A Garganta da Serpente
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Círculos

(Joana Prado)

Fim de tarde, a corrida para a beirada do poço. Tomar banho e puxar água para banhar os irmãos antes que o pai chegasse da rua. Deita a balde na água escura e funda. Por um momento se distrai. Olha sem muito interesse para o interior daquele buraco frio e úmido, pensamento voa. Ali não é seu lugar. Deve haver um mundo maior porta afora. Mas como ir? O pai tem poder. Se foge, vai buscá-la. Será mais vergonhoso que se casar e parir um bando de filhos. Para si, era vergonha se entregar assim a um destino tão mesquinho e pequeno. Mas como ir? Para onde? O mesmo mundo enorme parecia-lhe pequeno diante da grandeza do pai. Talvez fosse mundo sem esquinas onde se esconder dele em busca ferrenha. Ali o fizera tantas vezes, sabia os caminhos que percorria, calculava a esquina mais próxima onde se esgueiraria até que seu severo guardião passasse. Não via mal no que fazia, apenas era feliz por dentro, ,gostava de agradar, conversava, contava estórias. Contrário da face que usava em casa. Gostava de sorrir. Era inteligente e bonita, e o pai nem sabia que muitos a admiravam por essas qualidades. Ou talvez a caçasse por isso. Admiração demais já sabia no que dava. Também era homem inteligente e muito vivido. Conhecia mundo sem esquinas. Temia que ela não conseguisse se esconder. Tentava evitar nudez perpétua que a rondava. Mas é inevitável a viagem ao mundo sem esquinas que leva ao desnudamento. Ele caça a gente, como pai ciumento. Melhor enfrentar o mundo, esse pelo menos a gente xinga quando aborrece. Pai não! Está sempre certo, além da mão de Deus ser rígida sobre a cabeça dos filhos desobedientes. Sabia disso, sua avó dizia-lhe desse ser mais poderoso que seu pai. Ele criara o mundo sem deixar esquinas. Sabia dos filhos traquinas que poria nele, assim não deixou onde se escondessem depois das danações. Que vida! Puxava o balde, dentro uma sapo desprevenido tentava voltar de onde veio, puxa o vasilhame mais rápido, não deixará o sapo sair dali. O poço é circular, não tem esquinas, como pensa esse sapo bobo poder se esconder dela? Ali ela era o deus do sapo! Brinca, desprendida do tempo. Observa o animal cansado, aos poucos percebe-o desistindo, encolhendo-se à borda do balde, humilde, vencido. Mas seu olho ainda brilha para sua deusa de araque. Ela sorri satisfeita. Venceu! Mas um salto imediato, calculado, e o animal gosmento se arremessa para fora daquele mundo sem esquinas. Fugira, o danado! Buscara esconderijo. Quem o ensinara a agir assim? Imagina quantos baldes e quantos deuses já o prenderam antes, aquele e tantos outros deles. Aprendera, sim aprendera a saltar para o seu mundo, para sobreviver. Olhou novamente a água turva do poço. Lá estava o espertinho, parecia folgar com sua displicência. Era preciso aprender o pulo do sapo! Um berro grave sacode-a de suas observações inúteis. Os meninos, precisa levar água pra dar banho nos meninos. São cinco ao todo. Virá mais um para quebrar a rotina e aumentar o número de baldes de água que terá de puxar diariamente. Mas isso não importa muito. Pensa no sapo, no mundo, no pai e no mundo de novo. Percebe com os dias,que a olham de modo diferente. Antes nem lhe davam bom dia, mas isso vinha mudando. Alguém oferece-lhe uma viagem a capital, sabia como leva-la sem que o pai soubesse, mas o passeio teria um preço. Pensou na oferta, pensou na avó, religiosa que lhe criara nos corais das igrejas e nas escolas dominicais. Certo que poderia ser sua chance, mas não era burra pra não saber do que poderia vir depois. E se o pai não a deixasse lá? Voltaria de cabeça baixa para aquele mundinho que tanto detestava, e voltaria de cabeça baixa mesmo. As mulheres, invejosas, aplaudiriam a burrice, os homens, aves de rapina nojentas, abririam sobre si asas traiçoeiras, somente para usufruir de carne nova. Não era isso que queria, mas os dias se passavam sem novidades. Era a escola, a casa abandonada quando não totalmente ocupada pelas constantes brigas do pai, a inconsistência e irritação da mãe e as preocupações da avó. Já era tudo tão mesquinho, tão amargo. Não havia esse negócio de luz ao fim do túnel, nem havia túnel, só um deserto infindo onde sua imaginação se perdia em busca de algo das mil e uma noites. Em vão! Não havia roupas, nem perfumes, nem festinhas de adolescentes. Nada sabia da inocência desse mundinho criado para encantar jovens, era dura sua realidade. Temia o futuro e nada era encantador no presente. Mas sonhava, como todas sonham. Queria algo mais além daquilo que fatalmente se projetava para si. Era preciso aproveitar um descuido do deus e saltar certeiramente, pois sabia que seria uma investida sem volta. Não suportaria pagar o preço da volta. Tudo pronto! Decidido! Seria em breve.

