A Garganta da Serpente
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O Farmacêutico

(Lou Bertoni)

Natércio olhou a moça. Vinte e poucos anos, olhos vermelhos, nariz inchado. Sabia o que ela precisava mas continuou com a pesquisa que ele chamava de "diagnóstico inicial":

- Você falou que estava sentindo um pouco de dor de cabeça?

- É, dor de cabeça e mais uma dorzinha fina, aqui, no rumo do coração.

- Quanto tempo faz que ele não aparece?

- Duas semanas...

- Mas não tem o risco dele voltar e você perder a chance de refazer sua vida com ele?

- Não, eu soube que ele tá namorando com a Divininha, a filha do padeiro, aquela da boate, sabe? Ele não volta não... e se voltar, quero que morra sozinho.

Natércio riu só com o canto da boca.

Conhecia aquele tipo de história como a palma de sua mão e sabia, era só o sujeito sumidor aparecer com uma desculpa mole para a moça voltar correndo na farmácia, querendo remédio para o remédio.

- Porque você não leva "Dores Passageiras" por enquanto? Depois resolve se é definitivo mesmo, se é isso que você quer.

- Não, seu Natércio, quero parar de sofrer, me dá aquele coquetel mesmo.

- Tudo bem, depois não tem retorno, viu, Sara? Está aqui o "Arranca Paixão", mais o "Nunca te Amei" - duas vezes ao dia, só duas gotas na água. E já sabe: se tomar demais, vai ter problemas futuros com os efeitos prolongados.

- Deus me livre, seu Natércio. Tô querendo me ver livre só desse estrupício...

- Sara, leva esse também: "Coração Apertado" - para a dorzinha no peito, sabe?

Ficou lá, parado, vendo a cidade acordar.

Sua vida tinha sido um caso de amor com aquelas janelas, ruelas tortas, postes minguados e gente simples.

Desde pequeno tinha o dom de curar as pessoas e já fazia, ainda minúsculo, suas poções milagrosas para os da família. Aprendeu a ler e a escrever sozinho, sentado na velha mesa da cozinha da casa de seus pais, enquanto sua mãe cantava cantigas de roda. Foi nesse tempo que começou a colecionar as "essências da vida" - das canções de sua mãe, recolhia o ar doce que ficava na cozinha, decantando cantigas em gotas espessas.

Era mágico ver Natércio, menino de calça curta, recolhendo o som das asas das borboletas azuis ou transformando em pó dourado a cor das árvores outonais. Nunca teve vida própria, seu coração o impedia - coisas que os especiais carregam por toda vida. Não tinha hora para comer, dormir ou descansar, num plantão eterno de donativos. Talvez por isso nunca tenha se casado. Feio, magro, rosto bom e atento, envelheceu sem jamais experimentar de seus próprios remédios, sempre teria alguém que pudesse precisar mais do que ele. Natércio gostava de dizer que não mudava o destino de ninguém, mas conhecia os segredos da anestesia emocional.

Recolheu a poeira do balcão, cuidadosamente, colocando tudo dentro do vidrinho. Aquela poeira microscópica era muito importante para ele e tão rara, tão especial - poeira das mãos, dos gestos, dos pedidos de ajuda. Era a sua "Poeira da Alma", ingrediente básico em quase todas as fórmulas que preparava.

O dia correu rápido e cheio de gente precisada.

Para o Seu Pedro, do armazém, receitou "Abandono Repentino" - aquela mulher dele era uma pessoa esquisita e sumia por meses, voltando depois, mais magra, mais doente e às vezes, mais grávida. Mas Seu Pedro era uma alma boa, só queria passar sem muita dor o período de abandono. Queria a mulher de volta e ia lá na farmácia só atrás de um consolo, uma ajuda ligeira, umas gotinhas que o impedissem de morrer de tristeza.

O Moacir, lanterneiro, tinha começado um tratamento preventivo com "Salário Curto", mas as coisas pioraram e ele já estava no terceiro vidro de "Perda de Emprego", coisa difícil de sarar, doença brava que tinha muitos efeitos colaterais, carcomia a força do sujeito e pegava na família toda. Na casa do Moacir, até o bebê mais novo apresentava os sintomas - fraqueza, choro, pesadelos, olhar perdido e sem esperança. Natércio já estava querendo mudar a fórmula do remédio, uma derrota para suas tantas histórias de sucesso.

Mas ficou cansado com o movimento exaustivo da farmácia naquele dia. Nunca tinha vendido tanto "Gotas contra Desgosto", "Filhos Ingratos", "Dúvidas Atrozes", "Coração Partido". Isso, sem falar nos mais conhecidos e de mais saída como "Mau Olhado", "Pouco Caso", "Muitos Casos", etc. E para piorar ainda mais o sufoco, tinha lançado a linha homeopática "Florais de Bar", uma série de fórmulas para todos os males da noite, brigas após as 18 horas, ressaca moral, drinques a mais e bom senso de menos, enfim, essas coisas ligadas à degradação moral do homem.

O seu "Florais de Bar" fez tanto sucesso que Natércio se surpreendeu. Ele, homem íntegro e de boa vontade, nunca pensou que tanta gente tivesse problemas com as coisas da noite. Ficou de boca aberta com a visita do Prefeito, com as damas da sociedade, até o Padre Quintino, que deveria ser santo, apareceu com uns sintomas meio suspeitos.

