A Garganta da Serpente
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Onde está a chave?

(Juliano Martinz)

Eu duvidaria que poderia me sentir livre, novamente. Nova mente, bem nova, fresquinha, direta do forno. Confesso que duvidaria. Dúvidas de homem disforme. Coisas que vem e vão numa mente metade confusa, metade caótica. Eu achei que assim poderia evoluir - um homem sem planos que cresce, e cresce, e cresce. Mas não consegui dar muitos passos. Nada além disto aqui, essa pequenez, essas paredes que sufocam e sufocam. Apenas cumpro as regras que me ditam. Não há muito o que dizer. Todo meu universo caberia em apenas uma linha. Com meus medos, acho, encheria um romance. Com meus traumas, talvez, preencho um conto.

Eu deveria duvidar. Talvez, por isso, eu duvide.

Tudo começa (ou termina) quando ela resolve desaparecer. Para um jovem homem velho, lidando com fantasmas e desprovido de qualquer amor-próprio, perdê-la poderia ser fatal. Perdê-la é fatal. De bem, invadida, a saída, pequena e útil e absolutamente vital - ela, a chave do meu apartamento. Levo a mão à porta, a certeza de que ali ela está, repousando inerte sob algum encanto do Poderoso Tédio... mas não está. Inexiste. Sem sombras, rastros ou resquício. Isso pode soar natural. Não para um jovem homem velho tão metódico quanto o timbre patético dessa história. Eu jamais tiro a chave da porta quando estou em casa. Jamais. A afirmação de um jovem homem velho pode parecer vaga, nada confiável. Confesso que poucas coisas são confiáveis no meu universo de uma linha só, mas se tenho certeza de algo, é de que a chave não foi tirada dali pela minha pessoa. E moro sozinho. E não tenho empregada. Logo, ela deveria estar ali. Logo... até logo.

O que fazer? Fico com a mão estendida, perturbado com a inédita e maledicente surpresa que se posta em meu mal elaborado plano. Estou atrasado pela terceira vez para o trabalho. Faria diferença se fosse a segunda ou a quarta? Definitivamente não. Definitivamente, não há nada definido, exceto o não haver da maldita chave - outrora bendita, pelo menos enquanto em sua distraída presença. Se essa é a definição, preciso de solução, ação. Então, olho ao redor, procurando. O chão, a mesa, a pia, o armário, a carteira, uma foto de quando a pedi em casamento, não a chave, a outra "ela". Lá vem melancolia. Sinto-me deprimido. É a primeira vez que me sinto deprimido essa semana. É segunda-feira. Maldita segunda-feira. Maldita chave.

Tento ignorar detalhes ignorantes. Ignore. Ignição. Movimente-se. Volto a procurar a chave. Melhor assim. Procuro por vários minutos. Dez ou quinze. Canso. Estou cansado. Tenho procurado por minha essência por trinta e seis anos, mas me bastaram dez ou quinze minutos atrás de uma chave para sentir vontade de colocar minha cabeça dentro de uma privada e puxar a descarga. Por que não? Juro que penso: por que não? Pedaços de respostas: por causa disto aqui, por causa daquilo ali, por mim, por nós, por Deus! Respostas que não respondem nada, mas que me impedem de dar um passo a mais. Um passo a mais para fora de minha loucura, ou para dentro dela de uma vez por todas. Que importa?

Por ora, deixo a privada de lado. Junto frações de coragem-feição-de-derrota-mascarada, e volto a procurá-la. Já olhou sobre a penteadeira? Eu não tenho penteadeira. Sobre a TV? Só o controle. Sobre a cama? Só a colcha. Sobre a sobriedade? Somente só. Pó e poeira. Restos que restam de uma vida monótona e imutável. Somente só. Que importa?

No desamparo, paro no meio do apartamento. Centralizado. O que olhei e o que não olhei? É mais fácil verificar superfícies, concluo, sentindo-me satisfeito de que seja capaz de concluir alguma coisa. Superfícies são mais vulneráveis, nada camufladas. De super, superfície nada tem. É exposta. Fraca e evidente. E todas fracas superfícies já foram examinadas, pobres coitadas. Então, a chave só pode estar guardada. Eu sou um gênio! Gavetas, gênio. Gavetas. Do armário. Da pia. Do guarda-roupa. Procuro como se fosse um moribundo num deserto atrás de água (a propósito, eu sou um moribundo num deserto atrás de água). Mas nada. Nada de nada vezes nada elevada a nada igual a nada. Não é possível. A chave inexiste. A grande questão é: existiu algum dia? Talvez tenha ficado invisível, como eu. Sou tão oculto quanto uma chave perdida. A invisibilidade no reflexo do banheiro. Desproporção covarde. E lá vem a vontade de enfiar a cabeça... Xô privada!

Às vezes, gostaria que as coisas fossem mais simples. Às vezes, acho que as coisas serão mais simples. Mas na maioria das vezes, acho essas coisas de "ser simples", bastante complicadas. Por isso, não gosto de pensar muito. Penso, logo canso. Então tento simplificar as coisas sem pensar, sem complicar. Como uma chave que nunca sai do seu lugar, para evitar situações embaraçosas e estressantes como essa que passo agora. Planos abstratos. Intentos jamais concluídos. Desígnios falhos... basta humanos, provam-se falhos. Não importa o que eu faça, os fatos se embaralham nessas vicissitudes de um universo de uma linha só. Desde sempre foi assim. Desde sempre a desde nunca: a vida e seu desdém.

