A Garganta da Serpente
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Lenda

(Lady Spectrum)

Daqui alguns anos, no futuro que não está muito distante, o fantasma dessa casa serei eu. O vulto na porta de entrada, a voz que parece ecoar de dentro da cozinha até a rua... Tudo será eu.

No corredor, existirá a minha sombra a vagar nas noites mais escuras, fazendo seu trajeto sem ser vista, apenas pressentida como a história que um dia habitou este lugar.

Sobre os móveis, as marcas dos meus copos; as marcas de minhas lágrimas nos travesseiros; todas as minhas memórias impressas nas paredes, nos lugares onde a tinta fresca não escondeu as marcas passadas.

Na janela, os meus olhos estarão a fitar a rua pelas frestas, mesmo que invisíveis aos outros olhos distraídos.

Meu quarto - que será meu antigo quarto - terá em sua atmosfera o perfume que usava. Terá impregnado em si os meus sentimentos mal interpretados, os meus sonhos e meus desejos de vida, e de morte. Após a minha partida, tudo aqui terá uma atmosfera que lembrará esta de agora, mas estranhamente mais bonita e mais nostálgica.

As portas, que parecem ter vida, terão as impressões de meus dedos ocultas, onde outrem colocará as mãos distraidamente, ao parar ali relembrando o passado que não viveu, da mesma forma que faço agora.

Uns olharão meus CDs como relíquias. Tentarão entender a minha alma, gravada nesta casa, em pequenos detalhes que não se compreenderá por completo. A minha vida será uma memória de ontem para outrem, como a memória de outros são para mim agora.

O silêncio daqui, às vezes, será quebrado pela minha fala alta de hoje, sendo imaginada amanhã como o som familiar que não é. E o vento que um dia fará outrem estremecer, será meu abraço distante, assim como a brisa que me estremece neste exato momento me lembra o abraço de meus fantasmas.

Os meus fantasmas de hoje, darão espaço para mim amanhã, em silêncio absoluto, observando meu espírito ser vasculhado como o deles eu vasculho agora.

Meus sentimentos e pensamentos, e tudo mais que tenho e que faz parte de mim, estarão ocultos em pequenos sinais deixados para trás, sinais de hoje que serão detalhes no amanhã. Tentarão compreender a mim, que estou aqui agora e não estarei no futuro; tentarão entender o que não consigo entender de meus fantasmas até hoje.

Tudo de hoje, deste presente que vivo e construo passo a passo, estará no futuro como lembrança. Meus pensamentos virarão lembranças memoráveis de quem não os teve, e meus sentimentos, mistérios de quem não os sentiu e nem terá como compreendê-los um dia.

A vida de hoje será a morte de amanhã. A morte de hoje estará em silêncio profundo, esperando que alguém o quebre. Meu fantasma será a lenda de outrem, será o mistério de outrem, o morto de amanhã.

Para estes mistérios escrevo estas linhas agora. Na confusão futura das interpretações de meus pensamentos, no debate sem fundamento sobre o que foram meus sentimentos, deixo meu legado. Para a lenda de meu fantasma, fico feliz em deixar linhas escritas, sentimentos e pensamentos para serem lembrados como algo maior que os traços vagos dessa casa.

Esperarei, então, que meu fantasma se torne apenas mais uma entre as inúmeras memórias passadas demais - e poderei, enfim, permanecer no silêncio dos meus mortos de agora. As lendas vivem. Até quando, eu não sei.

  • Publicado em: 26/05/2017
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