A Garganta da Serpente
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Conto

(Josie Mendonça )

Era sábado, dezenove e vinte da noite, pessoas e automóveis passavam freneticamente pela avenida paulista. Bares, lanchonetes, padarias a todo vapor na cidade de São Paulo. Cidade cosmopolita e insone, que abriga toda uma confusão peculiar de uma grande metrópole. Paulo se sentia solitário e perdido nesta grande cidade, jornalista e oriundo de Ribeirão Pires, intelectualizado e fumante inveterado, escolheu um dos cafés da cidade, onde os intelectuais, pessoas comuns, colegas que queria bater um papo, e pessoas solitárias se encontravam. Era ali que Paulo gostava de ir, costumava sentar, ler, ou escrever seus texto em um notebook, fumar muitos cigarros e beber à vontade. Naquele sábado ele estava lá, sentado a uma mesa, fumando, lendo um livro e tomando um conhaque, sua expressão facial era um mi sto de serenidade e inquietação, parecia extremamente entretido com o que lia, pessoas entravam e saíam e ele sequer notava o que se passava a seu redor. Tirou os óculos, limpou as lentes na camisa e pôs novamente, passou a mão pelo cabelo deixando-os desalinhados, o livro estava interessante. Caio, Isabel, Jorge e Raquel chegaram ao café, estava cheio, logo encontraram uma mesa, estavam animados, falavam sobre trabalho, já que todos trabalhavam juntos. Caio, rapaz moreno, cabelos lisos, sempre ríspido, sarcástico e algumas vezes arrogante, falava demais e apesar de crítico, também era muito carinhoso, amável e zeloso. Isabel, sempre descontraída, ria muito, ria de tudo que era dito, sempre muito expansiva e falante, abraçou Caio. Raquel não parava de se queixar das horas-extras e do ex-marido e Jorge com seu humor-negro e ácido, fazia piadas tenebrosas com todos que estavam a seu redor, nem seus colegas de trabalho escapavam. Jorge era o mais velho do grupo , tinha trinta e seis anos, baixinho, gordinho e careca. Casado e pai de dois filhos. Raquel era divorciada e morava sozinha e tinha dois gatos. Morena e baixinha. Tinha cabelos curtos, lisos e usava óculos. Tinha trinta e quatro anos. Como Paulo, gostava de escrever, já tinha publicado dois livros de contos e no período da faculdade, foi atriz de teatro. Isabel, sempre vaidosa, gostava de retocar as luzes dos cabelos, para ficar sempre loira, e naquele dia, estava bem sedutora, usava uma blusa decotada, volta e meia recebia beijos de Caio, no pescoço.
Paulo resolveu dar uma pausa na leitura para observar o ambiente e logo se deparou com os colegas de trabalho, rindo e conversando, sentiu-se ignorado, não havia sido convidado para a confraternização, sua antipatia por Caio tinha aumentado, sempre o detestou, sempre odiou lidar com a agressividade e rigidez do rapaz que sabia mais do que ele e estava incumbido de lhe ensinar o serviço, já que Paulo era novato no emprego. Uma tristeza tomou conta de Paulo, seus colegas de trabalho reunidos, alegres, rindo e ele deixado de lado. Algumas vezes conversava com Jorge e era vítima de suas piadas, não se ofendia, mas também não achava graça. Uma vez Jorge havia pedido desculpas por achar ter pegado pesado demais, mas Paulo disse que estava tudo bem.
Jorge, Caio, Isabel e Raquel fizeram seus pedidos a garçonete. Paulo acendeu mais um cigarro e voltou a ler, aborrecido. Caio sempre sendo o centro das atenções, muitas pretendentes, mas não se apegava a ninguém. Falava de sexo abertamente e fora do trabalho não economizava na linguagem de baixo calão. Paulo, sempre tão reservado e introspectivo, odiava sua popularidade, odiava todos os palavrões que ele xingava. O que aquele rapaz tinha que ele não tinha? Lia para fingir que Caio não estava ali, para esquecer que aquela turma, que não o havia convidado, estava ali.

- Nossa, o Paulo! - Disse Isabel.

Todos olharam.

- É mesmo, olha o cara ali! - Disse Jorge. - Paulão!- Gritou.

