A Garganta da Serpente
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Caixões e Cachaças

(Kinho Vaz)

- Alô!

- Linha sete para o senhor.

- Obrigado.

- Alô!

- Alô Poetinha é Maninho.

- Fala seu cachaceiro, tudo certo?

- Porra nenhuma, o Dinga morreu!

- Que merda!

- Caiu na rua, coração...

- O pessoal já sabe?

- Já avisei a todo mundo. O enterro é amanhã, no Caju.

- A gente se vê lá.

- Não, hoje! A gente vai se reunir hoje lá no bar do Manga.

- Hoje não é dia disso...

- Ele ia gostar, com certeza. Vamos beber por ele.

- Tá certo. Sete horas.



Maninho, Poetinha, Casulo, Dinga e Rabisco eram amigos que tinham em comum o prazer pela cachaça. Era um grupo de características diversas, onde cada um tinha a sua vida. Uns com mais, outros com menos, mas todos se nivelavam na mesa do bar, diante de uma boa pinga. Formavam uma espécie de confraria, onde a bebida era o centro de tudo. Reuniam-se sempre no mesmo lugar, o Bar do Manga. Manga não bebia, era evangélico. Mas recebia com complacente prazer aquele grupo de amigos que ocupava uma das mesas do seu bar, todas as quintas-feiras.

Hoje a mesa estava com um lugar vago. Mas o copo foi posto na posição e completo em homenagem à ausência. Os amigos queriam uma última homenagem a Dinga e pensavam em algo especial para o dia seguinte, no enterro. Conheciam bem a personalidade despojada do amigo e sabiam do que ele gostaria para a ocasião. Acertaram que cada um levaria uma garrafa de cana e brindariam o passamento do companheiro com a alegria que ele sempre pediu.



A família do defunto era pouca. Os conhecidos estavam em maior número no velório. A turma da cana se postou em volta do caixão levantando brindes a todo instante. Exaltaram a amizade, a felicidade e o espírito esportivo do falecido. A viúva não deu mostras de bom grado às homenagens, mas o laço que os unia era mais forte do que qualquer censo crítico. Por isso eles desligaram a vergonha e fizeram o que foram ali fazer, sem dar atenção aos olhares de reprovação e aos fuxicos ditos a meia voz, zumbindo às suas costas. Estavam fazendo o que amigo queria e o resto não importava. Lá pelas tantas quando a cachaça já fazia o grupo contar piadas impróprias para a ocasião, Rabisco julgou ter lido na expressão do morto o desejo pela bebida. Então molhou os dedos na própria pinga e passou pelos lábios do defunto. A viúva não se conteve.

- Não faça mais isso. Já basta o que ele bebeu em vida.

- Mas ele me pediu, dona!

- E eu estou pedindo para vocês saírem. Já beberam demais – Falou incisiva, tocando o grupo para fora da capela enquanto limpava a boca do morto com um lenço embebido em perfume.

- Onde já se viu. Senti esse cheiro de cachaça por mais de 20 anos. Não quero levar essa lembrança. Já chega.  



Foi o único incidente até a hora de fechar o caixão. O padre entrou para encomendar a alma e puxou a reza derradeira. O grupo manteve a compostura, mas depois de cada “amém”, levantavam os copos cheios e faziam um novo brinde. Quando o caixão foi fechado, Casulo, vascaíno doente, tirou de uma sacola uma grande bandeira do Flamengo e cobriu o ataúde do amigo, meio emocionado, meio aborrecido.

- Só você, Dinga. Só você pra me fazer pegar nessa bandeira.

Depois se apressaram para cada um pegar numa alça, fazendo o caixão balançar e quase cair, devido ao estado em que se encontravam.