Mas o destino que é nosso, as vezes luta do outro lado. Volta da escola. Como sempre, cabeça baixa, arrasta pela piçarra um pedaço de cipó de tamarindeiro. Livros desarrumados, seguros ao peito com a outra mão. Farda ridícula, propositadamente para ocultar belezas puras. Para isso acertadamente servem as fardas. Mesmo caminho de sempre, nada novo.

Um chamado, fatal chamado! Um olhar apresentado a outro que parecia o mar, depois traduzido fielmente por Venturini..."Foi assim como ver o mar...." se no mar vivem sereias não sabia, mas que vira agora um deus vindo de lá, disso tinha certeza. Ficou, esqueceu o pulo. Aquietou-se, não refletira sobre partidas ou amores impossíveis, jamais sofrera por isso. Suas mágoas eram de outra origem. Mas sentiria na pele o amargo da primeira de inúmeras esperas. Amadurecia a duras penas. Repetia um cotidiano mais amargo, sabia agora comparar ausência/presença. Acontecia para si um estado novo, o de solidão, nunca se sentira só, apenas solitária por assim querer estar. Mas os conceitos mudavam rapidamente. Nunca lhe haviam feito promessas, não tinha o que lhe ser prometido. Mas apresentaram-lhe tanto as promessas quando o esquecimento delas, pela primeira vez fizera planos conjuntos, dentre tantos ensaios de pulos, aquele seria o mais forte, pois não o faria sozinha. Engano. A vida deu suas voltas, como repetem os jargões empobrecidos das pessoas vencidas pelo medo. Experimentou o choro pelo abandono, provou do vazio ressentido que toda decepção provoca. Teria de retomar caminhos, aprender a reciclar experiências e torná-las aprendizado. Precisaria de proteção, da sua mesmo, teria de saber que confiar exige limitações e entrega por inteiro é o percurso que conduz a erros e fracassos. Criou sua própria casca, e outra e mais outra. Repetiu folhetins, clichês e chorou.

Virou caramujo, carregava sua casca-casa por onde ia, protegia-se para não fazer pesar mais sua carga, não aos sonhos menos consistentes, não aos inconsistentes também, por via das dúvidas. Jovem ainda sentiu-se cansada e precavida demais, rugas não as tinha. Mas não gostaria de arriscar novas investidas. Amar é complicado. Aprendera com Renato Russo, e como tal fazia mil coisas ao mesmo tempo. Assim utilizava suas horas e otimizava sua produção. Um momento...e a parada inevitável. Onde estava? Em que mundo? Com esquinas, sem? De quem se esconderia agora? Seu pai se fora, seus clichês sumiram na estrada, sem esquinas, é verdade, mas com curvas sinuosas que escondem nossas histórias ao passar o trem dos anos. Já guarda no estojo de maquiagem algo com o que esconderá suas marcas. Surpreende-se ao rever no espelho uma face quase estranha, e meio opaca, cansada... lembra do olhar brilhante daquele sapo que, mesmo ofegante, enquanto quieto, parecendo vencido e amedrontado, calculava um pulo salva-vidas. E saltou varias vezes quando, humilhada, parecia vencida. Varias vezes os deuses a perseguiram por mundos sem esquinas, fora aprisionada muitas vezes em baldes, cujas saídas pareciam não existir. Mas aprendera a medir seus saltos, alguns não tão certeiros assim, mas sempre o passo definitivo para a porta de saída de tantos poços sem fundo ou mundos sem esquinas. Mas de salto em salto construiu seu mundo, não se deteve naquele universo cujas fronteiras eram delimitadas por seu pai, mas aprendeu que quem mais a limitaria, quem mais poria obstáculos nos caminhos não seria seu pai, mas a própria vida e dessa só por um salto, sem volta, poderia fugir. Enquanto isso se adia, sapo preso que se sente agora, nada em círculos num balde de água, a espera do momento certo para a tentativa do salto final, se os deuses se distraírem racionalizando seus próprios saltos. E nesse momento fatal já terá aprendido sobre o mundo que levamos conosco para sempre como carmas, sentirá também o quanto a vida ludibria criando as expectativas que levam a alimentá-la. Descobrirá atônita que o segredo da vida está em sonhar com mundos que não estão senão dentro de cada vivente, mas saberá também dessa necessidade de insatisfação inerente aos que tem muito sede de viver, mas não sabem como, por isso levam anos tentando empreender saltos que são habilidade inata de todos quanto firmam compromisso mantendo-se respirando ao nascer. Terá sido inútil tentar ser diferente. O ciclo será sempre o mesmo. As histórias é que são enfeitadas por quem as faz. Anda-se em círculos, inevitavelmente.

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