A Garganta da Serpente
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O escritor e o tubarão

(Kirisoré)

Era uma vez um sujeito metido a escritor que, por um acaso, ganhou alguma grana com o primeiro livro e se mandou, com mulher e filho, para morar em uma casa em uma praia deserta, a poucos quilômetros de um vilarejo de pescadores bêbados. A coisa toda não era tão ruim assim. A casa era decente, tinha água, luz e esgoto, quatro quartos, uma sala grande, cozinha mobiliada e banheiros sem vazamento algum. Até tinham um bote de madeira e um pequeno cais particular.

Nas primeiras semanas, foi aquela "agradável confusão". Nenhum dos três sabia se localizar direito; se perdiam pelas matas adjacentes, erravam as trilhas, iam parar na praia errada. A escola maternal do filho era boa, mas algumas crianças teimavam em se meter a maltratar todo e qualquer novato que lá aparecesse. Cada vez que a esposa entrava no mercadinho do vilarejo, todas as demais mulheres a olhavam como se ela fosse alguma aberração vestida de Zara Coleção Verão. Quanto ao escritor, ele às vezes caminhava pelo mesmo vilarejo e costumava entrar no boteco local para bebericar uma cerveja ou um vinho, e beliscar um pãozinho com mortadela e queijo. E aí era sempre o mesmo ritual de desconfiança: ele entrava, todos emudeciam, o olhavam com olhares ameaçadores, e assim que ele punha os pés fora do estabelecimento, o burburinho voltava a preencher o ar salgado.

Mas isso era só no começo. Depois de um tempo, o povo finalmente percebeu que a família não era nenhuma ameaça saída de algum filme de Sam Peckinpah, e o clima ficou mais relaxado e amigável. O casal participava das festas tradicionais, frequentava bares e tabernas com naturalidade e convidava vizinhos para cafezinhos, pedaços de bolo, jantares e aniversários. Em suma, eles estavam integrados à comunidade.

O escritor continuava seu trabalho. Ora escrevia contos de terror, ora se debruçava sobre histórias de ficção científica ou crônicas para jornais da metrópole. Respondia a cartas dos raros fãs e amigos, recebia boas e más notícias de sua editora, brigava com a agente pelo telefone e fazia pedidos esdrúxulos à mesma. Mas estava feliz: tinha um quarto só para ele, com SEUS livros, SEUS discos, SEUS filmes, SEUS arquivos, SUAS máquinas de escrever. SUAS TRALHAS. Não poderia estar mais feliz naquele quarto.

Um dia, o casal e seu filho resolveram estrear o bote de madeira abandonado no cais. Compraram remos novos em uma das lojas do vilarejo, e até uma vara de pescar para não fazer feio. Antes de colocar a embarcação na água, o escritor batizou o barco com o nome de Demeter - convenhamos: o sujeito era...escritor. E lá foram eles, além da arrebentação ou seja lá como as pessoas chamam aquele ponto que fica meio longe da praia.

E assim, como eu dizia, lá foram eles. Tal qual capitão, imediato e timoneiro, o trio atravessou a arrebentação e adentrou a calmaria do oceano Atlântico. O vento salgado fustigava os cabelos e arrepiava a pele dos navegantes. O sol brilhava feito o olho de algum deus invencível e nunca visto pela criatura que criara eras antes. O escritor estava confiante, certo de que o barco era seguro e que nada naquele calmo mar iria estragar seu momento em família. Tudo beirava a perfeição.

Pequenos cardumes de peixes multicoloridos atravessavam o fundo da embarcação e davam ao ato marítimo um aspecto onírico. Era como se os três formassem a única família sobrevivente de um segundo dilúvio. O escritor era um Noé disfarçado de Ahab, despreocupado com a existência ou não de uma baleia branca. Desejava que momentos como aquele pudessem se repetir à exaustão; com os mesmos ares, os mesmos elementos de paisagem, a mesma sensação de comunhão e de felicidade.

O vilarejo e seus habitantes podiam ser o fim da picada, mas aqueles momentos eram e sempre seriam únicos.

Mas sabem como é: esses vilarejos perdidos no meio do nada sempre guardam algum episódio mal explicado ou de menor importância aos de gente da cidade grande. Podia não ser um lugar recomendado por algum guia turístico, mas tinha um certo charme na medida em que sabia expor um trunfo na hora certa; mesmo não sendo esse trunfo o maior motivo para alegrias.