O cortejo seguiu pelas alamedas do cemitério do Caju que pareciam não ter fim, no seu labirinto de sepulturas. Já caminhavam havia uns 15 minutos, guiados pelos coveiros, quando despontaram numa ladeira íngreme ladeada de paredes onde as catacumbas se empilhavam numa espécie de edifício mórbido. No meio da subida, surge um caminhão caindo aos pedaços descendo em direção ao cortejo. Vem abarrotado de coroas de flores ressequidas e despojos de enterros passados. Os coveiros gritam, pedindo que o motorista pare e espere o enterro acabar. O motorista do caminhão obedece e pisa no freio, despertando um ranger aterrador de metais e madeiras.  A fragilidade do veículo não inspirava qualquer confiança e o cortejo estancou com medo de prosseguir. Mas, como a morte é soberana e o morto tinha a preferência, os coveiros seguiram empurrando o carrinho com o caixão até o buraco na parede aberto à sua espera. O grupo acompanhou, sem tirar os olhos do caminhão, que soltava estalos e rangidos ameaçando despencar ladeira abaixo a qualquer instante. Antes do sepultamento, os coveiros perguntaram se a família gostaria de abrir novamente a urna. Preocupada com o caminhão, a viúva disse que não. Mas a turma da cachaça ainda queria mais homenagens e, mesmo sem abrir o caixão, depositaram os copos e as garrafas sobre a tampa do mesmo. Deram-se as mãos e começaram a recitar o grito de comemoração, tantas vezes repetido com o amigo que partia.

- Arriba, abajo, adentro!!!

Depois esvaziavam os copos de uma só vez, tornando a completá-los.

- Arriba, abajo, adentro!!!

Repetiram isso até a última gota de cada garrafa, para desespero da viúva e dos presentes, temerosos com a ameaça do caminhão.

O último copo veio com o inevitável. O caminhão emitiu um grande estalo e despencou na direção do grupo. Foi um Deus nos acuda. Cada um se pendurou como podia pelas paredes de catacumbas para não ser atropelado. Não deu tempo de pensar no defunto. O caminhão passou direto, arrastando o carrinho com o caixão e esse com o Dinga dentro.

- Filho da puta! Matou o Dinga!

- Larga de ser besta Maninho, ele já tava morto, porra!

- Morreu de novo, Poetinha. O Dinga morreu de novo! Cacete, que merda!

A viúva desmaiou. Uma parte das pessoas correu para acudi-la e outra desceu para conferir o que sobrou do defunto. Encontraram o corpo abraçado com um anjo barroco e o caixão em frangalhos. Rabisco partiu para tirar satisfações com o motorista do caminhão.

- Olha aí o que você fez rapaz! Você destruiu o caixão do meu amigo! Como é que a gente vai enterrar ele agora?

- A culpa não foi minha, o freio quebrou. Tem uns caixões aí na carroceria. Já foram usados, mas é pra estragar mesmo...

- Caixão usado? Esses aí tu guarda pra enterrar a tua mãe, safado!

- Êpa! Vamos deixando minha mãe fora disso...

Poetinha, de boa paz, chegou para ditar o deixa-disso e acalmar os ânimos.

- Calma aí, Rabisco, isso não adianta nada. A gente tem que ajeitar o enterro do Dinga de novo. Ele não pode ser enterrado sem caixão.

- E o que a gente faz? Olha lá o estado que ficou o caixão dele, não dá nem pra remendar.

- Faz o seguinte, vamos tirar o Dinga dali que a gente pensa em algo.

Os quatro retiraram o amigo dos braços do anjo barroco e o carregaram ladeira acima, ao encontro da viúva que entrou em desespero quando viu o marido sustentado por aqueles bêbados, com uma aparência pior que a própria morte: desgrenhado, faltando uma orelha, que veio na mão de Rabisco, e com aquele cheiro nauseabundo bem peculiar em quem já esticou as canelas. Em volta, quem não fazia o sinal da cruz, tapava o nariz com a mão. Então ela lembrou de ter visto aquele quadro, com os mesmos personagens, se repetir por anos a fio. Será que nem depois de morto aquele infeliz daria sossego?

- O que é isso agora? Cadê o caixão dele?

- Tem mais caixão não, dona. O caminhão destruiu tudo.

- E agora, como vou enterrar esse homem?

- Vamos ter que comprar outro caixão, mas acho que o enterro vai ter que ficar pra amanhã.

- Como assim? E o que eu faço com ele?

- A gente volta com ele pra capela. A administração vai ter que dar um jeito. O caminhão não é deles?

- Mas e esse cheiro?

- A gente já parou de beber, dona...

- Estou falando do cheiro dele, que já morreu há mais de 24 horas.