Paulo olhou surpreso.

- Chega aí! - Chamou ele fazendo gestos com a mão.

Paulo fechou o livro, apagou a bita de cigarro no cinzeiro, pegou seu conhaque e juntou-se aos colegas.

- Eu te liguei pra te convidar pra vir com a gente, mas seu celular tava fora de área. - Disse Raquel.

Paulo sorriu aliviado. Percebeu o equívoco de suas conclusões a respeito do grupo. Jorge também acendeu um cigarro.

- Ah não! Cigarro ninguém merece! - Reclamou Raquel.
- É que o Paulo me deixou inspirado a tragar um pouquinho de alcatrão, nicotina e mais um monte de substâncias cancerígenas. - Brincou Jorge.

Todos riram. Isabel também acendeu um cigarro.

- Que horror Jorge! - Disse Isabel.
- Eu vi ele fumando ali na outra mesa. - Contou Jorge.
- É difícil largar o vício. - Disse Paulo.
- É difícil, mas não é impossível. - Disse Caio com sarcasmo. - Um pouco de força de vontade não faz mal a ninguém.

Paulo se irritou com o comentário de Paulo, mas ficou quieto.

- É Paulo e Isabel, a gente tá lascado na mão desses ex-fumantes. - Brincou Jorge.
- Eu não sou ex-fumante, nunca fumei na vida. - Contou Raquel.
- Mas vocês é que estão certos. - Disse Paulo aos não fumantes. - A gente é que tem que parar de fumar.
- Paulo, me disseram que você é escritor. É verdade? - Indagou Isabel. Deu uma tragada.
- É.
- O Paulo escreve textos muito bons. - Recomendou Raquel.
- Você não é daqueles escritores piegas, que escreve aqueles poemas pegajosos, que ninguém tem paciência de terminar de ler? - Implicou Caio.
- Caio, deixa o Paulo em paz! - Pediu Isabel, ainda abraçada ao rapaz.
- Por que se você for um deles, eu juro que queimo seus livros.

Todos riram. Paulo ficou constrangido e irritado com o ataque, não sabia o que fazer, precisava tomar uma atitude ou passaria o resto da noite sendo fustigado por Caio.

- Acho que vou pedir uma cerveja. - Disse Jorge procurando uma garçonete disponível. - Vai querer um também Paulão?
- Ele tava tomando outra coisa, se ele misturar bebida vai acabar vomitando na mesa e estragando a nossa noite. - Disse Caio.

- Caio, deixa o Paulo! - Pediu Isabel novamente.
- Para de fumar perto de mim Isabel! - Pediu o rapaz com autoridade. Isabel apagou o cigarro no cinzeiro.

Paulo sentia um frio na barriga, uma irritação tremenda, muito ódio daquele rapaz insolente e desafiador, percebeu que Caio estava testando a sua paciência.

- Não Jorge, eu não quero beber nada. - Respondeu Paulo, visivelmente transtornado.
- Garçonete! - Gritou Jorge.

Paulo acendeu mais um cigarro. Caio e Isabel se beijaram.

- Puxa vida, a gente tem que fazer malabarismo pra uma garçonete enxergar a gente aqui. - Brincou Jorge rindo da situação. - Todo bar, café e restaurante eu tenho que passar pela saga de chamar o garçom.
- Paulo, me fala mais sobre o que você escreve! Você quase não fala nada de você. - Pediu Isabel.
- Eu escrevo romances e contos.
- Amigão, dá pra parar de fumar! - Pediu Caio, irritado com a fumaça do cigarro de Paulo.

Paulo não aguentou tamanha implicância e resolveu dar um basta.

- Você pelo visto é muito correto, muito superior, muito perfeito. Por que você não monta um pedestal e fica ali, posando de homem santo, já que você é perfeito demais pra conviver com pessoas tão cheias de defeitos!- Enfrentou Paulo, calmo e irônico.
- Eu só tava brincando. - Defendeu-se Caio surpreso com a reação do colega. -
- Não, você não tava brincando. - Desmascarou Paulo.
- Calma gente! - Pediu Raquel. - Não vamos brigar, viemos aqui pra nos divertir gente.

