Naquele tempo, nos verões com aquele sol de rachar mamona ou naqueles
invernos em que todo mundo saía na rua para soltar pipa, uma das coisas
que meu primo e eu, além de toda a molecada da vizinhança, gostávamos
de fazer era invadir a casa do Dr. Celso e lá dentro aprontar alguma,
brincar de esconde-esconde, soltar traques e outras travessuras em geral.
Era um sobrado imenso, imponente, tomando uma esquina inteira, perto dos pastos
onde terminava a cidade. Fazia já muito tempo que ele estava em construção,
e já especulávamos que, quando estivesse pronto, seria um belo
dum palacete. Apesar de não ter ainda muros, portões, jardins,
janelas, portas e piso, e também de poucos aposentos terem teto e nenhuma
parede ter reboco, muita gente já queria morar lá, por entre pilhas
de tijolos, sacos de argamassa e andaimes. E, como naquela cidadezinha ninguém
erguia tapumes nas construções, invariavelmente muita gente entrava
e circulava por ali.
Uma tarde de domingo, quando já estava escurecendo e ventando frio nas
ruas empoeiradas, bem na hora em que meu tio entornava mais uma dose de conhaque
e gritava para a televisão, numa vã tentativa de que Romário
o escutasse e acabasse de vez com aquela tensa final de Copa do Mundo, uma família
desceu da carroceria do caminhão do "seu" Zé Boiadeiro.
Estavam sujos do suor da viagem e vermelhos de tanta poeira, da ponta dos cabelos
até o bico das botinas. O pai foi o primeiro a saltar, chacoalhando o
seu terno de missa e deixando cair no chão várias sacolas de supermercado
estufadas e rasgadas. A mãe pousou no asfalto a gaiola do periquito e
o quadro rachado de Nossa Senhora Aparecida com a basílica antiga e o
rio ao fundo. O filho, um moleque desdentado da nossa idade, mas que aparentava
bem menos, largou as pesadas malas e valises xadrezas que aqueles braços
de palito miraculosamente conseguiam sustentar, e pôs a brincar com o
vira-lata bege que os acompanhava.
- Óia, Calango- falou "seu" Zé ao retirante - aí
é a casa do Dr. Celso. O Demétrio da Neusa é o pedreiro
que manda. Ele mora ali atrás da SABESP- apontou com o queixo a caixa
d'água na arborizada sede da companhia. Lá, quando havia pessoas
homônimas, detalhes como a mulher, a mãe, o pai e outros serviam
para distinguir os moradores com nome idêntico.
Calango, que soubemos depois que se chamava Fabiano, como o Fabiano de Vidas
Secas, foi até a casa do mestre-de-obras e o encontrou fazendo churrasco
no lote do lado, geminado à sua acanhada e velha casa.
- "Seu" Fabiano...
- Cumigo não tem seu. Sô home de Deus, num tenho nem unha de senhor.
Pode chamá eu de Calango memo, patrão.
- Calango, tem cama e colchão sobrando aqui, e se faltar eu mando buscar
na casa do meu irmão.
- Carece não. Eu durmo na construção memo.
Mas Fabiano não vinha do mesmo local do outro Fabiano. Era ali da região
mesmo. Tinha perdido o emprego num sítio da região, foi para Rio
Preto para tentar a vida, mas lá chegou até mesmo a estourar carros
para levar toca-fitas, enquanto a mulher satisfazia os desejos doentios dos
jovens filhos de fazendeiros que queriam sentir o gosto do corpo de caipiras
sujas e o filho vendia balas nos semáforos e fazia mesas de jogo fajutas
no centro. Mas a Virgem de Aparecida fez um milagre e os levou para lá,
na sua mesma terra, num lugar mais calmo, com emprego e tudo.
