- Alô!
- Linha sete para o senhor.
- Obrigado.
- Alô!
- Alô Poetinha é Maninho.
- Fala seu cachaceiro, tudo certo?
- Porra nenhuma, o Dinga morreu!
- Que merda!
- Caiu na rua, coração...
- O pessoal já sabe?
- Já avisei a todo mundo. O enterro é
amanhã, no Caju.
- A gente se vê lá.
- Não,
hoje! A gente vai se reunir hoje lá no bar do Manga.
- Hoje não é dia disso...
- Ele ia gostar, com certeza. Vamos beber
por ele.
- Tá certo. Sete horas.
Maninho, Poetinha,
Casulo, Dinga e Rabisco eram amigos que tinham em comum o prazer pela cachaça. Era
um grupo de características diversas, onde cada um tinha a sua vida. Uns com
mais, outros com menos, mas todos se nivelavam na mesa do bar, diante de uma
boa pinga. Formavam uma espécie de confraria, onde a bebida era o centro de
tudo. Reuniam-se sempre no mesmo lugar, o Bar do Manga. Manga não bebia, era
evangélico. Mas recebia com complacente prazer aquele grupo de amigos que
ocupava uma das mesas do seu bar, todas as quintas-feiras.
Hoje a mesa estava
com um lugar vago. Mas o copo foi posto na posição e completo em homenagem à
ausência. Os amigos queriam uma última homenagem a Dinga e pensavam em algo especial
para o dia seguinte, no enterro. Conheciam bem a personalidade despojada do
amigo e sabiam do que ele gostaria para a ocasião. Acertaram que cada um
levaria uma garrafa de cana e brindariam o passamento do companheiro com a
alegria que ele sempre pediu.
A família do
defunto era pouca. Os conhecidos estavam em maior número no velório. A turma da
cana se postou em volta do caixão levantando brindes a todo instante. Exaltaram
a amizade, a felicidade e o espírito esportivo do falecido. A viúva não deu
mostras de bom grado às homenagens, mas o laço que os unia era mais forte do que
qualquer censo crítico. Por isso eles desligaram a vergonha e fizeram o que
foram ali fazer, sem dar atenção aos olhares de reprovação e aos fuxicos ditos
a meia voz, zumbindo às suas costas. Estavam fazendo o que amigo queria e o
resto não importava. Lá pelas tantas quando a cachaça já fazia o grupo contar
piadas impróprias para a ocasião, Rabisco julgou ter lido na expressão do morto
o desejo pela bebida. Então molhou os dedos na própria pinga e passou pelos
lábios do defunto. A viúva não se conteve.
- Não faça mais
isso. Já basta o que ele bebeu em vida.
- Mas ele me pediu,
dona!
- E eu estou
pedindo para vocês saírem. Já beberam demais – Falou incisiva, tocando o grupo
para fora da capela enquanto limpava a boca do morto com um lenço embebido em
perfume.
- Onde já se viu.
Senti esse cheiro de cachaça por mais de 20 anos. Não quero levar essa
lembrança. Já chega.
Foi o único
incidente até a hora de fechar o caixão. O padre entrou para encomendar a alma
e puxou a reza derradeira. O grupo manteve a compostura, mas depois de cada “amém”,
levantavam os copos cheios e faziam um novo brinde. Quando o caixão foi
fechado, Casulo, vascaíno doente, tirou de uma sacola uma grande bandeira do
Flamengo e cobriu o ataúde do amigo, meio emocionado, meio aborrecido.
- Só você, Dinga.
Só você pra me fazer pegar nessa bandeira.
Depois se
apressaram para cada um pegar numa alça, fazendo o caixão balançar e quase
cair, devido ao estado em que se encontravam.