Um silêncio tomou conta da mesa, Paulo respirou fundo, se sentiu aliviado e deu mais um trago. Caio e Isabel se beijaram. A garçonete chegou à mesa.

- Pois não!
- Me dá mais uma cerveja. - Pediu Jorge.
- Me dá mais um capuccino. - Pediu Raquel. - E pode trazer também uma porção de Croissant de frango.
- Pode me trazer um café expresso. - Pediu Paulo.
- Traz um pra mim também. - Pediu Caio.

A garçonete anotou os pedidos e se retirou. O clima ainda era de silêncio. Caio definitivamente tinha se dado por vencido e resolveu deixar Paulo em paz, ele por sua vez, soltou a fumaça do cigarro bem no seu rosto Caio, para deixá-lo ainda mais irritado.Caio apenas fez cara feia, mas não reclamou.
Jorge fez mais uma piada com o ambiente, todos riam, estavam descontraídos e animados. Isabel até sugeriu que depois dali todos fossem a uma danceteria.

- Ah não! Vou pra casa depois daqui. - Disse Raquel.
- Tá ficando velha hein Raquel! - Brincou Caio.

- Deixa de ser velha mulher! - Brincou Jorge! - Vamos sair pra dançar!

Raquel riu da brincadeira.

- Não gente, é sério, eu tô cansada mesmo, daqui eu vou embora pra casa. - Disse Raquel.
- Aonde a gente vai Isa? - Perguntou Caio.
- Tá cedo ainda. - Disse Jorge. - Depois a gente pensa nisso.

Isabel solicitou novamente a garçonete e todos pediram mais uma rodada de cerveja, menos Paulo, que preferia beber conhaque ou vodka. Muita conversa, muitas piadas e Paulo ia se soltando, Caio falava com ele como se a discussão, ocorrida há minutos atrás não tivesse acontecido e Paulo também parecia ter esquecido o episódio.
Às vinte e uma e dez, Caio, Isabel, Raquel, Paulo e Jorge pagaram a conta e deixaram o café, Raquel pegou carona no carro de Paulo. Caio, Isabel e Jorge foram no carro de Jorge.

- Tem certeza que não quer ir com a gente? - Insistiu Paulo.
- Não, tô cansada.

Os dois carros seguiram e para a casa de Raquel no bairro de Moema, no caminho, muita conversa e muitas piadas de Jorge. No carro de Paulo, o assunto era literatura e ética jornalística. O percurso era longo até o destino, Paulo dirigia e conversava e ao mesmo tempo pensava na vida, Raquel olhava para Paulo com outros olhos, não o via apenas como um colega de trabalho, gostava dele como homem, se sentia atraída por aquele rapaz tão introspectivo e sério.

- Quantos anos você tem Paulo?
- Vinte e oito, faço aniversário daqui a dois meses. E você?
- E tenho trinta e quatro. Você tem namorada?

Paulo riu.

- Não, eu não tenho namorada.
- Então você ta livre para amar, como eu.

Paulo sentiu um frio na barriga, respirou fundo.

- Esfriou de repente. - O rapaz mudou de assunto.
- Eu adoro frio, principalmente quando tem alguém pra me aquecer.

O assunto literatura e ética jornalística tinham sido deixados de lado, Raquel estava interessada em outra coisa naquele momento. Paulo se sentia numa saia justa, não sabia que atitude tomar, mas ao mesmo tempo se sentia valorizado, aquela cantada de alguma forma tinha elevado sua autoestima, que há algum tempo andava baixa.
Jorge, Isabel e Caio falavam de política, era o assunto que esteve em pauta no ambiente de trabalho e estava naquele momento, seria a próxima reportagem que sairia no jornal, só faltava imprimir os exemplares. Os trabalhos da prefeitura da cidade seriam a reportagem principal, na primeira página. Todos estavam contentes com a matéria que haviam feito sobre o assunto. Jorge colocou um CD de rock nacional no aparelho de som. A noitada seria uma forma de comemorar o sucesso do trabalho e se divertir um pouco.
Raquel não desistia da investidas e Paulo, por sua vez, fingia não entender o que se passava, era forma de vencer Raquel pelo cansaço, já que de sua parte não havia interesse.
Faltava pouco para chegar ao prédio onde Raquel morava, como Paulo não sabia o caminho, seguia Jorge.