- Posso dar uma ideia? - Perguntou Rabisco – Por que gente não enrola ele na bandeira do Flamengo? Assim ele fica fechadinho até o caixão novo chegar.

A ideia foi aceita, por falta de opção. Os amigos enrolaram o corpo de Dinga na bandeira e se revezaram na tarefa de transportá-lo até a capela. Quando chegou a vez de Rabisco e Casulo, o defunto começou a dar sinais de decomposição.

- Aí Casulo, acho que o Dinga mijou nas calças.

- Ele tá morto, imbecil. Morto não mija.

- Então ele tá suando, porque a bandeira já tá toda molhada.

- Cala a boca Rabisco. Segura firme que falta pouco.

- Mas eu to com nojo, Casulo...

- Pára de baboseira! Quantas vezes ele já vomitou no seu colo?

- Porra, mas ele tava vivo né! É diferente... Carregar ele vivo e vomitado é uma coisa. Assim é esquisito demais. Tô com nojo, cara.  Tô com muito nojo...

- Respira fundo que o nojo passa, Rabisco.

- Hum... Sacanagem...

- Que foi agora, Rabisco?

- Agora ele peidou, merda!

- Rabisco, o Dinga tá morto, em decomposição, fedendo, entendeu? Isso em morto é comum.

A impaciência de Casulo piorou a situação. Rabisco não conseguiu segurar o estômago e vomitou no morto. Quando chegaram à capela, tiveram que fechar o corpo lá dentro pois ninguém conseguiria suportar o cheiro do defunto em decomposição e todo vomitado pelo amigo. A viúva, que vinha atrás com as pessoas não viu o ocorrido e quis abrir a porta da capela. Poetinha tentou impedi-la.

- Acho melhor a senhora não entrar, o cheiro está muito forte.

- Meu Deus! E ainda vamos ter que esperar até amanhã?

- A gente vai dar um jeito de enterrar o Dinga hoje. Pode deixar.

- Acho bom mesmo! A culpa é de vocês e dessa maldita cachaça.

- Eu sei, dona, eu sei...



O morto ficou trancado na capela enquanto parentes e conhecidos aguardavam do lado de fora pelo desfecho da situação. O grupo da cachaça tomou a frente do problema e foi buscar uma solução na administração do cemitério. Poetinha, o mais equilibrado de todos, preferiu negociar com o administrador.

- O caminhão é do cemitério. Vocês têm que dar um jeito. Não dá pra esperar até amanhã...

- O caixão eu já resolvi, vai chegar daqui a pouco. O problema é encontrar quem leve o corpo até a sepultura... Já anoiteceu e, sabe como é... Mesmo acostumados com a morte, vai ser difícil encontrar um coveiro que entre aí de noite.

- Mas o corpo já está fedendo demais. Não dá pra esperar mais.

- Eu não sei o que fazer, desculpe...

Rabisco resolve se meter.

- Eu tenho uma ideia... Tem outro caminhão aí?

- Tem

- Então, você empresta pra gente levar o caixão até a sepultura. Quem quiser acompanhar, vai na carroceria.

- Mas vocês não estão em condições de dirigir... Só o bafo...

- Nem você de recusar a proposta. Você sabe que é proibido manter defunto fora do gelo por mais de 24 horas. Isso pode dar mais dor de cabeça que a nossa cachaça.

- Eu sei, eu sei... por isso estou tentando colaborar.

- Então dá a chave do caminhão e vamos resolver logo isso.

- Calma aí. O caminhão leva vocês até lá, mas quem fecha a sepultura?

- Eu – Disse Maninho – Eu sou pedreiro. É só me dá o material que eu resolvo.



Assim foi feito. O administrador do cemitério fez um mapa do trajeto até a sepultura e Poetinha conduziu o caminhão até lá. Ao seu lado foi a viúva. Na carroceria, o defunto e os outros amigos cachaceiros. O resto do cortejo saiu de fininho alegando compromissos para disfarçar o medo.

A esposa puxou uma reza simples e Maninho caprichou no fechamento da tampa. No final das contas, Dinga teve a despedida que sempre sonhou. Partiu enrolado na bandeira do Flamengo, cheirando a cachaça e vômito, e cercado pelas melhores pessoas da sua vida: a esposa e os amigos de copo.

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