Beatriz entra em seu apartamento, como todos os dias, às 18:38. Dessa
vez encontra móveis quebrados, livros jogados no chão, vasos estilhaçados.
Pensa se tratar de um assalto e procura, nervosa, seu celular dentro da bolsa.
Liga 19...
- Desliga! Diz um homem do qual ela só consegue ver a silhueta.
- O que você quer?
- Desliga!
- Ok, ok... estou desligando... Ela coloca o aparelho sobre o sofá.
- Senta!
- Essa voz... não acredito!
- Cala a boca, sua vadia!
O homem sai da penumbra e ela confirma suas suspeitas. O olhar de medo dela
é recebido com um tapa que ecoa pelo pequeno apartamento. Beatriz põe
a mão no rosto e lança um olhar de ódio para o homem a
sua frente. Ele, com um sorriso no canto dos lábios e uma pistola na
mão esquerda, a olha com ar superior.
- Você achou mesmo que a humilhação que me fez passar não
teria volta?
- Maurício, isso já faz dois anos! Você disse que tinha
me perdoado...
- Perdoar? Você é mesmo muito cínica.
- Ah, quer saber? Se vai atirar, atira logo e acaba com esse papo de marido
traído, que de coitadinho nessa história você não
tem nada... Disse Beatriz se levantando e indo à cozinha pegar uma cerveja.
- Então o culpado da sua safadeza sou eu agora?
- Safadeza? Eu só transei com meu chefe e com dois amigos seus, meu querido.
Podia ser pior. Ou melhor, depende do ponto de vista.
- Eu sempre odiei essa sua ironia.
- E eu sempre odiei o seu cheiro, a sua voz, a sua barba sempre bem feita. Não
sei nem por que me casei com você.
- Eu sei, porque você queria uma pessoa que lhe apoiasse quando seus pais
morreram. Foi só pra isso que eu servi.
- Serviu? Nem isso você consegui, seu verme! Anos de terapia... Eu era
uma menina... Sabe que aquela terapia era muito mais pra aguentar aquele
casamento morno que a gente tinha do que pra lidar com a morte dos meus pais?
Cinco anos da minha vida... Que desperdício!
Maurício apontou a arma para Beatriz. E olhou-a de cima a baixo. Aproximou-se
abrindo o zíper das calças. Ela corre para trás do sofá
e olha-o:
- Como você é patético... nunca me fez gozar em cinco anos
que ficamos casados e agora me vem com esse ar de grande amante... Pois fique
sabendo que eu dou pra qualquer homem, menos pra você.
Ele a agarrou pelos cabelos, jogou-a no chão. E enquanto carregava a
arma, disse:
- Ou você transa comigo ou meto uma bala no meio dessa sua carinha linda.
- Bem... até que pode ser bom... de repente a raiva, o orgulho ferido
te aqueceram... Mas deixa que eu te mostro como eu fazia com os homens com os
quais te traí.
Tirando a arma da mão dele, Beatriz tira sua roupa e as calças
do ex-marido. Exibe-se para ele. Domina-o. Enlouquece-o. Mordidas, arranhões,
risadas, suspiros, murmúrios, gemidos... Horas a fio os dois se confundem
na sombra que projetam na parede.
Exausto, Maurício se atira à cama ofegante e sonolento. Fecha
os olhos. Ela, então, espera a respiração ficar mais profunda,
levanta-se, olha-se no espelho... os cabelos estão desgrenhados e a maquiagem
dos olhos escorrendo. Vai ao banheiro, lava o rosto e ajeita os cabelos. Veste-se.
Vê a pistola em cima da cama. Pega. Olha o revólver e o ex-marido.
Ali está a solução dos seus problemas. Em dois anos de
separação, ela já havia se mudado três vezes. Ele
sempre a encontrava. Ele e aquele maldito sentimento masculino de posse. Beatriz
não aguentava mais olhar para aquele homem. Os telefonemas de madrugada,
os xingamentos, os empregos que ele a fez perder.
- Acorda! Acorda, seu bosta!
- O que você vai fazer?
- Um favor à humanidade.
- Por favor, Beatriz, pelos anos que nós vivemos juntos...
- Os piores da minha vida. Tenta outra coisa, seu idiota!
- Eu imploro, não atira. Maurício se ajoelha aos pés da
ex-esposa.
- Essa imagem é a que mais combina com você. Submisso, suplicante,
decadente. Eu sempre tive vergonha de apresentar você pras minhas amigas...
Sempre com essa cara de homem correto, chefe de família, bom marido...
Sem novidades, sem emoção. Eu dormia fazendo sexo com você.
- Beatriz... por favor...
- Abre a boca!
O disparo foi seco. A parede cinza ficou manchada de vermelho.
- Droga, vou ter que pintar de novo...
Contemplou o corpo caído, inerte, com um olhar de pânico. Empurrou
o cadáver com o pé, para ter certeza de que não havia possibilidade
de ter sobrevivido. Sentando no sofá, Beatriz colocou as mãos
atrás da cabeça e ficou a pensar no que faria. Minutos depois,
vai ao quarto, pega um lenço branco numa gaveta e esfrega-o na pistola.
Em seguida, coloca a arma na mão direita de Maurício... Pára,
pensa e corrige, ele era canhoto. Com o dedo dele aperta o gatilho e dispara
a arma. Analisa: cena perfeita para um suicídio... o marido inconformado
com a separação, vai à casa da ex-mulher e se mata, para
afetá-la. Arma e pólvora na mão, digitais... tudo.
Voltando ao quarto, Beatriz coloca em uma bolsa duas ou três peças
de roupa, dinheiro, chaves e um livro. Sai do apartamento, pega um táxi
e pede ao motorista que a leve ao aeroporto. Lembra de um ex-namorado que trabalha
numa companhia aérea.
- Nunca pensei que aquele imbecil me seria tão útil. Murmura consigo
mesma.
Chegando ao aeroporto, dirige-se ao guichê e pergunta à recepcionista
se ela poderia falar com Ricardo; ela informa que ele está em uma reunião
com a presidência da empresa, mas que já deve estar no fim. Menos
de cinco minutos depois, Beatriz está num café conversando com
o ex-namorado.
- Quem diria, não? Você... gerente... Casou?
- E tive filhos.
- Jura?
- Você me abandonou, eu queria ter uma família, você sabe.
- Sei, sei sim... Hum... Ricardo, eu tenho um pouco de pressa, queria te pedir
um favor.
- E o que eu ganho com isso?
- O que quiser, é só pedir. Respondeu Beatriz com um sorriso malicioso.
- Você não mudou nada... Que ótimo. Diga. Do que se trata?
- Eu preciso de uma passagem pra qualquer lugar, não importa. O importante
é que a data de embarque seja alterada. Tem que constar que eu embarquei
ontem. Você consegue isso?
- Consigo o que você quiser, meu bem. Mas o que você andou aprontando,
hein?
- Nada que lhe interesse. Mas pago bem, você já teve chance de
conhecer os meus serviços. Disse, sorrindo e piscando para Ricardo.
Dentro de duas horas, Beatriz estava sentada, num avião a caminho de
qualquer lugar. Pediu água à comissária e olhou pela janela,
pensativa. Esperaria a notícia da morte do ex-marido, que provavelmente
só seria encontrado quando começasse a feder, não que ele
não fedesse em vida. A intimação para depor deveria chegar
em seguida. E ela já preparava sua melhor expressão de surpresa
e horror.
Abriu a bolsa, tirou o livro que trouxera e recomeçou a lê-lo.