Decido respirar um pouco. Sento no sofá e tento relaxar. Boa essa! Relaxar! Já disse que sou bom com piadas? Pode acreditar que sim, afinal, vivo uma há trinta e seis anos. Desvivo, melhor dizendo. Pior dizendo, deveria dizer. "Melhor dizendo" está em falta. Previsão de chegada: dois séculos e meio. Volte sempre. Sem pressa, por favor. Porque aqui o opróbrio anda enquanto a vida desanda. Por isso (e só por isso), melhor sentar. E melhor deixar a piada do "relaxar" pra lá, mesmo porque já perdeu a graça.

Volto a apanhar a foto dela, da minha ex-esposa. Sou invadido por questões estúpidas, como: o que ela estará fazendo agora? Em quem estará pensando? Em quem? Não em mim, obviamente. Eu não a faria feliz. Eu não a fiz feliz. E o que se poderia esperar dum homem que é incapaz de saber onde a chave do seu apartamento foi parar? Inferno, por que ela me abandonou?

Pego meu celular. Ligo para um colega do serviço. Só tenho colegas, não amigos. O que vou dizer para ele? Que vou chegar atrasado mais uma vez? No ritmo que estou, duvido que chegue. Apenas ligo. Do outro lado: tuuuu... tuuuu.... tuuuu... E nada mais. Deveria esperar algo mais? O toque do outro lado da linha faz mais sentido do que minha vida que apenas se desalinha. O toque é uniforme, ao menos. Vida minha, por que esse semblante disforme? Vida minha... tuuuu... tuuuu... tuuuu... Quando a gravação diz para deixar um recado na caixa postal, hesito, suspiro, e hesito. Às vezes hesito sem nenhuma razão aparente. Gosto de hesitar - costumo assumir um ar intelectual nessas horas. Faço pose - crasso close. Até que, sem saber o que dizer, muito menos o que desdizer, digo:

- Ehhh... aconteceu algo estranho. Minha chave... A saída. Não há saída. Estou preso... Inferno, por que ela me abandonou? - E desligo.

Não sei se o que meu colega vai pensar ao ouvir a gravação. Não importa o que eu dissesse, ele jamais me entenderia. Quem vai me desdizer? ... silêncio... Que importa?

Na falta do que fazer, cometo a mais grave de todas as faltas: ligo a TV. Escolho um canal qualquer - eles são todos iguais. Comercial. A melhor programação da TV são os comerciais. Exceto comerciais anunciando cerveja. São mais imbecis que qualquer coisa.

E então, um ar de falência por todo o redor. Esse ar me cansa, me sufoca. Não há sobriedade, por mais que eu tente. Invento outros ares, outros ventos - apenas intentos. Continuo sufocado. Talvez devesse abrir as janelas. Talvez devesse pular a janela. Talvez devesse esperar que o próximo comercial me mantenha num limite considerado seguro de minha insana postura destrutiva.

Acabam-se os comerciais. Começa um seriado. Parece bacana. É um desses seriados com voz em off. Gosto de filmes e seriados narrados em off. Se fosse filmar minha vida um dia, eu colocaria uma narração em off. Parece-me despretensiosa e, ao mesmo tempo, coesa e completa. Um narrador sempre preenche lacunas - minha vida tem lacunas multiplicadas por infinito. Os momentos fazem sentido, mesmo se não houver tido sentido ao redor.

Começo a acompanhar a estória com vivo interesse. Por incrível que pareça (não desapareça), me interessei por algo nas últimas quinhentas e vinte e duas horas e vinte minutos. Um excelente progresso. Por instantes, esqueço a ex, a privada, a janela que me convida ao culto "você-pode-voar-se-tiver-fé". Esqueço até que esquecer faz parte de um processo de libertação da minha mente e do meu corpo de uma decadência chamada "compromisso". Então esqueço tudo ao meu redor - deixe o emprego pra lá - essa condensação dispensável. Por ora, sou apenas vapor. Estou em todo lugar, em lugar nenhum. Oculto, como sempre. Mas dessa vez, por escolha. Oculto das regras, oculto dos patrões. Alguém pode notar minha falta nesse momento, mas não eu. Estou aqui, sentado nesse sofá, contemplando essa sublime segunda-feira. Livre do domínio do senhor Compromisso.

Então me convenço de algo. Levanto-me e volto até a porta. Incrível. Inacreditável. Lá está ela, a chave. No seu devido lugar. Nunca deixou de estar ali, exceto por minha mente cansada da condensação, decidida a me manter oculto dos olhos de todos ao meu redor. Vapor. Sorrio diante da proeza de minha mente em conseguir enganar meus próprios olhos. Um instante para mim. Uma liberdade extra. Compre uma e leve duas. Obrigado pela preferência. Volte sempre.

Uma sublime segunda-feira.
Para mim, pelo menos por hoje, um sublime feriado.

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