A Garganta da Serpente
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Mensagens mixadas de um inquilino maldito

(Kirisoré)

As formas tomavam conta da folha de papel. Músculos exagerados e barrigas flácidas dividiam o espaço com gestos violentos e expressões faciais extravagantes. O Desenhista era bom no que fazia, e isso não era novidade alguma. Foram anos de prática e de pesquisa, durante os quais nenhuma gota de suor caiu em vão.

Harmoniosamente, a tinta nanquim ia se espalhando pelo papel branco e formava os desenhos finais da mais recente obra do Desenhista. Ele já previa a alegria que certamente o deixaria chumbado por dois ou três dias, mas isso não o deixava triste. Pelo contrário: fazia parte do trabalho.

Em um de seus momentos de rara tranquilidade, o céu que cobria Neurópolis estava estrelado, envolvendo os habitantes com seu frio manto. Decerto, existiam fundações podres sob o monumento à liberdade, mas os gritos da recém-nascida Esperança tornavam-se cada vez mais fortes e ecoavam com mais facilidade pelos corredores do poder. Lá fora, a penumbra parcial da metrópole não estava tão ameaçadora quanto nos dias anteriores. Ainda assim, os lamentos de noites passadas invadiam o ambiente à medida que o vento assobiava pela fresta da janela.

Não era um escritório grande - embora respeitável, como qualquer ambiente tocado, pisado ou cafungado por um ser da estirpe do Desenhista -, mas era aconchegante, e sobretudo bem decorado. Pôsteres emoldurados e quadros de artistas amigos cobriam a maior parte das paredes e dividiam o espaço com duas estantes metálicas abarrotadas de livros sobre os mais diversos assuntos: técnicas artísticas, ensaios filosóficos, histórias em quadrinhos e algumas curiosidades adquiridas em sebos, tal como a obra completa de Borges e uma biografia do Conde de Lautréamont, cuja capa em couro parecia salpicada de sangue.

Mais uma vez, o Desenhista estava às voltas com intrincados afazeres artísticos. Dúvidas e curtos acessos de raiva - interna e externa - haviam permeado aquelas últimas 24 horas. Há mais de um dia sem dormir, o homem insistia, mais uma vez, em testar seus próprios limites, sabendo, no fundo, que o sucesso já havia sido alcançado. Tendo se alimentado exclusivamente de macarrão instantâneo com ketchup picante, ele concentrou suas forças para que aquele trabalho perpetuasse sua imaculada reputação. Não que ele quisesse ser reconhecido como um artista maldito; o termo-clichê lhe causava náuseas e arrepios. Não era nada disso: o Desenhista era o Desenhista. Por mais simples que isso parecesse, essa era a realidade e ser nenhum - na face da Terra ou fora dela - poderia mudá-la.

Os litros de café, cuja caixa, metálica, ele guardava na geladeira como se fosse um tesouro, haviam enrijecido seus neurônios de tal forma que a simples queda de um alfinete no carpete seria suficiente para desviar sua atenção e desencadear sua cólera diabólica. O Desenhista cravou os olhos no papel Canson, devidamente estabilizado na prancheta por pedaços de fita-crepe; ele fez uso de quase todo o material de que dispunha: tinta acrílica, pincéis japoneses da marca Zumi, aerógrafo - um belíssimo Blinks Bullows L90 -, tinta guache, pastel - ele possuía uma caixa da Grumbacher, com 336 bastões de diferentes cores e tons -, spay fixador, lápis Caran d'Ache Prismalo, tintas nanquim - tanto a comum da Pelikan, quanto as coloridas da Winsor and Newton -, canetas para nanquim da Rotring, além de uma vasta gama de marcadores e canetas esferográficas.

Algumas partes do trabalho chegaram a ser repetidas três ou quatro vezes, sem remorso ou desespero. Com o pescoço dolorido e os ossos da mão atacados por câimbras lancinantes, o Desenhista recusou-se a descansar. Não que aquilo fosse uma questão de honra; mas, sim, uma questão de simples comodidade.