Aconteceu que, bem no meio do passeio de barco, algo se chocou contra a embarcação. Nenhum outro bote ou algo do gênero. Mas, sim, algo submerso e, dada a intensidade do choque, algo de proporções nada irrelevantes. Imediatamente, o escritor parou de remar e verificou se todos estavam bem. Em seguida, pôde perceber que o casco do bote não tinha sofrido dano algum.

"Cacete! O que raios foi isso?!"

Ninguém soube responder. Ainda estavam assustados com o repentino estrondo causado por alguma força invisível.

Convenhamos novamente: o capitão era escritor. Dificilmente saberia onde era estibordo e onde era bombordo. Lidava com erros de gramática e ortografia, e não com acidentes em alto-mar. Por esta razão, era compreensível que estivesse tão confuso quanto sua mulher e seu filho. Mesmo assim, ele decidiu que não adiantava ficar ali parado, esperando até que a maré os levasse de volta à praia. Desajeitado, ele empunhou os remos e iniciou o retorno. Remou, remou e remou mais um pouco. Até que, novamente, chocou-se com algo que não viu. Amaldiçoou o dia em que teve a ideia de jerico de insistir naquela empreitada. Então, repousou os remos e se levantou para ter uma ideia mais precisa de sua situação. Foi exatamente nesse momento que entendeu em que furada se metera junto com a família.

Rondando a embarcação, estava um gigantesco tubarão branco. Devia medir uns seis metros. Permanecia a alguns centímetros da superfície, mas de vez em quando fazia questão de emergir sua imponente e calejada barbatana, talvez com a intenção de mostrar aos tripulantes com quem estavam lidando.

"Maldito peixe", vociferou o escritor. E apanhou um dos remos e começou a bater na água com ele, no intuito - assaz inútil - de fazer com que o predador aquático desistisse de transformá-los em desjejum.

O tubarão pouco ligou, e continuou rondando o navio.

Rondou, rondou, até que submergiu, se afastou e, lá do fundo, ressurgiu em alta velocidade, chocando seu nariz contra o casco. O escritor tentou se segurar nas bordas, ao mesmo tempo em que protegia mulher e filho com um dos braços. O tubarão contra-atacou três vezes, até que na quarta jogou a carranca para fora e abocanhou o frágil barco. Assim que seus dentes triangulares fincaram-se na madeira, marido, mulher e filho começaram a berrar com toda a força que seus pulmões lhes permitiam. O desespero era geral. O tubarão não largava o barco, a família tentava se afastar o máximo possível da fétida mandíbula, e chacoalhavam o todo com incomum ferocidade.

Então, em um tresloucado gesto de coragem, o escritor agarrou o remo e pôs-se a estapear o animal com toda a raiva.

"Filho de uma puta com guelras!!! Isso não é comida e nós não somos focas!!! Vai embora, porra!!! Deixa a gente em paz e nunca mais volte, seu maldito leviatã albino!!!"

E tome-lhe remo no nariz.

Finalmente, o bicho soltou o barco e afundou, silencioso e pesado. Nos eternos dois minutos seguintes, não houve sinal da fera. O escritor continuou em alerta, com o remo levantado e prestes a estraçalhar a fera assim que esta reaparecesse.

Mas o tubarão não deu as caras novamente, e o mar tornou a ficar tranquilo.

O escritor colocou os remos na posição correta. Começou a remar lentamente em direção à praia, sempre olhando para os lados e para trás, cauteloso. Remou cerca de vinte minutos até atingir a areia. Assim que o fez, mandou a família descer e se refugiar na casa.

"Vão indo. Eu chego lá daqui a pouco", disse.

Quando sua mulher e seu filho entraram, ele caminhou até a garagem, apanhou um galão de gasolina, despejou o todo sobre o barco e ateou fogo. Chamas e fumaça negra subiram aos céus e lamberam o pôr do sol. O escritor ficou lá, olhando a modesta pira e segurando o remo com o qual havia batido no tubarão. O miserável devia estar a quilômetros de distância, na certa devorando cardumes de atum ou digerindo algum surfista. Mas não tinha levado a melhor. Pelo menos não a curto prazo.

O fogo ardeu até a meia-noite. O Demeter havia virado um montinho de destroços e cinzas em alguma praia desconhecida do grande público. O escritor olhou aquilo tudo e tomou a decisão que comunicaria na manhã seguinte: era hora de voltar. Eles não pertenciam àquele vilarejo.

E o vilarejo não os merecia. Disso ele estava certo, como raramente estivera.

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