Fim de tarde, a corrida para a beirada do poço. Tomar banho e puxar
água para banhar os irmãos antes que o pai chegasse da rua. Deita
a balde na água escura e funda. Por um momento se distrai. Olha sem muito
interesse para o interior daquele buraco frio e úmido, pensamento voa.
Ali não é seu lugar. Deve haver um mundo maior porta afora. Mas
como ir? O pai tem poder. Se foge, vai buscá-la. Será mais vergonhoso
que se casar e parir um bando de filhos. Para si, era vergonha se entregar assim
a um destino tão mesquinho e pequeno. Mas como ir? Para onde? O mesmo
mundo enorme parecia-lhe pequeno diante da grandeza do pai. Talvez fosse mundo
sem esquinas onde se esconder dele em busca ferrenha. Ali o fizera tantas vezes,
sabia os caminhos que percorria, calculava a esquina mais próxima onde
se esgueiraria até que seu severo guardião passasse. Não
via mal no que fazia, apenas era feliz por dentro, ,gostava de agradar, conversava,
contava estórias. Contrário da face que usava em casa. Gostava
de sorrir. Era inteligente e bonita, e o pai nem sabia que muitos a admiravam
por essas qualidades. Ou talvez a caçasse por isso. Admiração
demais já sabia no que dava. Também era homem inteligente e muito
vivido. Conhecia mundo sem esquinas. Temia que ela não conseguisse se
esconder. Tentava evitar nudez perpétua que a rondava. Mas é inevitável
a viagem ao mundo sem esquinas que leva ao desnudamento. Ele caça a gente,
como pai ciumento. Melhor enfrentar o mundo, esse pelo menos a gente xinga quando
aborrece. Pai não! Está sempre certo, além da mão
de Deus ser rígida sobre a cabeça dos filhos desobedientes. Sabia
disso, sua avó dizia-lhe desse ser mais poderoso que seu pai. Ele criara
o mundo sem deixar esquinas. Sabia dos filhos traquinas que poria nele, assim
não deixou onde se escondessem depois das danações. Que
vida! Puxava o balde, dentro uma sapo desprevenido tentava voltar de onde veio,
puxa o vasilhame mais rápido, não deixará o sapo sair dali.
O poço é circular, não tem esquinas, como pensa esse sapo
bobo poder se esconder dela? Ali ela era o deus do sapo! Brinca, desprendida
do tempo. Observa o animal cansado, aos poucos percebe-o desistindo, encolhendo-se
à borda do balde, humilde, vencido. Mas seu olho ainda brilha para sua
deusa de araque. Ela sorri satisfeita. Venceu! Mas um salto imediato, calculado,
e o animal gosmento se arremessa para fora daquele mundo sem esquinas. Fugira,
o danado! Buscara esconderijo. Quem o ensinara a agir assim? Imagina quantos
baldes e quantos deuses já o prenderam antes, aquele e tantos outros
deles. Aprendera, sim aprendera a saltar para o seu mundo, para sobreviver.
Olhou novamente a água turva do poço. Lá estava o espertinho,
parecia folgar com sua displicência. Era preciso aprender o pulo do sapo!
Um berro grave sacode-a de suas observações inúteis. Os
meninos, precisa levar água pra dar banho nos meninos. São cinco
ao todo. Virá mais um para quebrar a rotina e aumentar o número
de baldes de água que terá de puxar diariamente. Mas isso não
importa muito. Pensa no sapo, no mundo, no pai e no mundo de novo. Percebe com
os dias,que a olham de modo diferente. Antes nem lhe davam bom dia, mas isso
vinha mudando. Alguém oferece-lhe uma viagem a capital, sabia como leva-la
sem que o pai soubesse, mas o passeio teria um preço. Pensou na oferta,
pensou na avó, religiosa que lhe criara nos corais das igrejas e nas
escolas dominicais. Certo que poderia ser sua chance, mas não era burra
pra não saber do que poderia vir depois. E se o pai não a deixasse
lá? Voltaria de cabeça baixa para aquele mundinho que tanto detestava,
e voltaria de cabeça baixa mesmo. As mulheres, invejosas, aplaudiriam
a burrice, os homens, aves de rapina nojentas, abririam sobre si asas traiçoeiras,
somente para usufruir de carne nova. Não era isso que queria, mas os
dias se passavam sem novidades. Era a escola, a casa abandonada quando não
totalmente ocupada pelas constantes brigas do pai, a inconsistência e
irritação da mãe e as preocupações da avó.
Já era tudo tão mesquinho, tão amargo. Não havia
esse negócio de luz ao fim do túnel, nem havia túnel, só
um deserto infindo onde sua imaginação se perdia em busca de algo
das mil e uma noites. Em vão! Não havia roupas, nem perfumes,
nem festinhas de adolescentes. Nada sabia da inocência desse mundinho
criado para encantar jovens, era dura sua realidade. Temia o futuro e nada era
encantador no presente. Mas sonhava, como todas sonham. Queria algo mais além
daquilo que fatalmente se projetava para si. Era preciso aproveitar um descuido
do deus e saltar certeiramente, pois sabia que seria uma investida sem volta.