Fabiano cumprimentava todo mundo na rua e ia todo domingo à missa, mas
não sentava nas mesas dos bares, não entrava nas rodas de cacheta,
não tomava nenhuma dose de cachaça na venda do Delfino e também
não entrava em nenhum carro. Parecia um roceiro bruto, duro e seco, daqueles
que batem nas esposas, mas nunca destratava a Nega, sua mulher. Era calmo. Ela
era do mesmo jeito, vinha sempre fazer unha na casa da minha tia, cozinhava
a feijoada beneficente que o padre sempre pedia, fritava os pastéis e
bolinhos da chuva das quermesses e era ela quem comandava os almoços
da paróquia.
Quem era o diabo era o Wanderklaydisson, o filho. Este vivia tomando surras
homéricas dos pais. Vinha a mãe com o chinelo e o pai com sua
cinta de vaqueiro, mas ele era tão ágil e sortudo que várias
vezes desviava dos golpes, fazendo os pais se acertarem por acidente. Na primeira
vez que ele pisou no fliperama do Cupim, já foi escorraçado pelos
comensais da casa. O dono sempre tentava atenuar a cabeça quente dos
seus fregueses, mas teve um dia que até ele socou o balcão de
tanta raiva.
- Eu estou falando pra vocês, e é sério- dizia Cupim, arrumando
a gaveta onde guardava os cartuchos de Super Nintendo- se o filho do Calango
relar nessa porta, podem chamar o tio de vocês e mandar vir buscar!
(nessa época, um tio nosso, que não era o pai do meu primo, era
presidente do Conselho Tutelar, e as crianças o viam com o próprio
Demônio, circulando com seus olhos vigilantes na Kombi de chapa oficial,
pronto para pegar algum moleque fugido da escola.)
Num dia em que ninguém, nem mesmo o proprietário do fliperama,
conseguiam permanecer por muito tempo na casa de jogos, um cheiro esquisito
insistia em impregnar o ar ali dentro. Afastaram as máquinas, os pinballs,
os aparelhos entulhados de chicletes, de bolas coloridas de látex e de
bichinhos de pelúcia e até o arcade de corrida que imitava
um carro, e acharam um objeto em forma de charuto atrás dos fios da Caddillac
& Dinossaurs.
- Puta que pariu! gritou Cupim, derrubando um velho baleiro de farmácia-
o filho do Calango cagou no meu fliperama!
Ele tinha fama de louco. Diziam que conversava com o Quito, a ave da família,
e com o Troglodita, o cão que sempre o acompanhava. Isso a gente nunca
viu, mas um dia lá estava ele com um filhote de gato nas mãos,
comentando o bicampeonato brasileiro do Palmeiras. Falavam ainda que, para Wanderklaydisson
não fugir de casa, depois das oito da noite os pais lhe davam uma dose
cavalar de chá de camomila, acorrentavam-no num aposento da casa do Dr.
Celso e, ali dentro, queimavam bosta de burro, pois acreditavam que o gás
daquela combustão o dopava.
Mas Wanderklaydisson, acima das fofocas que pegávamos de orelhada nas
sessões de manicure da minha tia, realmente tinha hábitos estranhos.
Alimentava-se exclusivamente de peças inteiras de mortadela com sacos
e mais sacos de farinha de mandioca. Ao contrário do pai, tinha amor
por automóveis, tinha ereções quando entrava dentro de
um carro. Já das bicicletas tinha um pavor doentio. Nas brincadeiras
de esconde-esconde, era quem sempre corria mais. No fliperama do Cirço,
o irmão rival do Cupim, onde os maloqueiros da cidade fumavam e bebiam
à vontade, ele consertava as máquinas arrebentadas com o pensamento.
Quando cismava, fazia fogueiras com santinhos de políticos e de oração.
E, muito frequentemente, dizia que amava os bichos-de-pé, os sapos
e as arapuás da mesma maneira que amava as meninas de seios nascentes
na flor dos doze anos.
Um dia, nós o encontramos empinando pipa no pasto. A sua era feita de
cortina de chuveiro, toda remendada, e marcada com seu próprio sangue.
