A Garganta da Serpente
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Mariposa

(Joana Prado)

Uma cobertura, luz amarelada projetando um vulto feminino. Notas bailam e fogem janela afora. Piaf reverencia um momento único inevitável e irreversível.

Olhos perdidos resgatam imagens num céu de verão urbano, telão solto na imensidão escura do espaço. Ironicamente hoje as estrelas brilham atraentes, como se convidassem a um recomeço. Mas há um mundo íntimo degradado, insofismável realidade, cuja compreensão é necessário aceitar.

As imagens que se seguem num baile de sombras são mais fortes e se impõem nuas e cruas. Nada mais resta senão tragá-las num gesto último e necessário. Já nada se deverá alterar.

A visão panorâmica da cidade, convite a um voo e a sacada, único e inerte socorro, é indiferente a quem dela se desprenda. Cada movimento arranca um suspiro tenso de quem se aventure a observar a cena. A insistência em se por de pé no parapeito produz um misto de beleza se nos prendermos à imagem dos cabelos desalinhados, e suspense se desviamos o olhar para os pés que se alternam entre segurar o corpo e balançar fora da sacada, como se tocasse levemente um riacho ou brincasse em poças d'água que espelham ruas da infância. Brincadeira ou desafio? O tempo passa, os minutos são horas. As notas delineiam melodias eruditas, anestésicas. São "patches" que montam imenso painel virtual. Desvarios provocados pela volta no tempo...

E aquela cobertura continua quebrando o silêncio, tal glamouroso baile saudosista em que cada imagem significa uma perda. Interminável baile! A sombra que nele mergulha é ainda uma incógnita, mas sua alma se retrata nas melodias criteriosamente selecionadas, Piaf delineia sua história, denuncia suas dores e resgata do passado dolorosa história.

A silhueta continua o seu balé sinistro entre a vida e a morte como se uma e outra constituíssem a mesma dúvida ou tivessem a mesma importância. Que pese uma mais que a outra, é certo! O que se pode perceber frente ao risco a que se entrega a criatura.

Como asas, a roupa branca e fina abre-se no espaço, como se ensaiasse o fim da dúvida, imprimindo um clichê definitivo! Mas, transparente, como toda imagem sideral, cobrindo todo o espaço alcançado pelos seus olhos existe um rosto! Tão seu! Alívio da dor insana. O sorriso estampado nesse rosto não abre um abraço para receber pequena ave que ensaia ás cegas um voo noturno sem volta.

Um gesto, apenas uma palavra, até uma falsa palavra garantiria outra chance, quem sabe de sofrer novamente, uma nova mentira talvez. Que fosse mentira, mas que assegurasse religiosamente que a vida é maior. Mas considerá-la um bem agora pode resultar em renúncias ou provas de amor sacrificiosas. Não, melhor não ouvir nada de novo. Já foram tantas as chances. As novas palavras têm cheiro de mofo, já não enganam mais. O que é real agora é somente o percurso convidativo entre o vazio e o solo frio da rua... Novamente o rosto, agora como um convite irrecusável, derradeiro. Mas por que segui-lo, se foram tantas dores, tantas juras hipócritas e não cumpridas. Tantas histórias. Bem vividas, é verdade, mas insipientes e pontilhadas de contratempos e terceiras pessoas sem rostos e sem nomes, mas concretas e presentes, sempre.

Quantos conceitos resumiram-se em frases feitas, esvaziadas de significados, montadas somente para justificar covardias em nome do amor ou da falta dele. Mas o tempo veio e foi, e veio. Vida estagnada, sem ofertas. Agora resta apenas mergulhar na sua própria tragédia, satisfazendo o fascínio do homem pela notícia em carne viva. E assim de olhos fechados projeta na mente um corpo em queda livre, sem som, sem eco, sem nada. Apenas o tombo e o vácuo e o solo que servirá de descanso à mão inerte, que molemente ficará meio aberta, lembrando um bebê que tranquilamente dorme. Apenas o vestido desmentirá a cena e retratará tudo no vermelho intenso molhado, como nos filmes de suspense que imitam a vida.

Contrariando o óbvio, lá permanece o vulto quase transparente a desafiar a gravidade e sua agilidade em caminhar pé ante pé, num malabarismo aéreo que angustia e emudece. Não, não será agora o desfecho. É apenas o ensaio do que chegará com as primeiras horas da manhã, cuja nobre tarefa é dissipar ilusões, delineando realidades que chegam com o sol. Além do mais, ainda há Martini na garrafa, companheira inseparável dos vulneráveis e assustados. Como se apostassem nalguma esperança, ainda restam algumas doses.

Agora ninguém vomitará frases feitas sobre o amor. Essa hora será solitária e só o jornal dirá notícias dela, mas não conseguirá dizer da poesia que precedeu ou acompanhou esse voo para além da dor e dos sentimentos mesquinhos.

Ninguém saberá dos rostos e luzes resgatados do tempo, ou das notas materializadas em cada resto de passado. Nada ficará da voz de Piaf calada no vinil antigo, nem do balé daquela estranha mariposa. E tudo será sinistramente transformado em mais uma entre tantas histórias matutinas, que ocupam o tempo entre o banheiro e o café da manhã. Os jornais contam muitas histórias.

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