Foi nesse dia estafante que ela apareceu pela primeira vez. Já tinha fechado a farmácia depois do horário, ainda sem almoço, com as pernas fracas.

- O senhor pode me atender?

Estava de costas, repondo o estoque de "Almas Gêmeas" na prateleira quase vazia. Só não respondeu, de costas mesmo, que já tinha fechado o expediente, porque alguma coisa no som daquela voz chamou sua atenção. Virou-se decidido a ser gentil mas firme, ainda intrigado para saber como ela tinha entrado se ele lembrava-se de ter baixado a porta. Virou-se e ficou plantado ali, de boca aberta, sem ar e suando frio. Aquela visão era algo divinal, uma imagem de mulher iluminada, com a silhueta recortada contra uma claridade amarelo-ouro-escuro. Mal podia ver seu rosto, a curva da sua boca ou a cor de seus olhos. Ela era algo vivo, quente, que fazia o lugar ficar pequeno.

- O senhor pode me atender?

A pergunta repetida trouxe a voz dele para dentro de seu corpo e ele sentiu-se sem recheio, respondendo com susto:

- Claro, em que posso servi-la?

- Meu caso é grave, estou perdendo as forças.

Natércio não podia acreditar naquilo. Na sua frente estava a mulher mais bonita do mundo e sua força era quase que palpável, dava para tocar na sua presença, o ar à sua volta podia ser cortado com faca, de tão denso.

- Não tenho muito tempo mais...

- Bom, minha senhora, eu creio ter aqui alguns remédios muito bons. Espero ter o que a senhora precisa. Qual é o problema?

Ela caminhou em sua direção, buscando apoio no balcão depositário da "Poeira da Alma". Levantou o rosto e pousou os olhos sobre o farmacêutico:

- Preciso de ajuda, preciso muito do senhor... ninguém pode saber que estive aqui.

- Sem problemas, tudo o que acontece aqui é extremamente sigiloso, guardo todos os segredos dos meus clientes...

- Eu sei, atravessei o mundo para encontrá-lo. Mas vim sem a permissão dos meus superiores. Você tem que prometer...

Ela sentou-se no banco da farmácia, branca, encolhida, com os olhos apertados e a boca pequena sem umidade.

- Vou buscar umas gotas reparadoras para a senhora. Descansa, ninguém vai chegar aqui agora.

Natércio entrou lá para dentro confuso e apressado. Não sabia o que estava acontecendo, mas seu instinto dizia que deveria levá-la a sério. Sentia coisas que não conseguia explicar, sentia inclusive que não podia deixar o tempo passar, numa contagem regressiva sabe-se lá Deus pra onde. Sua cabeça queimava como se alguém tivesse derramado álcool em seu cérebro exposto - era uma dor fria, que exala cheiro...

- Pronto, agora é só tomar...

Ela não estava mais lá. Ele podia sentir o calor do seu corpo que o banco roubou, podia ver as partículas do balcão suspensas, brilhando através da luz acesa. Ela não estava mais lá.

Num mal-estar súbito, queria chorar, queria entender, queria não sentir-se tão mal, queria que aquele dia nunca tivesse acontecido.

Nos dias seguintes, nada diminuía a sua dor, o corpo latejava, as mãos ficaram trêmulas, o coração cheio de falhas e galopes desenfreados. Não conseguia pensar direito, começou a ter ausências e memória fraca.

Sofria calado, atendendo, socorrendo, apaziguando, receitando "Perdas Irreparáveis" para a jovem mãe com seu bebê natimorto. Até que um dia, não aguentou mais. Pela primeira vez não se levantou da cama, tão fraco e cansado. Deixou o dia amanhecer com a farmácia fechada, em acessos de tosse e visão dupla. Foi quando ela apareceu de novo.

Natércio espremeu os olhos para vê-la melhor, mas a sua imagem estava desbotada e sem luz. Ela parecia mais fraca, mais branca e a atmosfera à sua volta era agora fria, muito fria. A mulher aproximou-se e o tocou com a ponta dos dedos.

- Eu disse a você que precisava da sua ajuda...

Ele queria salvá-la, como nunca quis nada no mundo. E mesmo febril, entre nuvens e pesadelos, teve certeza que ela estava morrendo. De perto, ela era ainda mais bonita. De dentro da boca saía a cor dourada que um dia ele trouxera das árvores e seus olhos, ah, seus olhos eram asas de borboletas azuis!! Sua voz continha todas as cantigas de roda que aprendera com sua mãe e seus gestos eram aéreos desenhos cortando o ar.

- Você foi embora e me fez ficar adoentado, sem vida.

Ela piscava pó de asas de borboleta sobre a cama.

- Natércio, você não percebe? Não percebe?

Ele não conseguia entender. Um insuportável cheiro de flores invadiu o quarto e uma enorme culpa apoderou-se dele, sentimento mesclado de raiva e dor.

- Eu não posso ser responsável por nada disso, não podia te fazer mal se ignorava sua existência!

Ela sorriu, concordando com a frase certeira:

- É, Natércio, você me ignorava...

Assim, ela deitou-se ao seu lado e murchou.

Ali, na frente de Natércio, sua vida morreu.

Dizem que, depois da morte do ilustre farmacêutico, seus unguentos viraram água, a poeira da alma virou poeira do tempo e nunca mais borboletas azuis na cidade.

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