Com a lata nas mãos, ele falava que um dia ainda seria astronauta, que
lutaria igual ao Jackie Chan, que viajaria para lugares distantes que ficavam
perto do fim do mundo, como a China, Buenos Aires, Paris, Portugal, Araras,
Oriente Médio e vários outros lugares. Disse que seria dono de
uma emissora grande de TV, mas que nunca empinaria o nariz e ficaria chato,
sempre chamaria todo mundo quando fosse fazer churrasco.
Numa das tardes intermináveis em que passávamos horas jogando
videogame no fliperama do Cupim, ele apareceu, com a mão em viseira sobre
os olhos, procurando alguma coisa.
- Tá procurando o quê, Calanguinho(o diminutivo do apelido de seu
pai já lhe tinha sido atribuído).
- Aquele brilhante - respondeu ele, absorto em seu exame- aquele brilhante.
Mesmo com os protesto de Cupim, ele esquadrinhou o fliperama inteiro à
procura do "brilhante".
- Eu achei ele no quintal de casa- começou a contar- é um brilhante
assim diferente, meio pequeno, meio grande, meio redondo, meio quadrado, do
tamanho dum grão de areia, mas que parece que é maior que uma
casa. É que uma noite eu fui matar uma rã no banheiro do fundo
de casa, daí ele apareceu pra mim, uma puta duma bolona de luz, era pior
que o Sol, a luz era tanta que dava pra pôr numa garrafa. Eu pensei que
Nossa Senhora ia aparecer ali, mas daí veio o brilhante e queimou minha
camisa e a parede. Ele falou comigo e disse que tinha vindo da Lua. E também
falou que é louco por banana, bolinho de chuva e X-Salada.
Essa foi a primeira. Meu primo contou que, num dia na escola, Wanderklaydisson
disse que para se aprender caratê a primeira coisa a se fazer era saber
voar. Falou também de um casebre perdido no meio do mato onde estava
escondido um livro terrível de magia negra, de um galo índio de
um metro e sessenta de altura, de um barco enorme abandonado no rio, de motos
como pneus de avião e do seu sonho de ter uma fazenda maior que a cidade
inteira junta.
Um dia, estávamos todos no sítio, que o pai de um amigo nosso
levou no seu caminhão, amontoados junto com os tonéis de leite.
Wanderklaydisson estava junto conosco. Foi muito divertido aquele dia, a gente
correndo por meio dos laranjais, das canas-de-açúcar, matando
pardais e tico-ticos com estilingue, afundando o pé na lama do riacho
e fazendo espadas de bambu. Numa hora, chegamos perto de um brejo entupido de
bananeiras. Íamos saltar na lama, mas Wanderklaydisson nos impediu:
- Cuidado! falou ele.
- Que deu em você? perguntamos todos.
- É que me falaram, já faz um tempo, que teve um cara que tinha
bananeira, e um dia ele deixou a penca do lado e subiu formiga nela. As formiga
ficaram mexendo na casca, e deixaram um negócio vermelho em cima. Daí
o home levou em Rio Preto, levaram num laboratório e falaram que aquilo
era lava de vulcão. Contaram e o home não acreditava: de que tinha
uma lenda de que debaixo de plantação de bananeira existem vulcões.
Aí na frente tem um baita dum vulcão brabo, de fritar o pé
da gente.
- Larga mão, Calanguinho- disse meu primo, no que foi prontamente seguido
pelos outros.
Ameaçava chover. Mas nós, moleques arteiros, nem ligamos, fomos
mesmo é chafurdar no pântano das bananeiras. Um vento fresco sacudiu
as folhas delas, e logo os pingos começaram a cair de uma vez. O brejo
se alagou, as geladas águas barrentas já batiam no queixo em ondas
bravias.
- Puta merda- falou meu primo, pulando e agarrando a grama rala do barranco-
tá quente pra caramba aqui debaixo.
A água rubra começou a ferver, pipocando em vários montes
de bolhas. A molecada começou a choramingar de dor, pois os pés
ardiam, os de alguns até a pele saiu, o meu tem marcas de queimaduras
até hoje. O fedor esquisito de carne humana assada subiu numa velocidade
incrível. Mesmo com o frio, a chuva e aquele mundaréu de água,
a terra onde estavam plantadas as bananeiras estava pelando de tão quente.