O cortejo seguiu
pelas alamedas do cemitério do Caju que pareciam não ter fim, no seu labirinto
de sepulturas. Já caminhavam havia uns 15 minutos, guiados pelos coveiros,
quando despontaram numa ladeira íngreme ladeada de paredes onde as catacumbas
se empilhavam numa espécie de edifício mórbido. No meio da subida, surge um
caminhão caindo aos pedaços descendo em direção ao cortejo. Vem abarrotado de
coroas de flores ressequidas e despojos de enterros passados. Os coveiros
gritam, pedindo que o motorista pare e espere o enterro acabar. O motorista do
caminhão obedece e pisa no freio, despertando um ranger aterrador de metais e
madeiras. A fragilidade do veículo não
inspirava qualquer confiança e o cortejo estancou com medo de prosseguir. Mas, como
a morte é soberana e o morto tinha a preferência, os coveiros seguiram
empurrando o carrinho com o caixão até o buraco na parede aberto à sua espera. O
grupo acompanhou, sem tirar os olhos do caminhão, que soltava estalos e
rangidos ameaçando despencar ladeira abaixo a qualquer instante. Antes do
sepultamento, os coveiros perguntaram se a família gostaria de abrir novamente
a urna. Preocupada com o caminhão, a viúva disse que não. Mas a turma da
cachaça ainda queria mais homenagens e, mesmo sem abrir o caixão, depositaram
os copos e as garrafas sobre a tampa do mesmo. Deram-se as mãos e começaram a
recitar o grito de comemoração, tantas vezes repetido com o amigo que partia.
- Arriba, abajo, adentro!!!
Depois esvaziavam
os copos de uma só vez, tornando a completá-los.
- Arriba, abajo, adentro!!!
Repetiram isso até
a última gota de cada garrafa, para desespero da viúva e dos presentes,
temerosos com a ameaça do caminhão.
O último copo veio
com o inevitável. O caminhão emitiu um grande estalo e despencou na direção do
grupo. Foi um Deus nos acuda. Cada um se pendurou como podia pelas paredes de
catacumbas para não ser atropelado. Não deu tempo de pensar no defunto. O
caminhão passou direto, arrastando o carrinho com o caixão e esse com o Dinga
dentro.
- Filho da puta!
Matou o Dinga!
- Larga de ser
besta Maninho, ele já tava morto, porra!
- Morreu de novo,
Poetinha. O Dinga morreu de novo! Cacete, que merda!
A viúva desmaiou.
Uma parte das pessoas correu para acudi-la e outra desceu para conferir o que
sobrou do defunto. Encontraram o corpo abraçado com um anjo barroco e o caixão
em frangalhos. Rabisco partiu para tirar satisfações com o motorista do
caminhão.
- Olha aí o que
você fez rapaz! Você destruiu o caixão do meu amigo! Como é que a gente vai
enterrar ele agora?
- A culpa não foi
minha, o freio quebrou. Tem uns caixões aí na carroceria. Já foram usados, mas
é pra estragar mesmo...
- Caixão usado? Esses
aí tu guarda pra enterrar a tua mãe, safado!
- Êpa! Vamos
deixando minha mãe fora disso...
Poetinha, de boa
paz, chegou para ditar o deixa-disso e acalmar os ânimos.
- Calma aí,
Rabisco, isso não adianta nada. A gente tem que ajeitar o enterro do Dinga de
novo. Ele não pode ser enterrado sem caixão.
- E o que a gente
faz? Olha lá o estado que ficou o caixão dele, não dá nem pra remendar.
- Faz o seguinte,
vamos tirar o Dinga dali que a gente pensa em algo.
Os quatro
retiraram o amigo dos braços do anjo barroco e o carregaram ladeira acima, ao
encontro da viúva que entrou em desespero quando viu o marido sustentado por
aqueles bêbados, com uma aparência pior que a própria morte: desgrenhado, faltando
uma orelha, que veio na mão de Rabisco, e com aquele cheiro nauseabundo bem peculiar
em quem já esticou as canelas. Em volta, quem não fazia o sinal da cruz, tapava
o nariz com a mão. Então ela lembrou de ter visto aquele quadro, com os mesmos
personagens, se repetir por anos a fio. Será que nem depois de morto aquele
infeliz daria sossego?
- O que é isso
agora? Cadê o caixão dele?
- Tem mais caixão
não, dona. O caminhão destruiu tudo.
- E agora, como
vou enterrar esse homem?
- Vamos ter que
comprar outro caixão, mas acho que o enterro vai ter que ficar pra amanhã.
- Como assim? E o
que eu faço com ele?
- A gente volta
com ele pra capela. A administração vai ter que dar um jeito. O caminhão não é
deles?
- Mas e esse cheiro?
- A gente já parou
de beber, dona...
- Estou falando do
cheiro dele, que já morreu há mais de 24 horas.