Não suportaria pagar o preço da volta. Tudo pronto! Decidido!
Seria em breve.
Mas o destino que é nosso, as vezes luta do outro lado. Volta da escola.
Como sempre, cabeça baixa, arrasta pela piçarra um pedaço
de cipó de tamarindeiro. Livros desarrumados, seguros ao peito com a
outra mão. Farda ridícula, propositadamente para ocultar belezas
puras. Para isso acertadamente servem as fardas. Mesmo caminho de sempre, nada
novo.
Um chamado, fatal chamado! Um olhar apresentado a outro que parecia o mar, depois
traduzido fielmente por Venturini..."Foi assim como ver o mar...."
se no mar vivem sereias não sabia, mas que vira agora um deus vindo de
lá, disso tinha certeza. Ficou, esqueceu o pulo. Aquietou-se, não
refletira sobre partidas ou amores impossíveis, jamais sofrera por isso.
Suas mágoas eram de outra origem. Mas sentiria na pele o amargo da primeira
de inúmeras esperas. Amadurecia a duras penas. Repetia um cotidiano mais
amargo, sabia agora comparar ausência/presença. Acontecia para
si um estado novo, o de solidão, nunca se sentira só, apenas solitária
por assim querer estar. Mas os conceitos mudavam rapidamente. Nunca lhe haviam
feito promessas, não tinha o que lhe ser prometido. Mas apresentaram-lhe
tanto as promessas quando o esquecimento delas, pela primeira vez fizera planos
conjuntos, dentre tantos ensaios de pulos, aquele seria o mais forte, pois não
o faria sozinha. Engano. A vida deu suas voltas, como repetem os jargões
empobrecidos das pessoas vencidas pelo medo. Experimentou o choro pelo abandono,
provou do vazio ressentido que toda decepção provoca. Teria de
retomar caminhos, aprender a reciclar experiências e torná-las
aprendizado. Precisaria de proteção, da sua mesmo, teria de saber
que confiar exige limitações e entrega por inteiro é o
percurso que conduz a erros e fracassos. Criou sua própria casca, e outra
e mais outra. Repetiu folhetins, clichês e chorou.
Virou caramujo, carregava sua casca-casa por onde ia, protegia-se para não
fazer pesar mais sua carga, não aos sonhos menos consistentes, não
aos inconsistentes também, por via das dúvidas. Jovem ainda sentiu-se
cansada e precavida demais, rugas não as tinha. Mas não gostaria
de arriscar novas investidas. Amar é complicado. Aprendera com Renato
Russo, e como tal fazia mil coisas ao mesmo tempo. Assim utilizava suas horas
e otimizava sua produção. Um momento...e a parada inevitável.
Onde estava? Em que mundo? Com esquinas, sem? De quem se esconderia agora? Seu
pai se fora, seus clichês sumiram na estrada, sem esquinas, é verdade,
mas com curvas sinuosas que escondem nossas histórias ao passar o trem
dos anos. Já guarda no estojo de maquiagem algo com o que esconderá
suas marcas. Surpreende-se ao rever no espelho uma face quase estranha, e meio
opaca, cansada... lembra do olhar brilhante daquele sapo que, mesmo ofegante,
enquanto quieto, parecendo vencido e amedrontado, calculava um pulo salva-vidas.
E saltou varias vezes quando, humilhada, parecia vencida. Varias vezes os deuses
a perseguiram por mundos sem esquinas, fora aprisionada muitas vezes em baldes,
cujas saídas pareciam não existir. Mas aprendera a medir seus
saltos, alguns não tão certeiros assim, mas sempre o passo definitivo
para a porta de saída de tantos poços sem fundo ou mundos sem
esquinas. Mas de salto em salto construiu seu mundo, não se deteve naquele
universo cujas fronteiras eram delimitadas por seu pai, mas aprendeu que quem
mais a limitaria, quem mais poria obstáculos nos caminhos não
seria seu pai, mas a própria vida e dessa só por um salto, sem
volta, poderia fugir. Enquanto isso se adia, sapo preso que se sente agora,
nada em círculos num balde de água, a espera do momento certo
para a tentativa do salto final, se os deuses se distraírem racionalizando
seus próprios saltos. E nesse momento fatal já terá aprendido
sobre o mundo que levamos conosco para sempre como carmas, sentirá também
o quanto a vida ludibria criando as expectativas que levam a alimentá-la.
Descobrirá atônita que o segredo da vida está em sonhar
com mundos que não estão senão dentro de cada vivente,
mas saberá também dessa necessidade de insatisfação
inerente aos que tem muito sede de viver, mas não sabem como, por isso
levam anos tentando empreender saltos que são habilidade inata de todos
quanto firmam compromisso mantendo-se respirando ao nascer. Terá sido
inútil tentar ser diferente. O ciclo será sempre o mesmo. As histórias
é que são enfeitadas por quem as faz. Anda-se em círculos,
inevitavelmente.