Fugimos todos para o barranco, alguns choravam e gritavam com seus pés
incrustados de brasas. Aquela visão sangrenta e em carne viva me dá
nojo até hoje, e meu primo têm arrepios quando lembra de ver pedaços
de pele se descolando da sua carne. A terra tremeu, e gêiseres derrubaram
as árvores, ao mesmo tempo em que as bananeiras eram petrificadas pelo
magma. Vapor se desprendia das águas barrentas, parecendo miasmas.
- Vocês duvidaram, tá aí- apontou Wanderklaydisson.
Nunca mais duvidamos nem rimos da cara do Calanguinho. Fomos amigos muito leais
dele, principalmente no dia em que a Ave Maria de Gounod subiu pelas
cornetas da torre da Matriz falando da morte do velho Fabiano.
Um dia, quando Nêga estava também muito doente, com Troglodita
chorando diariamente e Quito sumido, pois um dia ele arrebentou a tramela da
gaiola e fugiu para longe, Wanderklaydisson nos chamou para dentro da sua casa.
Casa era modo de dizer, pois a residência de sua família se limitava
à garagem e a algumas saletas do sobrado em construção
do Dr. Celso. Mas eles tinham até televisão ali, uma Telefunken
em preto e branco de gabinete de madeira. Foi de cima dela que ele pegou uma
agenda ensebada e amassada.
- Esse é o livro de magia negra que eu falei pra vocês- mostrou
sua capa preta rasgada, com uma cruz gótica dourada bordada e nenhum
título ou letra. Deixou que a gente folheasse, embora o fizemos tremendo
de medo dessas coisas macabras do Além. As páginas estavam amareladas,
carcomidas, sujas de bolor, algumas ilegíveis devido a enormes manchas
negras que lembravam borra de café, algumas grudadas umas com as outras,
algumas ainda arrancadas. Os tipos eram bem trabalhados, com muitas iluminuras,
e as figuras e fotos eram inquietantes.
Numa página, havia o desenho de um Dragão de Komodo se enrolando
numa torre medieval.
- Esta figura aqui é o meu pai. A outra também- virou a página
mal-costurada e mostrou a figura de um druida de barbas brancas- aqui está
a minha mãe- mostrou uma índia nua, espreguiçando-se numa
densa floresta- e estes são Quito e Troglodita- um era um leão
alado que lembrava um lobo e o outro era um falcão esverdeado com uma
cidade inteira nas costas- por fim, aqui estou eu- Wanderklaydisson apontou
uma mandala, onde havia a figura de uma menina nua, de um garoto caipira de
chapéu de palha na cabeça e de um galo enorme.
Quando nós viramos o rosto, Wanderklaydisson tinha-se metamorfoseado
numa garota loira, com olhos negros e oblíquos como o de uma índia,
a pele vermelha como um pimentão, o seu corpo nu em pêlo exalando
um suor doce que nos deu uma dor-de-cabeça terrível.
- Se vocês amam o mundo- falou-nos- venham me amar.
Assistimos assustados àquilo, e a garota pelada virou então um
galo de um metro e sessenta de altura que quase nos cortou ao meio com uma esporada.
Nunca corremos tanto na nossa. Mas a visão da garota loira nua ainda
continuou ecoando nos nossos sonhos, aquele cheiro doce da garota suada ainda
nos cutucando a cabeça.
Um dia, uma das fofoqueiras que vinham fazer unha na casa da minha tia contou
que Wanderklaydisson tinha morrido de rubéola. Na casa do Dr. Celso não
viram nenhum sinal de mobília, acharam somente o livro aberto em páginas
brancas. As beatas, junto com o padre, acharam aquele livro herético
e medonho demais e o queimaram na praça. Wanderklaydisson tinha voltado
para dentro do volume de magia negra. De onde nunca deveria ter saído.