- Esse bairro é ótimo! - Disse Paulo. - Na minha opinião é um dos melhores de São Paulo.
- Eu tô gostando de morar aqui.
- E eu tô querendo me mudar pra cá.
- Onde você mora?
- Na freguesia do ó.
- Passei toda a minha infância e adolescência na Freguesia.

Jorge parou o carro em frente ao condomínio onde Raquel, Paulo dirigiu-se até a portaria e Raquel avisou ao porteiro que eram seus amigos, todos entraram e deixaram os carros no estacionamento. Caio e Isabel se beijavam, Raquel olhava para Paulo e ele desviava seu olhar. Todos foram para o elevador e desceram no quinto andar. O apartamento era o 506, ao entrarem todos logo viram dois gatos, um deitado no sofá e outro acomodado no tapete, bem à vontade.

- Gente, vamos entrando e fiquem à vontade! - Recepcionou Raquel.
- Esses bichanos são bem preguiçosos! - Comentou Isabel agachando para acariciar o gato no tapete.

Todos se acomodaram no sofá da sala, Raquel fechou a porta. O gato do sofá logo se acomodou no colo de Jorge, este começou a acariciar o animal felpudo. Isabel pegou o outro gato no colo e sentou-se ao lado de Caio. Paulo ligou a televisão e pôs num fechado canal de documentário, que pertencia ao pacote de TV por assinatura, o documentário falava sobre as múmias do Egito. O assunto parece ter interessado a todos. Antes de trabalhar para o jornal, Jorge já havia trabalhado como repórter e já tinha viajado para o Egito para fazer uma reportagem sobre as pirâmides. Raquel foi até a cozinha e voltou com uns petiscos, pedaços de queijo prato.

- Gente pode pegar cerveja na geladeira! - Ofereceu Raquel.

Todos foram a geladeira e cada um pegou uma latinha de cerveja, voltaram para a sala e saborearam com o queijo prato. Os gatos saíram dos colos e foram para o tapete.
Raquel ainda não tinha desistido de conquistar Paulo, sentou-se a seu lado. Mais uma piada de Jorge e todos novamente acharam graça.

- Essa múmia aí ta mais bonita que a minha sogra. - Brincou.

As gargalhadas foram gerais.

- Coitada Jorge! - Comoveu-se Isabel. - Eu conheci a sua sogra, ela é tão simpática!
- Com os outros ela é simpática mesmo, mas com os genros, xiiii! É o cão chupando manga! - Explicou Jorge entre gargalhadas. - Mas uma coisa é fato. Essa múmia tá mais bonita do que ela.
- Quero morrer seu amigo. - Brincou Caio.

Raquel sentou no colo de Paulo. Ele ficou encabulado, sem saber o que fazer, foi logo surpreendido por um beijo no pescoço, mas na hora do beijo na boca, desviou, sentia vontade de empurrar Raquel de seu colo, mas logo encontrou uma saída, ir ao banheiro. Pediu licença para a colega levantou e foi ao toalete. Raquel percebeu que não ia ser nada fácil conquistar Paulo. Caio e Isabel se beijavam, não era namoro, era uma relação sem compromisso, mas ambos estavam curtindo aquele momento. Jorge ainda fazia piadas sobre as múmias e sobre sua sogra, mais gargalhadas. Pouco a pouco o queijo ia acabando. Na geladeira da cozinha havia cerveja à vontade e Raquel já deixou avisado que se alguém quisesse beber mais, era só ir até a cozinha pegar uma latinha.
Os gatos pularam no sofá e se aconchegaram, um no colo de Raquel e outro no colo de Isabel.

- Esses gatos são feministas, só gostam do colo das mulheres. - Jorge soltou mais uma piada.
Mais gargalhadas. Paulo chegou a sala e logo foi recebido pelos carinhos de Raquel.
- Quer mais cerveja, meu anjo? - Ofereceu a moça insinuante.
- Não, obrigado! - Paulo deu uma resposta ríspida.
- Se quiser é só me pedir que eu te trago uma. - Ela insistia na doçura.
- Se me der vontade eu vou buscar na cozinha.

