Entrei em casa e liguei a televisão. Os outros ainda não tinham
chegado e aproveitei o sossego para ver o restinho da novela das seis. Me esparramei
no canto direito do sofá, tirei os sapatos, um pé forçando
o calcanhar do outro e apoiei as pernas na mesinha de centro, como faço
todos os dias - ou fazia, sei lá, agora nem eu mesma entendo. Lembro
bem da sensação de conforto contida na rotina dos pequenos gestos,
cacoetes de vida adquiridos ao longo da trajetória, quase uma segunda
natureza. Lembro, também, de ter encontrado uma graça carinhosa
nesses hábitos tão meus, só meus, ainda mais quando, sem
dar conta, abri o jornal na seção de sempre. Eu não podia
imaginar que toda essa segurança tinha os minutos contados. Foi a voz
na televisão que me alertou. Olhei e confirmei: minha amiga Vanessa ,
em prantos, contava para a câmera como eu tinha desaparecido há
mais de dois meses. Voz embargada, descrevia nossa amizade de tantos anos, as
conversas ao telefone, confidências de parte a parte desde os tempos de
juventude. Em seguida foi a vez de minha madrinha, que se dizia desconsolada
com tudo aquilo, era como perder uma filha, tão boa filha e mãe
eu fora - não; ela é, retificou, tinha certeza de que eu estava
viva, confiava na justiça divina, haveriam de me encontrar. O repórter
enfatizava os pontos mais dolorosos, sabia fazer com que o desaparecimento de
uma desconhecida assumisse contornos de calamidade pública.
Nisso, João Gustavo chegou. Veio me dar o beijo de todos os dias, pegou
a outra parte do jornal, atirou-se na ponta esquerda do sofá, tirou os
sapatos, esticou as pernas sobre a mesinha de centro, um vaso separando nossos
pés. Olhos fixos na reportagem, estiquei o queixo apontando a tela. Sua
fisionomia logo perdeu o ar descontraído para se fechar numa máscara
de sofrimento. Incrível como as autoridades não fazem nada, como
a polícia é ineficiente, exclamou, esmurrando o ar num gesto inconformado.
Falam de mim, retruquei. E de quem mais haveriam de falar? - foi a resposta
irritada - desaparecida há dois meses, essa espera que não acaba,
os telefonemas incertos, eu me desdobrando para conseguir o dinheiro e depois,
silêncio. Esse caso está acabando com os meus nervos.
Voltamos a nos concentrar na televisão. Agora entrevistavam nosso filho
mais velho, que por sinal, acabava de entrar em casa, com o estardalhaço
costumeiro. Jogou a mochila no meio da sala e veio nos dar um beijo. O que viu
na tela fez com que parasse a meio caminho:
- Olha eu lá! exclamou radiante.
O pai fez sinal para que se calasse e assim pudemos ouvir seu depoimento ao
repórter. Falava com gravidade:
- Então ela saiu naquela tarde, dizendo que ia ao supermercado. Foi a
última vez que a vi, dizia a voz adolescente, lutando contra a emoção
(a mim, porém, não enganava. Vi que estava por um triz de cair
na choradeira diante das câmeras).
A reportagem voltou aos estúdios, a apresentadora prometendo uma catástrofe
devastadora cheia de mortes no Taiti, logo após nossos comerciais.
Aproveitei o intervalo para servir o jantar e mandar que o Cadu levasse a mochila
para o quarto.
- Esqueceu que detesto bagunça?
Cadu respondeu que claro que lembrava, que eu sempre fora assim, enjoada com
desordem. Ele e o pai se entreolharam, sorriram nostalgicamente e se puseram
a enumerar todas as coisas com as quais eu implicava: pasta de dente aberta,
roupa jogada no chão, toalha de banho molhada em cima da cama, papelada
espalhada pela casa...
- E a mochila, essa então você sempre me recriminava.
Verbo no passado. Olhei bem meu filho e sua fisionomia tristonha causou-me tanto
dó que comecei a me afligir. Não tive tempo de elaborar o sentimento
- conselho do meu terapeuta quando entro nessa zona cinzenta - porque a voz
na televisão reapareceu e, conforme prometido, mostrou algumas cenas
desalentadoras causadas por um vendaval na capital do Taiti cujo nome me escapa.
Pessoas do outro lado do mundo lutando para salvar alguma coisa da força
avassaladora da chuva e do vento, casas destruídas, a água carregando
pertences e vidas com indiferente impiedade, tudo no registro de um cinegrafista
amador; enquanto isso, lá em casa, sentados em torno da mesa de jantar,
acabávamos a salada e eu servia a carne, sob os protestos do Cadu que
dizia detestar ensopado, que naquela casa não se fazia comida decente
desde que a mamãe... Suas reclamações foram interrompidas
pelo repórter que voltava ao assunto do meu desaparecimento. Continuaram
a entrevistar amigos e família. Foram até meu escritório,
onde minha sócia se dizia desconsolada, eu tinha todas as qualidades,
uma mulher excepcional que conseguira juntar as tarefas de dona-de-casa e mãe
de família a um desempenho profissional impecável. Falou dos primeiros
contatos dos sequestradores com o escritório, e depois o silêncio
aterrador. Acrescentou que ia todos os dias à igreja pedir pelo meu retorno.
Quem diria, hein, Maria Alice! Tenho estado com você quase que diariamente
nesses últimos sete anos, há menos de duas horas nos despedimos
ao fim do expediente e só agora descobri seu lado místico. A pergunta
de sempre: o quanto sabemos dos outros? e de nós mesmos? Pouco, muito
pouco. Justo quando ia externar o pensamento, vi o rosto de Maria Alice se contraindo
num esgar, os músculos entortando a boca até que não mais
conseguiu reprimir a emoção e chorou na frente de todo o Brasil.