- Posso dar uma
ideia? - Perguntou Rabisco – Por que gente não enrola ele na bandeira do
Flamengo? Assim ele fica fechadinho até o caixão novo chegar.
A ideia foi
aceita, por falta de opção. Os amigos enrolaram o corpo de Dinga na bandeira e
se revezaram na tarefa de transportá-lo até a capela. Quando chegou a vez de
Rabisco e Casulo, o defunto começou a dar sinais de decomposição.
- Aí Casulo, acho
que o Dinga mijou nas calças.
- Ele tá morto,
imbecil. Morto não mija.
- Então ele tá
suando, porque a bandeira já tá toda molhada.
- Cala a boca
Rabisco. Segura firme que falta pouco.
- Mas eu to com
nojo, Casulo...
- Pára de baboseira!
Quantas vezes ele já vomitou no seu colo?
- Porra, mas ele
tava vivo né! É diferente... Carregar ele vivo e vomitado é uma coisa. Assim é
esquisito demais. Tô com nojo, cara. Tô
com muito nojo...
- Respira fundo
que o nojo passa, Rabisco.
- Hum...
Sacanagem...
- Que foi agora,
Rabisco?
- Agora ele peidou,
merda!
- Rabisco, o Dinga
tá morto, em decomposição, fedendo, entendeu? Isso em morto é comum.
A impaciência de Casulo
piorou a situação. Rabisco não conseguiu segurar o estômago e vomitou no morto.
Quando chegaram à capela, tiveram que fechar o corpo lá dentro pois ninguém conseguiria
suportar o cheiro do defunto em decomposição e todo vomitado pelo amigo. A
viúva, que vinha atrás com as pessoas não viu o ocorrido e quis abrir a porta
da capela. Poetinha tentou impedi-la.
- Acho melhor a
senhora não entrar, o cheiro está muito forte.
- Meu Deus! E
ainda vamos ter que esperar até amanhã?
- A gente vai dar
um jeito de enterrar o Dinga hoje. Pode deixar.
- Acho bom mesmo!
A culpa é de vocês e dessa maldita cachaça.
- Eu sei, dona, eu
sei...
O morto ficou trancado
na capela enquanto parentes e conhecidos aguardavam do lado de fora pelo
desfecho da situação. O grupo da cachaça tomou a frente do problema e foi
buscar uma solução na administração do cemitério. Poetinha, o mais equilibrado
de todos, preferiu negociar com o administrador.
- O caminhão é do
cemitério. Vocês têm que dar um jeito. Não dá pra esperar até amanhã...
- O caixão eu já
resolvi, vai chegar daqui a pouco. O problema é encontrar quem leve o corpo até
a sepultura... Já anoiteceu e, sabe como é... Mesmo acostumados com a morte,
vai ser difícil encontrar um coveiro que entre aí de noite.
- Mas o corpo já
está fedendo demais. Não dá pra esperar mais.
- Eu não sei o que
fazer, desculpe...
Rabisco resolve se
meter.
- Eu tenho uma
ideia... Tem outro caminhão aí?
- Tem
- Então, você
empresta pra gente levar o caixão até a sepultura. Quem quiser acompanhar, vai
na carroceria.
- Mas vocês não
estão em condições de dirigir... Só o bafo...
- Nem você de
recusar a proposta. Você sabe que é proibido manter defunto fora do gelo por
mais de 24 horas. Isso pode dar mais dor de cabeça que a nossa cachaça.
- Eu sei, eu sei...
por isso estou tentando colaborar.
- Então dá a chave
do caminhão e vamos resolver logo isso.
- Calma aí. O
caminhão leva vocês até lá, mas quem fecha a sepultura?
- Eu – Disse Maninho
– Eu sou pedreiro. É só me dá o material que eu resolvo.
Assim foi feito. O
administrador do cemitério fez um mapa do trajeto até a sepultura e Poetinha
conduziu o caminhão até lá. Ao seu lado foi a viúva. Na carroceria, o defunto e
os outros amigos cachaceiros. O resto do cortejo saiu de fininho alegando
compromissos para disfarçar o medo.
A esposa puxou uma
reza simples e Maninho caprichou no fechamento da tampa. No final das contas,
Dinga teve a despedida que sempre sonhou. Partiu enrolado na bandeira do
Flamengo, cheirando a cachaça e vômito, e cercado pelas melhores pessoas da sua
vida: a esposa e os amigos de copo.