A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O saco

(J.Machado)

Eu já estava pronto para dormir, passava das onze horas da noite. Aquele dia fez muito calor! O clima estava abafado, estafante.

Já tinha colocado um pijama confortável de seda que ganhei no natal; estava cansado.(Tem dias que é assim, o trabalho mais parece um castigo. Deus que me perdoe, mas foi o que senti enquanto estava trabalhando). De repente ouvi um carro cantar pneus, como se tivesse que sair às pressas, bruscamente. Parecia na frente da minha casa. Então corri, abri a janela e o avistei quando já se afastava em alta velocidade. Não consegui identificar o tipo, nem a cor. "Deve ser um apressado", pensei. Observando a rua, notei algo nela, jogado no chão, como um saco, apesar de um tamanho maior, parecia que estava amarrado na boca.

A minha rua fica na encosta da Mata Atlântica e os vizinhos são poucos. O vizinho do lado não pára em casa, principalmente nesta época de verão! Vai para sua casa de praia. Tem uma professora aposentada, (aliás, foi minha professora nos tempos do colégio. Mora sozinha. Ela dá festas maravilhosas nos finais de ano! Da varanda da minha casa eu ouço o som das músicas. Eu tenho um amigo que não perde uma). Tem um casal de idosos que dificilmente eu os vejo, e tem o colégio bem na frente da casa. Porém, nesta época de férias escolares, permanece fechado.

No momento só tinha uma dúvida: O que deixaram ali no meio da rua? Há essa hora não passava quase ninguém! A minha curiosidade estava me forçando a descer e ver o que tinha naquele saco. Com certeza foi deixado por aquele carro. Imaginei. "Parece que se meche!" Meu Deus! Tive a sensação de que algo dentro do saco estava se mexendo! Então liguei para polícia e relatei o acontecimento. Informaram-me que todas as viaturas estavam envolvidas em ocorrência, mas tão logo uma ficasse livre mandariam ao local para fazer uma averiguação. Tomei uma decisão: vou descer e desvendar esse mistério! Meio receoso desci as escadas a passos lentos, por via das dúvidas levei um pedaço de madeira como uma estaca: vamos que seja um animal, como um cachorro feroz que abandonaram!

Assim que abri o portão grande foi a minha surpresa. O saco tinha desaparecido. O que houve? Perguntei-me. Como pode alguém o ter levado em menos de um minuto e desaparecer tão rapidamente? Corri os olhos na rua do início ao fim e nem sinal de alguém. "Seria o cansaço?" Impossível! Ali com toda certeza tinha um saco.

Voltei para casa pensativo. O que poderia ter acontecido, não passou ninguém por ali? Estava tão visível aquele saco! Parecia até estar se mexendo! O cansaço sumiu e deu lugar a uma ponta de preocupação e dúvida. "Deixa pra lá!".

Liguei a televisão. É incrível como numa hora de tensão não se consegue concentração no que se assiste, pelo menos comigo é assim, tudo parece banal e sem graça. Levantei do sofá, debrucei-me na janela e observei a tranquilidade da rua, e lá estava ele: o saco. No mesmo lugar e com aquela mesma impressão de estar se mexendo. Não é possível! Deve ser brincadeira, mas de quem? Quem há essa hora ia fazer este tipo de brincadeira?

Ao longe avistei um carro da polícia que se dirigia rápido para o local solicitado. Não perdi tempo, corri o máximo que pude até à rua. Quando abri o portão o carro da policia também estava em frente a ele. Prontamente um policial abriu a porta e falou:

- Pois não Senhor, o que ouve?

- O saco! - Apontei.

- Como?

- O... Saco, ele estava ali.

- O senhor bebeu? Fez uso de outras drogas?

- Ali no meio da rua tinha um saco que se mexia, eu tenho certeza.

- Ah, muito bem! - falou ele ironicamente e ainda concluiu: - vai ver o tal saco tinha asas e saiu voando! Vai dormir senhor!

- Claro, desculpe.

