender seus artefatos, enquanto ligeiros não esqueciam de surrupiá-los; oportunistas sacavam binóculos do nada e do nada começavam a gritar o melhor binóculo no melhor preço, e ali se viu bom negócio e péssimo coral; os animadores de rua com seus truques hipnoticamente manjados e todo o restante da trupe urbana fitava a estátua que dali nunca sairia ou nunca existira. Na diagonal da sua esquerda, uma mulher estendia roupas no varal do seu prédio, do seu lado, pousava uma pipa com trapézios verdes e vermelhos... Consequentemente, vinha-lhe a voz:

- Tio! pega esse pipa...é meu"!

- Então busque um saco de açúcar pra mim.

O moleque que, só sendo moleque para driblar a concentração de bombeiros postos a alguns metros do rapaz, foi voando para casa, raspando da dispensa o último saco de açúcar da casa - para a limonada, se daria um jeito. A volta foi triunfante:

Na algazarra serena dos bombeiros que não tiraram aquele dia para negociar uma vida, tão acostumados em apagar apartamentos e resgatar submersos nas ruas paulistas, esperavam qualquer coisa do tipo, resgatar qualquer corpo enlamassado rotineiro, ser mensageiro da vida e da morte... agora, negociar com um doido varrido? Não hoje! Não agora!

Há quem estava com férias atrasadas, há quem estava pensando no pré-natal, há quem queria estar no lugar da gárgula; julgando-se mais incisivo, o menino lançou numa mão o saco branco, na outra recebeu o pipa inteiro, pronto para ser cortado ou coroado, enquanto o infeliz do dia rasgava a veia branca na ponta, derramando com carinho o pó cristalino para baixo, para a roda do baralho que ficara mais emocionante que seu flagrante, para cima da "mão" de aposta que já dava 5 para 1 para enterro; como neve, a matéria-prima nacional caia sobre todos, e todos maravilhados buscavam experimentar o tal pó que chegava do céu; a ânsia de conhecer a tal dádiva aos poucos diminuía com o reconhecimento do material que fica melhor na Ana Carolina, na caipirinha e aos poucos foram cuspindo e não dando atenção aos minúsculos cristais de açúcar que corriam para o chão, logo a calçada forrada, tanto de açúcar como de pessoas, numa relaxada receita agridoce, permanecia em total concentração, na espera do final da novela que tanto entreteu essa hora do almoço, mas já há muito enjoando a paciência coletiva. Descobriu-se que a gárgula na verdade era Romildo Pinto, pintor de prédios, casas e salões, que gozava de férias de quinze dias e hoje, escolhera o dia para ficar na ponta de um prédio.

Agora calmo, dialogava com a corporação de salva-vidas pacificamente como se discutindo sobre a infância ou sobre o amor.

Parecia persuadido a largar tal destino, além do mais o vento já ficava mais forte, o perigo de queda era evidente, além do mais o almoço já terminara; logo, tudo voltaria ao normal; a gárgula seria salva e esquecida em alguns dias ficando apenas sua horrenda face de dor, pavor e carne-viva; as cinco da tarde chegariam, todos voltariam para as casas e as casas teriam televisões.

A multidão já se espalhava, voltando a ser filas e filas, a foto atirada no início se destacava no formato de uma morena 3x4, de sorriso constrangido e olhos perdidos;o pobre Romildo ainda se encontrava no parapeito, mas os bombeiros do seu lado já preparavam o bote e tudo sairia como no script.

O helicóptero da TV já se afastara para cobrir nova situação interativa; Romildo olhava para o chão, e distante avistou o caminhar de uma senhora com sacos abarrotados de compras; era os tecidos para a confecção do seu traje que seriam usados no casamento de seu irmão com Tamires.

- Meu irmão vai se casar, Seu bombeiro. Ele é mais novo e deu certo na vida. E se tivesse aqui, ia pedir uns trocados para quitar a prestação do fogão e da geladeira... Vamos indo, tenho que providenciar os comes e bebes...

Estão todos convidados! Levem as crianças, vai ter muitos doces e um bolo de 21,87 jardas.

Os bombeiros, displicentes com o convite e absortos só em retirar o pobre homem, lhe davam coordenadas serenas e atenciosas para o fim da investida. O homem já chegava para ser salvo; debaixo, os que sobraram assistiam com grande agonia e todos os sinais e superstições possíveis eram depositados ao momento do resgate.

Chegara a hora e há quem fique frustrado com final sem fim. A pipa volta ao céu com uma rabiola que parece varal de circo.

O almoço das "Uma" será servido, a competência ajuda a atravessar a rua.

Romildo pisa no terraço... caminha até o elevador, sai pelo saguão e some na multidão.

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