O povo daqui é tão diferente, Isabela, tão diferente.
As pessoas são cinzentas, como é de se esperar, porque o país
é cinzento. O povo é infinitamente mais maduro que o brasileiro.
A decrepitude acomete os jovens. As pessoas vivem num estado entre o fastio e
a miséria, ou a mistura de ambos; elas não têm ânimo
para lutar por si, pela salvação, porque nem creem mais numa.
Uma película baça cobre seus olhos, e tudo é cinza porque
através dessa película cinza eles só conhecem o cinza. Não
é sem acerto que a palavra "cinza", pelo menos em português,
também designa as cinzas de uma fogueira, ou seja, o que resta quando o
fogo consome toda a madeira e morre. Esse povo é cinzas.
Os brasileiros são crianças irresponsáveis, maleducadas,
esperançosas, ingênuas, maleáveis, suscetíveis, displicentes.
Esse povo aqui é um povo repisado, seu repertório de ditas e desditas
já fornece decodificações cabais para tudo. O ceticismo é
a lei, a fé vive seu ocaso, como uma atriz velha que anda na rua esperando
que alguém reconheça nela a beldade encantadora de um dia. Já
a esperança foi linchada e abandonada a um canto de um beco frio, onde
seu corpo apodrece. Menos que uma indigente.
Hoje olhei as crianças esquiando na praça. Uma praça imensa,
cinza, com árvores de galhos desnudos contra o céu opressor e em
volta a vigilância dos monumentos, palácios, catedrais e outros prédios
antigos, estátuas, gárgulas, e o repicar dos sinos como uma advertência:
"Não esqueça! Não esqueça!", e é
impossível não lembrar do cinza. E os pombos cinzentos revoam, e
as roupas são pardas.
Mas, bem, havia as crianças. Eu disse esquiando?! Ato falho: patinando.
Riscavam o gelo com seus patins, recobertos por camadas e camadas de roupa. Quanta
lã! Quanto algodão! E todos com cachecóis, cinzentos, marrons,
raro é ver um branco e mais raro ainda um vermelho. Talvez houvesse um
azul, mas nenhum amarelo, nenhum verde. Mas eram crianças, e ainda que
esfriassem cedo (já havia ali adolescentes frios), elas crepitavam. Os
meninos crepitam, e velhas brasas mortas se reacendem.
Eu ouvi o sorriso deles, alto e estridente, desengonçado, estranho como
algo muito volumoso saindo por uma abertura pequena com uma pressão dolorosa.
Assustava os pombos. Interessavam-se uns pelos outros os meninos, exultavam, e
em sinal de satisfação, de gratidão, riam, divertiam-se mais.
Riam, diria-se, quase histericamente, quase chorando. Porque sabiam que acabaria
logo, e quanto mais esqueciam disso conscientemente, mais lembravam, mais sabiam
e viam refletido nos olhos dos outros que logo voltariam para suas casas cinzentas,
seus pais cinzentos, suas horas cinzentas, marcadas por pêndulos de um antigo
relógio. Mesmo que se semeasse objetos modernos dentro de paredes jovens,
tal disfarce era insuficiente. Memórias silentes e expressivas como máscaras
sobrenadam em círculos no espaço exíguo da sala ou batendo
nas paredes como besouros ancestrais obtusos.
Nesse país re-e-re reconstruído respira-se cansaço e empedernimento,
ressentimento, de massacres, de tirania, como um filho que, apanhado desprevenido
pelas deliberações dos pais, fica com sequelas de um tratamento
de choque numa clínica psiquiátrica. Entretanto, a sequela
é isso, o amortecimento da alma, o desânimo, a desalegria, o enfado,
que ninguém esconde, todos exibem com, com orgulho? Ninguém nega
que é infeliz, mas ninguém toca no assunto óbvio da infelicidade.
Está escrito em suas testas: "Melhor infeliz que inconsciente".
Mas as crianças esboçavam felicidade com o oposto da desenvoltura
com que patinavam, rodopiavam; entrançavam os braços, caíam
juntas e riam, riam, riam. Não se importavam com as reprimendas dos sinos,
a reprovação muda das estátuas em pedestais. Até que
o guarda da praça não suportaria mais a afronta e viria dispersá-los.
Uniforme cinza.
Mas antes as crianças ainda brincavam, e eu as olhava ao longe de um banco
de pedra. E houve um momento em que um casal se separou do grupo e, acho que sem
ver-me, acercou-se de onde eu estava (Acho que eu estava tão quieto que
confundia-me com a pedra). Vinham desconfiados, notei que pisavam de leve e os
gravetos mal se quebravam sob seus pés. Vinham de mãos dadas e se
detiveram junto a uma árvore, alguns metros à minha direita. Eram
adolescentes ou quase, não tinham mais de doze anos. Ela se encostou na
árvore e ele ficou diante dela.
Ele era alto e magricela, com aquele jeito desengonçado dos meninos-rapazes,
todos meio patos-cisnes. Do rosto magro e imberbe sobressaía um nariz ainda
em pleno susto de ter crescido, acordado grande; e o cabelo preto e espesso, curto,
era mais curto nas têmporas e na nuca. Ela era mais baixa, e, narizinho
pequenino, olhava de baixo para cima, cheia de medo e anseio.
Agora eles tinham as mãos entrelaçadas, e os corpos muito juntos,
e ele procurou beijá-la. Ela permitiu, fechando os olhos, e arquejando
quase imediatamente. Primeiro ele beijou os lados da testa, depois perto dos olhos,
na beirada das sobrancelhas. Espero, preciso regredir. Antes, houve o momento
em que ele desprendeu a mão, para o espanto dela, e, para espanto maior
ainda, retirou a luva da mão esquerda, e tocou-lhe a face com as pontas
dos dedos. Ela o olhava como se estivessem cometendo um crime, e ele olhava o
ponto em que seus dedos tocavam o rosto dela, como se o contato entre as peles
fosse um milagre. E então ele descobriu os cabelos dela, quero dizer, puxou
delicada mas inadvertidamente a touca; é, mantenha-se a ambiguidade,
ele descobriu os cabelos dela. Revelaram-se longos, castanhos escuros, sedosos,
mas não completamente escorridos, porque se curvavam especialmente nas
pontas. Ele passou os dedos pelo cabelo dela, e só então começou
a beijá-la, até encostarem os lábios. Os sinos tocaram furiosamente,
mas eles nem estremeceram por isso, só tinham estremecimento um para o
outro. Eles ficaram com os lábios só unidos por um bom tempo, os
olhos fechados, em beijos longos e delicados. A menina na verdade mal movia a
boca, apenas se permitia beijar. Ele agora já se assemelhava mais a um
rapaz, obscurecido por hormônios. Notei que agora ele premia o ventre contra
o dela, e tentou beijá-la vorazmente, mas ela o fez recuar e abriu os olhos
espantadíssimos e turvos de desejo. E ficaram se olhando, e eu nunca vi
nada tão triste e tão sôfrego. Olhavam-se, os peitos subiam
e desciam...
Isabela, que distância há entre o sublime e o lastimável?
É touca ou gorro? Gorro, não é? Ato falho...
Um beijo do seu,
Miguel