Sob um sol escaldante de setembro, o ônibus saiu da 715 Norte em direção
ao final da W3 Sul. Sentado em um dos assentos do meio, colei o rosto na janela
e, apesar do calor, permaneci atento aos sinais do destino. No início,
estes não vinham de forma óbvia: uma motorista reclamando das
idiotices de outros motoristas no trânsito; baleiros e demais vendedores
ambulantes nas paradas; grupos de estudantes falando alto, fofocando ou simplesmente
mascando seus chicletes.
À medida que o veículo se aproximava do coração
da cidade, o calor parecia ficar mais forte. Abri uma das janelas na esperança
de que alguma brisa viesse afugentar a impiedade do forno candango. Foi quando
subiu um homem de uns trinta e poucos, vestido com roupas simples e carregando
o que pareciam ser folhetos xerox. Assim que passou pela roleta, começou,
automaticamente, a declarar seu pedido de caridade. Dizia que não queria
incomodar a viagem dos passageiros, mas que podia muito bem estar roubando.
Na condição de ex-viciado em drogas, tentava ajudar uma associação
religiosa que auxiliava e reabilitava jovens delinquentes e drogados em
geral. Não vendia nada - ao contrário de outros, que empurravam
sacolés de mel e de própolis, chocolates untados de parafina,
paçocas e demais doces caseiros. Pedia a colaboração simbólica
de um real ou de um vale-transporte. Tudo em nome de Deus ou algo assim. A certa
altura, o discurso começou a desbancar para o incompreensível;
talvez porque alguma senhora em um dos bancos da frente tenha contribuído
com algumas moedas, sei lá. O jovem começou a ficar empolgado,
ainda mais quando outro passageiro concordou com parte de sua história.
O ex-drogado começou a falar de seu tempo no Exército, de como
fora humilhado por superiores em alguma base de operações no norte
do país. Depois relatou suas impressões de uma estadia na prisão
da Papuda - ele possuía algumas tatuagens características do inferno
presidiário. Finalmente, quando o ônibus chegou em uma das paradas,
ele agradeceu a gentileza e a compreensão de todos os passageiros e saltou
para novos desafios demagógicos e religiosos.
A viagem continuava. Rostos deformados desfilavam nas calçadas, em meio
a prostitutas disfarçadas, idosos com estranhos trejeitos, desconhecidos
saindo dos hospitais de base e cães soltos fuçando nos lixos e
cantos de shoppings. Empregadas caminhavam para os supermercados, executivos
falavam com a amante ao celular, e bêbados precoces, embriagados pela
miséria, pela feiura e pela visão de um futuro de torturas, cambaleavam
o mais discretamente possível. No asfalto, carros oficiais eram utilizados
em atos nada oficiais por motoristas cujos pecados fariam corar o mais hediondo
dos ditadores. Moças alisavam as pernas de seus namorados em seus possantes
carros importados ou rebaixados. Candidatos e executivos saíam do trabalho
em bandos de três ou quatro para almoçar em algum restaurante self-service-a-quilo.
Todos contando vantagens e escondendo seus maiores temores. A mesma coisa se
dava com adolescentes protegidos por suas negras camisas de bandas de heavy
metal e Emo.
Gordurinhas sensuais despontavam, aqui e ali.
Através do vidro - aquele mesmo tipo de vidro que, quando quebrava, se
espatifava em centenas de pedaços quadrados e não-cortantes -
policiais militares, tal qual zumbis protegidos por tentáculos invisíveis
do astro-rei pela blindagem das viaturas, faziam charme e tentavam imitar seus
Van Dammes, seus Segals, seus Stallones e seus Bruces Lees favoritos. Insistiam
em manter uma pose de durão, com óculos escuros, corpos rígidos
e mãos coladas à arma e ao cacetete. Mas o único resultado
que conseguiam era aumentar o ridículo e a debilidade de seus trejeitos.
Quanto às crianças de rua, elas punham em prática suas
estratégias e táticas de sobrevivência perto de sinais,
nas portas de igrejas, na saída de bancos e caixas eletrônicos.
Faziam caras e bocas, matavam Stanislawski de inveja. Não dava pra concluir
se era mesmo uma tristeza artificial ou se era uma necessidade violenta sem
lei.
O céu anunciava chuvas torrenciais quando o ônibus se aproximava
do final do trajeto. O número de pessoas ainda era grande e só
iria aumentar, com ou sem aguaceiro. Talvez conseguisse chegar ao ponto final,
descer e apanhar outro ônibus, que fosse na direção oposta,
mas era tudo pura questão de sorte. Dezenas de passageiros se aglomerariam
sob os diminutos pontos de ônibus: a humanidade ainda tinha medo de chuva,
mas alguns raros espécimes resistiam ao medo e enfrentavam o exército
de pingos na esperança de obterem algum tipo de salvação.
Faltavam apenas dois pontos quando a chuva começou a cair. O sol ainda
brilhava, o que transformava o lugar numa verdadeira e insuportável sauna.
Após duas marquises apinhadas de gente, desci e atravessei a rua, até
chegar ao ponto de ônibus oposto. Subi na primeira zebrinha rumo ao final
da W3 Norte.
A humanidade caminharia mais uma vez através daquele vidro planejado.