É de conhecimento público que no dia dezessete de janeiro de
mil novecentos e noventa e nove as pessoas daquela cidade pararam de sonhar.
O escarcéu provocado pela falta de sonhos começou quando a medicina
provou-se ineficaz contra o problema. As pessoas entravam nos consultórios
médicos, esperançosas de respostas para seus problemas, diziam
"Doutor! Faz uma semana que não sonho!" e os médicos,
de macacões brancos e canetas baratas, rabiscavam um papel, anotando
coisas sem importância. Então respondiam "Tome esse remédio
antes de cada refeição" e chamavam o próximo paciente.
Não adiantava muita coisa, mas o sono das pessoas era mais tranquilo.
O problema foi ignorado enquanto se manteve na cidade do interior daquele estado
afastado do resto do mundo. Mas, quando a filha do prefeito parou de sonhar,
e alguns amigos , vindos de fora, adquiriram a doença, a coisa toda pareceu
com uma pandemia. Campanhas de vacinação, quarentena, cuidados
para não perder o sonho, maneiras de reconhecer quem estava com a doença
e diagnosticá-la antes do estágio terminal. Tudo isso durou uma
semana, até que, em algum lugar da Romênia, outro vilarejo padeceu.
Vale lembrar, que o primeiro vilarejo não ficava nem um pouco perto da
Romênia, na verdade, era bem longe. Depois de seis meses, o Não-sonhar,
tinha se espalhado por todo o mundo. Muita gente enlouqueceu, outras aceitaram,
e a grande maioria nem se importou, já que não sonhava desde muito
tempo. Aqueles sonhos perdidos nada significavam para uma geração
de i-pods, Internet, e carros. Não sonhar? Pelo menos a conexão
não estava lenta...
Quando a medicina se mostrou ineficaz ao problema, as pessoas recorreram aos
grandes místicos: procuraram pajés e feiticeiros, ciganas, mães-de-santo,
hippies, e toda sorte de gente que não paga imposto por seus serviços.
A coisa toda ficou bem feia quando o governo americano acusou os territórios
árabes de terrorismo onírico, dizendo que os grupos radicais tramavam
contra o ocidente. A Primeira Guerra Onírica aconteceu no dia dezenove
de abril de dois mil e três. Quando foi provado que os árabes não
tinham nada a ver com a história, os americanos pediram desculpas, retiraram
suas tropas, e levaram um pouquinho de petróleo...
Exatamente um ano depois da guerra, algumas pessoas voltaram a sonhar. Não
eram sonhos muito bonitos, mas davam pro gasto. Essas pessoas, os "oníricos"
, começaram a ser tratadas como Deuses, em uma nova religião,
o "Onírismo". Pregando que só os escolhidos podiam sonhar
nesse novo mundo, o onírismo ganhou mais adeptos que o Orkut no mesmo
espaço de tempo.
Mas a ciência,mãe de todas as coisas, provou que não, que
todos estavam errados, que a falta de sonhos dava-se por um bloqueio, desconhecido,
mas que poderia ser disfarçado através de uma máquina de
sonhar. Essa máquina copiaria os sonhos dos oníricos , faria uma
filtragem, e seria repassada para o usuário. Em menos de um ano a máquina
vendeu mais que a Bíblia. As pessoas , finalmente, poderiam voltar a
sonhar. Claro, não eram seus sonhos, mas valiam.
Sonhando o sonho dos outros, as pessoas se esqueceram dos seus próprios.
De vez em quando,um viciado em sonhos surtava, diziam os cientistas que isso
era provocado pelo sonho não natural, já os "oníristas"
(pessoas adeptas do onírismo) diziam que era castigo divino. Foi criada
uma policia especial para esse tipo de caso, e até faculdades especializadas
no estudo dos sonhos. Tudo muito bonito e organizado. Pelo preço certo.
As pessoas que não podiam comprar sonhos se viravam como podiam, viciavam-se
em drogas (que tinham os efeitos diminuídos, já que não
havia alucinação), bebiam, e mais toda sorte de ações
ilícitas. Os governos, temendo problemas graves, começaram projetos
de ajuda ao povo. O que resultou em mais privatizações e menos
empregos.
De todos os campos afetados pelo Não-Sonhar a arte foi quem mais sofreu.
Já que a criação é obra do sonho. Não se
faziam mais gênios como antigamente. A falta de sonhos transformou essa
bela esfera habitada, a Terra, em uma terra de zumbis, pois todo mundo sabe
que o sonho é que move o mundo. Mesmo o ato de comprar sonhos, viver
uma fantasia que não é sua, acaba por corromper as mentes.
Até que, no dia vinte e três de março de dois mil e seis,
um jovem cientista alemão descobriu os motivos do Não-sonhar.
Desde os oníricos até os charlatões, desde a ciência
até os governos. Estavam todos errados.
Após eternidades de serviço incansável o sonho tinha desistido.
As pessoas da nova época não acreditavam mais no sonho, apenas
no ilusório, apenas em suas criações plásticas-eletrônicas.
Não havia espaço para aquilo que não existia desde o tempo
imemorial de sua primeira existência: o sonho tinha dormido.
Em palavras menos poéticas, sem circunlóquio, o sonho tinha se
aposentado.
As palavras do jovem médico provocaram a maior crise de riso já
registrada na história da humanidade.
Estranha mente, o jovem médico desapareceu uma semana antes das pessoas
voltarem a sonhar...