Às 18 horas e 42 minutos, após dois dias de penosa labuta, o trabalho estava terminado. Sob a forte claridade da luminária cinza, o Desenhista juntou as mãos, levantou os braços, esticou sua coluna fazendo com que três ou quatro vértebras estalassem prazerosamente, e estalou o pescoço, na tentativa de se sentir mais relaxado. E conseguiu. As oito folhas estavam prontas, limpas, secas e guardadas dentro de uma pasta parda. O Desenhista poderia finalmente tirar uma semana de folga, que seria devidamente preenchida com festas, bares, orgias e todo o combustível, lícito ou não, que seu corpo e sua alma pedissem e pudessem suportar. Os "Dias do Homem-Baile" estavam apenas começando.

Duas horas mais tarde, o meninão já estava de banho tomado, cheirando a Eau de Cologne Hugo Boss (ou algo assim). Fumava seu eterno Marlboro Light com a calma de um monge tibetano morto, mesmo se seu cérebro cromado arquitetava planos notívagos a mil por hora. O fundo musical já havia sido escolhido: um genial Dizzy Gillespie, que, com suas mitológicas bochechas ranídeas, interpretava "All the things you are", para deleite de um Desenhista estoicamente estarrecido. Como permanecer naquele estado semiletárgico não parecia ser uma boa alternativa para o resto da noite, o Desenhista começou ligando para um de seus amigos de longa data, o não menos lendário "Kafka da rua Paissandu".

Figura carismática na noite carioca, esse arauto da boemia - ou "priapismo", como tanto gostava de sublinhar - havia se tornado um mestre na arte do Álcool Venenoso, e ingeria tanto homéricas doses de uísque - "guigui", segundo o vocabulário do próprio - quanto o bom e velho chopinho. Para falar a verdade, qualquer líquido com uma mínima porcentagem de álcool, fosse este fermentado ou destilado, era bem recebido, e devidamente acompanhado das famosas "merdinhas" (mais um item no vocabulário da figura); iscas de peixe ao molho rosê, batata frita, salaminho, queijo Provolone em cubos ao molho inglês, entre outros. Note-se que tais pratos eram salgados, o que equilibrava o efeito etílico; mesmo se esse não era, nem de longe, o principal objetivo.

De seu verdadeiro nome Andrei Maiakovski, o Kafka da Paissandu era arquiteto de formação, possuía uma firma de arquitetura e um apartamento cujas paredes eram azuis. Gostava muito de ler - livros "vermelhos", segundo ele - e tinha orgasmos titanescos quando ouvia um bom jazz. Alguns de seus sonhos incluíam conhecer Tom Jobim, fazer amor com Ornella Muti e beber com Miles Davies; mas como dois de seus objetos de desejo já haviam retornado ao pó, preferiu continuar sonhando e se divertindo com seus amigos de infância. Afinal, "até gente rica e famosa podia ser a pior espécie de canalha na face da Terra".

Os doze dígitos do número foram traduzidos em uma melodia deveras irritante. Do outro lado do aparelho, respondeu uma voz gutural porém melódica.

"Sim?"

"E aí, mermão?"

"Oh, my God." O tom era de emoção no melhor estilo CNN.

"E aí, meu amor?"

"Caralho, bicho. Era só o que faltava para tornar minha noite inesquecível."

"Hahahaha! Como é que ta, bicho?"

"Vai indo, vai indo: a pândega de sempre. Hehehe."

"Pois é, bicho. Acabei um trabalho foda e agora estou aqui, tomando meu guigui e fumando meu cigarrinho..."

"All right. Cool, né? Night be a child…"

"…a black child!!! Hahaha!!!". Os dois amigos riam feito piratas embriagados com rum jamaicano de péssima qualidade.

A conversa durou uns dez minutos e abordou desde as últimas fofocas até os respectivos projetos pessoais que teimavam em não ver a luz do dia. Os amigos ressaltaram a necessidade de um encontro regado a música, produtos perecíveis importados e uma outra substância ilícita. As despedidas foram clássicas.

"Então falou, mermão! Beijão!"

"Falou, bicho. Outro. Hehehe."

Com o final daquele diálogo, o Desenhista havia sido jogado de volta à realidade sonora de sua sala, onde as paredes continuavam sendo ungidas com o trompete gillespiano. A fumaça de seu quarto Marlboro dançava tal qual uma integrante de um desses grupos de dança alternativos canadenses ou holandeses. O velho Desenhista, com seus olhos vermelhos e sua expressão facial - uma rara mistura de Mickey Rourke, John Lurie e "Eraserhead" -, ainda concatenava as possibilidades que a noite de Neurópolis lhe oferecia.

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