(Dedico este texto aos meus pais, aos funcionários da secretaria do planejamento da nossa cidade que exercem honestamente o seu trabalho, e a Joana, sem a qual não teria conseguido relatar tão fielmente o caso extraordinário aqui contado. E dedico, com especial destaque, este texto ao falecido Nikolai)
Márcio levantou cedo e foi para debaixo do chuveiro, como de costume,
com a roupa no corpo. Tomava tranquilamente o seu banho e... Não,
não interessa o que acontecia a Márcio enquanto ele tomava tranquilamente
o seu banho, vestido como de costume. Interessa esclarecer, antes que alguém
venha julgá-lo, que Márcio, apesar de ser uma pessoa comum, tem
lá algumas peculiaridades, dentre as quais tomar banho vestido não
é a menos peculiar, o que ficará claro ao cabo do caso extraordinário
que me dispus a contar nestas páginas. Tomar banho vestido, aliás,
pode ser uma prática muito saudável, conforme especialistas no
assunto poderiam explicar melhor do que eu. Tal constatação provavelmente
tem alguma coisa a ver com os germes, ou com a temperatura do corpo. Também
há de se levar em consideração que Márcio era um
típico paulistano, nascido na maior cidade do Brasil e que de lá
só saía, quando muito, para frequentar as praias do litoral
paulista. Como se sabe, em São Paulo, com toda essa celeuma sobre a poluição
do ar e a emissão de diversos gases que ofendem a já debilitada
saúde dos apressados paulistanos, essas criaturas inquietas que, como
ratos a se amontoarem num buraco qualquer, se amontoam em edifícios,
ônibus e trens de metrô; com toda aquela celeuma, enfim, em torno
da poluição, deve-se considerar que qualquer prática que
vise a preservar o corpo tende a ser saudável, ou pelo menos tem lá
algum sentido. Quem imaginaria, por exemplo, que o hábito de mascar chicletes
pode ser uma das causas do câncer de boca? Ouvi dizerem por aí
que pode, e desde então penso seriamente em abandonar o hábito
de sempre ter chicletes à boca, tão logo encontre um substituto
para eles. A minha maior dificuldade, neste caso, é que nos dias de hoje
existem chicletes de tantos sabores e marcas que é difícil não
querer experimentar as novidades que aparecem por aí!
De qualquer maneira, é melhor voltarmos para o banho de Márcio.
Deve-se ressaltar que ele nunca se demora sob o chuveiro. Tem mais o que fazer
da vida, é um sujeito atarefado, dedicadíssimo ao seu cargo no
quadro do funcionalismo público de São Paulo. Todos os dias, ainda
dentro do banheiro, com a porta trancada com duas voltas de chave, ele se despe,
seca-se com sua toalha verde-musgo e veste o mais rápido possível
a roupa com que irá trabalhar: calça e camisa sociais. Penteia
os cabelos curtos, que apara a cada duas semanas, e não poupa cremes
para evitar que eles fiquem bagunçados, o que, se por conta de um vento
imprevisto vier a acontecer, o aflige severamente. Não é à
toa: Márcio é o que se pode chamar de um homem de pouca beleza,
sendo que todo o cuidado no sentido de manter a sua aparência, na pior
das hipóteses, limpinha, é assaz justificável, até
mesmo por uma questão de autoestima. Mas voltemos à rotina do
nosso bem asseado funcionário público, que, uma vez de banho tomado,
roupa vestida e cabelo penteado, vai todos os dias até a porta do apartamento
em que vive sem mais ninguém, abre-a e recolhe do corredor o seu jornal.