O rapaz se esquivou do chamego e se sentou ao lado de Isabel, procurou ignorar os estalos dos beijos do casal. Desconsolada, Raquel deitou a cabeça no ombro de Jorge. Ele foi receptivo, fez-lhe um carinho no cabelo.
Os queijos acabaram, Isabel se levantou para buscar mais na cozinha. Paulo acendeu um cigarro, Jorge acendeu outro, os dois fumaram.
Mais queijos, mais cerveja e a conversa continuava, na televisão passava já passava outro documentário, dessa vez falando sobre o Triângulo da Bermudas. Caio pegou o controle remoto da TV digital e pôs num canal adulto, passava uma reportagem sobre a prática da troca de casais em casas de swing. O assunto interessou a todos.

- Vocês já praticaram swing alguma vez? - Indagou Raquel aos colegas.
- Eu já. - Contou Caio. - Comecei a três, com dezoito anos, eu e mais duas garotas. Swing mesmo foi aos vinte e um.
- Eu já fui numa casa de swing com meu ex-namorado, mas nunca pratiquei.Só praticamos sexo a três, mais conhecido como ménage a trois. - Disse Isabel. - Não é assim que chamam uma transa a três?

- Eu e a Verinha já praticamos swing. - Disse Jorge. Verinha era um caso extraconjugal. - É bom pra quebrar a rotina.
- Deixa a sua patroa saber disso. - Disse Isabel.
- Por falar em Verinha, vocês ainda estão juntos? - Indagou Raquel.
- Opa! Firma e forte. - Respondeu Jorge.

- Eu nunca fiz nem troca de casais nem ménage a trois. - Disse Raquel. - Sou muito conservadora, não sou muito aberta a esse tipo de experiência. Comigo sempre foi o feijão com o arroz.
- Feijão com arroz todo dia cansa. - Disse Caio. - Tem hora que a gente precisa de novidade.
- Concordo plenamente. - Disse Jorge.
- O papo está muito bom mais a gente precisa ir, já são onze e meia. - Disse Paulo.
- É verdade gente, não é bom nós irmos pra balada muito tarde. - Lembrou Isabel.

Todos se levantaram, se despediram de Raquel e saíram, decidiram em que danceteria iriam, a sugestão havia sido de Isabel, que conhecia bem a casa. Na saída do prédio, Paulo foi em seu carro, Isabel e Caio foram com Jorge. Durante o trajeto, Paulo contemplava a noite se paulistana, ouvia um CD de house music, era mais ou menos o mesmo estilo de música que iria ouvir na danceteria, dali a alguns minutos. No carro de Jorge, não havia nenhum CD no som, preferiu deixar em uma estação de rádio, que tocava pop rock. Como de costume, muitas piadas tenebrosas. Em seu repertório nunca faltavam acidentes, mortes e doenças.
Paulo aumentou a velocidade, costumava correr de madrugada na pista. Chegou a participar de rachas na época da faculdade e já havia atropelado uma mulher que assistia ao evento, sempre que via uma mulher morena, de cabelos curtos, lembrava-se de sua vítima, pois era assim que era aquela mulher, lembrava como se fosse ontem, ela sendo lançada para o alto devido ao forte impacto. Aquela lembrança passou em sua memória, como se fosse um filme, um filme muito difícil de esquecer.
Estacionaram os carros, desceram e foram à danceteria. A casa ainda não estava lotada, mas já tinha bastante gente, nenhum fumante, era proibido. Paulo e Jorge tiveram que fumar antes de entrar. O som ambiente era psy trance. Foram ao bar, todos pediram cerveja, menos Paulo, preferiu tomar uma água com gás.

- Essa é a última, vou dirigir não posso beber muito. - Lembrou Jorge.
- Você não deveria ter bebido absolutamente nada. - Repreendeu Caio.
- Tem razão. Ta aí, vou abrir mão dessa cervejinha aqui. Se quiserem podem tomar!
- Valeu! - Agradeceu Caio.

Aos poucos a casa ia enchendo e as pessoas se soltando, Isabel, Paulo, Jorge e Caio já dançavam na pista. Isabel sempre insinuante para Caio, ele sentia-se poderoso, com aquela bela mulher dançando para ele. Aquilo fazia bem para seu ego. Uma jovem olhava para Paulo insistentemente, Jorge percebeu.

