A Garganta da Serpente
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Igarapé de areia

(Jadson Nobre)

I

Ninita, entretida com as saúvas, preparava beijus para o pai e os irmãos que estavam no roçado na lida com a coivara. A canjica ao forno ardia como um sol entardecido, lampejando raios borbulhentos e estrondosos. Preocupadas, as formigas carregavam nas costas as folhas pesadas da laranjeira, enfileiradas, religiosamente. O céu recolhia com pressa o azul, vestindo seu funesto manto de cinza e gelo.

Por tais paragens a vida dos homens, assim como a das formigas, segue o rumo que apenas a natureza determina, sem qualquer amarra nos pulsos, vicejando a terra, aplacando os dias.

Ao tempo, todos chegaram, levemente molhados, desafrouxando-se cada um do seu cansaço. À mesa posta, pamonha, canjica e beijus, café preto; uma fartura simples, mas bastante. Dormitaram. Ninita, que não descansava, aviou as panelas na cabeça e foi com elas para o Igarapé de Areia que ficava dali a alguns metros, mas não muito perto.

Assoviando, cantarolava uma cantiga qualquer para espantar as assombrações, que, segundo ainda dizem, por ali sempre foram muitas.

Ao chegar, apeou as vasilhas, e sentando à margem pôs-se a olhar profundamente para dentro de si mesma. Tão imersa estava que nem notava o próprio reflexo n'água a ondular. O vento espalhava benjamins e os derramava por toda parte numa chuva fina de macia lã. Ninita tinha os olhos exatamente pretos, pretos e luzidios, de tal maneira que à noite metiam medo no mais feroz dos felinos, aos quais os seus perfeitamente se assemelhavam.

Era uma moça comprida, maior que seus irmãos homens, e mais rude também.

Diziam que já havia passado da idade de se casar, e zombavam dela por não arrumar namorado, porque era demais arrogante e bruta. Deslizava por entre as árvores silenciosa e invisível, fazendo visagem aos irmãos que sempre assustados com suas aparições a apelidaram de alma penada. Andava pela casa sem fazer barulho, mas na estrada se saibro dos Trinta, por onde passava, já lhe conheciam as pegadas.

Apesar de parecer ter mais coragem do que o comum em uma mulher, Ninita apavorava-se com as estórias que seu pai contava sobre pessoas mortas que vagavam pela mata a qualquer hora do dia e da noite, dos homens que viravam porco ou cachorro e dos velhos índios transformados em mapinguaris. Porém, se tinha uma coisa da qual ela tinha mesmo pavor era da água; não da água em si, era de mergulhar, de entrar nela, coisa que na vida toda nunca havia feito.

O pai não a tinha batizado e ela mesma nunca se interessou por reza alguma ou oração qualquer, dizia que quem precisava dessas coisas eram os defuntos, não ela.

A mãe, segundo o pai lhe contava, havia morrido de parto, quando ela nasceu, coisa com a qual também nunca se importou. E mesmo com o terrível medo que tinha, passava horas sem fim sentada à beira do raso e límpido fio de água, onde os peixes não costumavam aparecer, nem outros bichos ali matavam a sede, era quase um deserto liquefeito. Só ela gostava dali, porque os outros caboclos que por aquelas bandas moravam ou estavam só de passagem evitavam bastante o lugar, diziam que era encantado, que o igarapé era onde as bestas se banhavam para ser gente outra vez. Um velho caçador contava que quando era bem novo vira, certa vez, uma fera medonha com corpo de guariba, cabeça de onça e um enorme nariz de anta saltando de uma margem para a outra do igarapé com uma criança na boca.

II

Ninita ficava tanto tempo naquele lugar que às vezes o pai ou um irmão precisavam ir buscá-la. Para o povo, porém, ela havia sido enfeitiçada pela água; só mais uma prova dos mistérios do Igarapé de Areia.

As árvores, que além da água eram suas únicas companheiras, fitavam-na curiosamente, desejosas por adivinhar seus pensamentos que se mantinham impermeáveis. Voltava para casa com as panelas lindamente areadas, causariam inveja na mais esforçada dona de casa, de tão limpas que ficavam. As mãos, lisas e macias, estavam sempre sempre muito enxutas e o corpo o tempo todo belo e limpo e insipidamente cheiroso.

As mulheres dos Trinta e as da cidade que a conheciam lhe tinham ciúmes por causa da sua pele jovial e sem máculas de nascença, causadas pelas danações de criança ou por enfermidades, e mesmo as que apareciam rapidamente cicatrizavam e sumiam, deixando-a tão perfeita quanto antes. Suas sobrancelhas eram finas, pescoço longo, espáduas rasas, mãos e pés compridos, toda ela era esguia, nem por isso bela, sem, no entanto, ser feia. E se não arranjava homem era mais por seu jeito de se impor sobre eles do que pela sua aparência e mais temiam-na do que a desejavam. Nas festas dançava com os irmãos, no que era muito boa, gostava impecavelmente de roupas brancas, nunca estavam rotas ou sujas, nem com uma nódoa sequer. Se a ocasião era especial, arraial, casamento ou 15 anos, o vestido cobria-lhe até os pés, chamando mais a atenção do que qualquer convidado ou anfitrião, por mais simples e humilde que fosse o feitio da fazenda.