Que vergonha! Aquela situação estava ficando desconfortável, me senti ridículo junto ao policial, ainda com pijama de seda. Passei por bêbado, drogado, sabe mais lá o que... Isso não poderia estar acontecendo. Eu tinha certeza que por duas vezes eu vi aquele saco. Procurei nas gavetas ver se encontrava algum calmante, naquele momento eu realmente estava precisando. Achei um e logo tomei. Pelo menos eu durmo e esqueço disso tudo. Acreditei.

Deitei-me tentando me concentrar para quem sabe, dormir logo e sair daquele estado alucinante. Ledo engano! Estava impaciente e não conseguia relaxar, me virava de um lado para o outro e nada, o sono sumiu mesmo com o remédio.

"Vou levantar e escrever alguma coisa, quem sabe numa hora dessas não aparece uma inspiração, quem sabe não escrevo um poema!" Pensei. Aos poucos a curiosidade, aquela sensação de descobrir algo foi me arrastando até a janela. Meu Deus! Ele estava lá novamente. "O saco estava lá e estava se mexendo". Não é possível, eu não estou vendo!"Não quis acreditar, me neguei a aceitar aquela visão novamente. Voltei ao sofá e liguei a televisão. Aquilo era uma miragem, uma alucinação. O policial estava certo em rir de mim. Não vou ligar, deve ser o trabalho, aquela repartição está me consumindo, (também com tantos processos em atraso, com tanta gente cobrando com razão os seus direitos, querendo saber do andamento de suas ações, o descaso que o poder público tem com o contribuinte, a morosidade como são resolvidas as questões,) tudo isso cai sobre mim um simples funcionário que tem que dar satisfação ao publico. Talvez tenha sido isso que desencadeou essas alucinações, só pode ser isso. Desabafei.

Prometi a mim mesmo não olhar mais a janela. Mas como evitar se aquele problema estava me corroendo, me levando a loucura?

Acabei novamente por olhar a rua pela janela. Outra vez fui surpreendido. O saco não estava mais lá. Então cheguei a uma conclusão: era mesmo uma alucinação! Eu preferia que ele estivesse, pois só assim ficaria menos preocupado pelo fato de ter tido uma visão de uma coisa que não existe. Veio um monte de pensamentos. Não era possível, eu não estava tão perturbado a ponto de ver coisas, bebia socialmente, há muito tempo tinha abandonado os calmantes, tanto que a metade de uma caixa já estava quase passando da validade. Aquele saco esteve lá e por três vezes eu o vi, isso não pode ficar assim, tenho que resolver este caso, algo muito diferente está acontecendo e vou resolver.Afirmei.

Pensei em ligar para um amigo, mas desisti, ele não iria acreditar, iria rir de mim como fez o policial. Aquela situação inusitada me levou ao extremo do nervosismo. Vou sair! Decidi. Quem sabe se dando umas voltas na praia eu possa relaxar e esquecer aquele episódio macabro que estava me levando a um ataque de nervos. Tirei o pijama, coloquei uma calça Jeans e uma camiseta. Peguei as chaves do carro, apaguei as luzes. Deixei acesas somente as da varanda, por onde saí, e novamente fui surpreendido. Era ele. Estava ali na minha varanda, o saco! Parei um momento sem saber o que fazer, a essas alturas o medo tomara conta de mim. Já não tinha mais coragem para olhá-lo, mas aos poucos fui observando e constatei: estava mesmo se mexendo, mais do que isso tinha algo dentro gemendo. Tive vontade de voltar para casa, mas minhas pernas não me ajudaram. Então, fiquei parado observando aquele saco com alguém dentro gemendo. Não era animal, era claro o seu gemido e para aumentar meu espanto, o saco começou a se rasgar e de dentro saiu uma mão cheia de sangue, depois a outra e por fim a criatura mostrou seu rosto monstruoso. Eu comecei a gritar desesperadamente, quando senti uma outra mão tocar em meu ombro, enquanto me chamava pelo nome eu não queria responder, mas a voz insistia.

- Seu Hugo, Seu Hugo, acorda! O senhor está se mexendo muito! Não é melhor o senhor dormir na cama?

Então aquela criatura aos poucos foi sumindo e senti a presença de Cinira, minha doce secretária do lar, que me observava meio assustada. - Que alívio! - Falei. Ela ainda me olhou com uma certa cautela e concluiu:

- Pode deixar, seu Hugo, eu desligo a televisão.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br