- Vai lá cara! - Incentivou.
- Não quero ficar com ela. É toda sua!
- Não cara! Já sou velho demais pra ficar azarando. Não quero ser chamado de tio.

Paulo riu.

- Além do mais, já tenho duas mulheres no meu pé, já está de bom tamanho. - Continuou Jorge entre gargalhadas. - Cara, você é que tem que arrumar uma mulher!
- Não quero mulher nenhuma.
- Mais direto do que isso, impossível! - Disse Jorge.

Os dois continuaram dançando. O som tinha mudado de psy trance para house music. Isabel esbanjava sensualidade e despertava os olhares também dos outros rapazes que estavam ali, um deles olhava insistentemente para Isabel, Caio ficou irritado.

- Que cara abusado!
- Deixa Caio! - Pediu Isabel.
- Ele não para de olhar pra você. - Disse o rapaz enfezado.
- Seja lá quem for que olhe pra mim, eu só tenho olhos pra você me amor!

Caio e Isabel se beijaram, embalados pelo som da música. Mais uma virada e o rapaz ainda olhava para Isabel e dessa vez, ele estava mais próximo. Caio perdeu as estribeiras e deu um empurrão no rapaz.

- Amigão! Que negócio é esse de olhar pra minha mulher? Ta maluco? - Esbravejou Caio.

O rapaz ofendeu Caio com palavrões e acertou-lhe um soco no supercílio. Caio revidou com um murro no nariz. Mais dois rapazes entraram na briga e a confusão estava feita, muitos socos e pontapés. Isabel entrou no meio para tentar defender Caio, acabou levando algumas cotoveladas e até dava alguns empurrões. Rapidamente os seguranças intervieram e expulsaram todos os envolvidos da danceteria. A discussão continuou do lado de fora. Isabel começou a chorar e continuava a defender Caio, metendo-se no meio dos rapazes. Jorge e Paulo e mais algumas pessoas ali, tentavam acalmar os ânimos. Caio fez um gesto obsceno, mostrando o dedo do meio para seu rival. Ele fez o mesmo. Muitas súplicas para que a briga acabasse e finalmente houve uma trégua. Paulo ficou indignado e desabafou.

- Parabéns Caio! Você estragou a nossa noite!
- Como é que é? - Irritou-se Caio.
- Por que foi arrumar confusão com aquele cara? Quando é que você vai deixar de agir como moleque e virar um homem?
- Cala boca seu merda! - Esbravejou Caio, perdendo novamente o controle e dando um soco em Paulo.

Jorge entrou no meio da briga. Isabel gritava pedindo para que Caio parasse de agredir o colega. Jorge usou sua autoridade para encerrar a confusão. Caio e Paulo se enfrentavam apenas com o olhar. Paulo foi para o carro. Jorge, Isabel e Caio fizeram o mesmo e seguiram pelas ruas de São Paulo. Paulo colocou um CD de soul, dirigia em prantos, sentia o gosto do sangue nos lábios, o sabor da violência e da intolerância. No carro de Jorge nenhuma palavra. Caio sentia um nó na garganta, queria chorar, era consolado por Isabel. O desprezo e a indiferença de Paulo era uma forma de agressão diária e ele, no ambiente de trabalho e fora também, que havia sido revidada com aquele soco. Caio já estava cansado da atitude do colega e extravasou seu ódio com a agressão física.
Fazia muito frio naquela madrugada, cansados e silentes, todos seguiam para suas casas. Caio sentiu as lágrimas caírem de seus olhos, chorava feito uma criança no colo de Isabel. No carro, nenhum som e o humor de Jorge também havia dado uma trégua. Sem piadas, sem comentários, apenas o silêncio. Paulo seguia pela Freguesia do Ó, lembrava da briga, do soco que havia levado, da mulher que atropelou no passado.
Jorge deixou Caio e Isabel no apartamento da moça, despediram-se. Seguiu rumo a Santana, onde morava. Ali se encerrava aquela madruga, faltavam poucas horas para o dia clarear e começar tudo do zero. Afinal, a vida continua.

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