- Tragam-na de volta - implorava para as câmeras - quero minha amiga de
volta.
E eu que nunca imaginei que Maria Alice gostasse tanto de mim. A vida é
isso mesmo - filosofei barato - uma surpresa após outra.
Depois, foi a vez de minha mãe. Coitada, parecia confusa, dizia que sim,
eu era sua filha. Quem tinha desaparecido? Alguém cochichou-lhe alguma
coisa e ela falou, um pouco mais segura: - Sim, ela desapareceu, a minha filha,
acho que sim. Então é por isso que não tem vindo me visitar?
o olhar de um azul aquoso, cheio de inocência quase infantil perguntou
às câmeras. Corta.
Agora foi a vez de nossa filha caçula, falando direto de Denver, Colorado,
onde está fazendo intercâmbio. - É, eu estou sabendo, morrendo
de preocupação, mas meu pai acha que devo acabar a Bolsa aqui
mesmo, de nada adiantaria voltar. Vi as lagriminhas da Fê querendo escorrer
do canto de seus olhos puxados e me preocupei com toda aquela neve. Será
que ela estava se agasalhando direito? Sem luva, sem gorro, num frio daqueles.
Mas como ela está bonita, disse para mim mesma- ou para meu marido e
meu filho, acho que falei alto, mas a essas alturas já não tinha
muita certeza. Saudades da Fê, quem foi que disse que seis meses passam
depressa, continuei, mas ninguém respondeu. Então, resolvi fazer
alguma coisa. Levantei e comecei a tirar a mesa. Enquanto isso, João
Gustavo e Cadu trocavam ideias sobre o próximo concurso fotográfico
da escola. Ouvi Cadu dizer: e justo esse ano eu pretendia fotografar a mamãe.
Sorri feliz com a ideia, já pensando em cabeleireiro e maquiagem
e ia voltando da cozinha com a sobremesa quando a cena à minha frente
fez com que eu parasse: meu filho, esquecido do pudor adolescente, chorava sem
a menor censura, o corpo sacudido por soluços, e em meio à comoção
não pude deixar de notar como estava se tornando espadaúdo, já
não era mais um garotinho, meu garotinho. A cabeça deitada sobre
a mesa, o rosto escondido no vão do braço, Cadu chamava por mim,
enquanto João Gustavo tentava desajeitadamente consolá-lo, passando
a mão sobre os cabelos macios, tão macios, justo o João
Gustavo que nunca foi muito de carícias. Procurando não fazer
barulho em respeito à emoção que transbordava, encostei
a bandeja numa ponta da mesa e servi um pedaço bem grande de torta com
sorvete para afastar a tristeza. Empurrei o prato para junto do Cadu mas ele,
sem sequer me olhar, o afastou para longe. João Gustavo também
não comeu. Olhou o filho, consternado, impotente diante da dor, sacudindo
a cabeça num não de descrédito, isso não pode estar
nos acontecendo, essa reviravolta em nossas vidas. Num repente que me pareceu
movido pela raiva, levantou-se, foi até a televisão e desligou-a,
justo quando o repórter interrompia a cotação do dólar
para anunciar, em edição especial, que tinham encontrado não
fiquei sabendo quem ou o quê.
Desanimada com o abatimento da família, levei tudo de volta para a cozinha,
a torta, o sorvete que já começava a derreter, coloquei os pratos
e talheres na máquina de lavar e liguei o botão. Imediatamente,
a máquina deu sinal de vida, pôs-se a sacolejar toda como se dançasse
uma rumba fora de moda. Era preciso chamar o técnico, que mais uma vez
me diria que a máquina não tinha jeito, estava velha demais, por
que não comprava uma nova, mas ainda assim eu insistiria e ele daria
um jeito, nem que durasse só alguns meses, pelo tempo que fosse. Enquanto
isso a vida continuaria como sempre, adiando um pouco aqui, um pouco ali, enquanto
tivesse jeito, sempre enquanto tivesse jeito.
Nisso, o telefone tocou. Pensei em atender, mas me contive. Por que ninguém
atendia? João Gustavo, Cadu... Mais um toque, o terceiro, o quarto. Quem
sabe nova tentativa de contato. Corri até a sala. João Gustavo
e Cadu jogavam uma partida de xadrez, perdidos nas próprias estratégias.
O telefone insistia. Será que eu deveria? mas se descobrissem que eu
estava em casa, talvez não me devolvessem, talvez aumentassem o valor
do resgate, mas o que eu estava dizendo, eu estava em casa, na segurança
dos pequenos gestos de todos os dias, e o telefone que não parava, se
eu atendesse poderia ser o destino de meu próprio destino. João
Gustavo e Cadu imersos na infindável partida, a Fê nos Estados
Unidos, Denver, Colorado, minha madrinha na segurança da casa dela, Maria
Alice e Vanessa, cada qual com suas famílias, vendo um filme na TV, minha
mãe, coitadinha, talvez nem se lembrasse que eu tinha desaparecido, e
eu lá, à mercê dos sequestradores, o telefone tocando,
as notícias em edição especial. Decidi: antes de atender,
ouviria as notícias. Liguei a televisão sem que João Gustavo
e Cadu se dessem conta. A imagem apareceu antes do som: meu marido, meu filho
e minha filha, abaladíssimos, amparados pelos amigos. Desliguei a televisão.
Nesse momento, o telefone parou de tocar.