Seu Raimundo falava pouco da filha para as outras pessoas, apesar de ter por ela grande sentimento e mais cuidado, talvez porque os outros fossem homens. Desde pequena já era estranha a menina, que demorou a andar, já perto de completar quatro anos, pensavam que fosse deficiente de nascença.

Arrastava-se pela casa toda e só começou a falar quando tinha oito anos. A mãe dos meninos, que também era adotiva, morrera de picada de cobra quando lavava roupa no Igarapé de Areia, tempos antes dele encontrar a pequena encima de paxiúbas, boiando no igarapé. Estava com um vestidinho branco, descalça, devia ter um mês de nascida.

Por morarem muito isolados, seu Francisco nunca revelou a ninguém que achara a menina, tinha-lhe como se fosse realmente sua, esforçando-se para que nunca faltasse nada a ela, apesar da ausência de uma mulher na casa para ajudá-lo a criá-la. Deu a ela o nome de Raimunda, o seu sobrenome Norato, e os irmãos por vez Ninita, além de todo afeto possível para suprir a necessidade de uma mãe.

A menina adivinhava os pensamentos do pai. Se este queria alguma coisa, ela já tinha às mãos ou estava providenciando. Os cabelos, que nunca haviam sido cortados, quando soltos, cobriam suas panturrilhas, entretanto, estavam constantemente presos por difíceis penteados que ela sozinha fazia com ligeira habilidade. Todas as vezes que chegava à beira do igarapé, deixava-os livres ao vento; um tapete negro cobrindo as areias alvíssimas onde se deitava todas as manhãs e tardes.

III

Naquele dia, como de costume, o pai saiu à procura da filha, já sabendo onde ela estava. Fumava sua porronca tranquilamente, e entre uma pitada e outra dava uma cuspidela, um hábito seu, que Ninita, aliás, tinha asco. Com a espingarda, da qual nunca descuidava por conta das onças, ia fazendo mira nas nuvens, imaginando gordas cutias, veados galheiros, caititus. Os rastros da filha, muito vivos e marcantes, espiralavam aqui e ali.

O ziziar de uma cigarra tinia incessante.

Raimundo encontrou a filha, de costas, boiando.

Com os cabelos espraiados, os braços unidos como os de um defunto e as pernas bem abertas, pálida e brilhante, Ninita rodopiava na água imóvel. O pai foi tomado de um grande espasmo, perdendo por alguns instantes o sentido.

Ao voltar a si, percebeu que Ninita ainda flutuava, que o igarapé, imóvel, não corria seu curso. O vento estático e mudo, as árvores hirtas; o tempo dormia...

Um turbilhão começou a formar-se embaixo da moça, que girava cada vez mais rápido, até chegar a um ritmo tão frenético e alucinante que apenas o movimento a fez elevar-se acima da copa das árvores, parando abruptamente.

As pernas e o queixo de Raimundo, ao contrário de todo o resto, eram as únicas coisas a se mover.

Aquela figura bestial começou a volver-se no ar, até ficar na posição de pé. Apenas um leve sorriso escorria de seu rosto; os cabelos ainda espalhados e firmemente esticados, o vestido profundamente branco e enxuto.

Vagarosamente, despetalou os braços, ao mesmo tempo em que juntou as pernas.

Espalmou as mãos sobre a cabeça, unindo-as.

Um raio bordou a tez cinza do céu, escamando-o, tingindo de um rubro esmaecento o vestido da jovem que abriu a enorme boca de onde se podia ver amolados dentes de alvo brilho e satânica beleza. Seu olhos apagaram o sol, engolindo todas as cores. Saltou.

Como se de um abismo tivesse pulado, numa queda cega e fatal, Ninita mergulhou no igarapé, onde desapareceu sem levantar pingo d'água. O vento bradou ferozmente contra as árvores que, tontas, balançaram de um lado para outro. As águas corriam ao contrário.

Um grande tronco surgiu na margem, rolando sobre a areia. Do tronco começaram a nascer galhos, que viraram braços, de onde brotaram duas mãos, depois pernas e pés. Contorceu-se de todas as formas, rangendo os dentes e gemendo, até se transformar em uma velha, cuja face os cabelos prateados encobriam.

A mulher foi em direção às panelas sujas e com uma língua bipartida e grande começou a lambê-las, até que ficassem muito limpas e brilhantes, em seguida, retornou à margem, deitou-se devagar e, serpenteando, voltou para dentro da água, onde foi crescendo, crescendo, até começar a afundar no leito, silvando.

Quando a mulher imergiu completamente, o rio voltou a correr na direção certa. Do outro lado da margem, com uma criança na boca, uma onça parda sem se molhar começava sua travessia. A criança, de vestido branco, descalça, tinha nos olhos pretos a aparência cínica da morte.

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