Quer dizer, exceto nos dias em que algum vizinho faz o favor de tomar emprestado
o jornal, quando então Márcio, uma pessoa bastante compreensível
e ponderada para com os sentimentos alheios, vai até a banca comprar
a edição do dia. É bem verdade que ele preferia quando
era o vizinho do apartamento da frente quem pegava emprestado o jornal, porque
este levava apenas o caderno de esportes, enquanto a vizinha do apartamento
a sua esquerda não discriminava caderno algum, levava de uma vez o jornal
inteiro. Mas também ela deveria ter seus motivos, afinal de contas é
sempre bom manter-se informado nos dias de hoje, custe o que custar. Ora, se
havia uma única coisa no mundo com a qual Márcio jamais se importava
em gastar um trocado a mais era com informação. "A gente
tem que abrir os olhos para o mundo, quer dizer, tem que saber tudo o que acontece
a nossa volta, tudo é importante, tudo pode se voltar um dia contra nós",
aconselhava às vezes Márcio, quando falava com seus pais, ambos
os dois já bem velhos, internados em um asilo de renome e de indiscutível
qualidade. Eu mesmo, se um dia tiver de ser levado para um asilo, gostaria que
me levassem para o mesmo asilo dos pais de Márcio, lá é
um belíssimo lugar, muito arborizado. E sabe-se muito bem que as pessoas
são mais felizes onde há árvores. Acho que foi um botânico
quem me contou que a transpiração desse tipo de planta carrega
consigo uma essência que, em contato com a pele humana, provoca a liberação
de hormônios que alteram o humor dos indivíduos, de maneira que
eles se sintam mais felizes e bem dispostos. Há inúmeras pesquisas
sobre isso, parece que já é um fato comprovado.
Enfim, o dia que começava, começava como começavam todos
os dias de semana na vida de Márcio: ele se levantou da cama, tomou seu
banho, penteou-se cuidadosamente, leu o jornal (dando por falta do caderno de
esportes...) e desceu, pela escadaria do edifício em que morava, os cinco
andares que separavam o seu apartamento do andar térreo. Era uma quarta-feira,
dia em que Márcio teria de deixar o carro na garagem por conta do rodízio.
Tinha ainda um outro carro, mas este estava na oficina, sofrendo alguns ajustes.
Dentre eles, a conversão para bi-combustível, a qual, no fim das
contas, pouparia alguns preciosos trocados para Márcio.
Acho mesmo curioso que ele não tivesse à disposição
nenhum carro justamente naquele dia. A verdade é que, se naquele dia
Márcio fosse de carro para o edifício Martinelli, no centro de
São Paulo, onde trabalhava, quem sabe nada eu teria de interessante para
contar aqui, quem sabe a vida de Márcio seguisse a mesma e saudável
rotina por muitos e muitos anos ainda, sem que nada de extraordinário
a ela sucedesse. Quem se interessaria, então, em saber que um Márcio
qualquer certo dia acordou, tomou banho vestido, leu todo o jornal, menos o
caderno de esportes, e foi para o trabalho sem que nada de extraordinário
acontecesse a ele? Pessoalmente, eu não me interessaria nem um pouco
por uma história dessas. Mas aconteceu sim algo de extraordinário,
uma sucessão de eventos tal maneira improvável que levará
o leitor sensato a duvidar se o que eu escrevo foi fato ou invenção.
Peço, neste específico, que o leitor acredite na minha palavra:
tudo aconteceu conforme será aqui contado. Tenho, inclusive, a certeza
de que, ao fim deste relato, o leitor, sendo tão bem informado quanto
Márcio, deverá ter ouvido alguma coisa sobre o caso, que alcançou
grande repercussão na mídia - mas é de bom tom não
nos adiantarmos demais nesses assuntos, que ainda estão por ser esclarecidos.
Peço, portanto, ao leitor que confie em mim, também porque eu
me dei ao trabalho de investigar todo o caso, até mesmo interroguei os
envolvidos, visitei o local de trabalho de Márcio, enfim: não
medi esforços para reconstruir com toda a verossimilhança possível
o caso extraordinário em questão. E, ademais, tenho uma imaginação
bastante pobre: seria penoso para mim ficar inventando historinhas sem pé
nem cabeça, ainda mais se com essas historinhas eu não ganhasse,
como decerto não vou ganhar, absolutamente nada. Inventar histórias
é coisa de desocupado, e, além do mais, para quê inventá-las
se elas estão acontecendo por aí em toda a parte? Deve haver boas
histórias por toda a parte, disso estou certo, seria até capaz
de apostar, contanto que não fosse uma quantia muito alta. Sabe-se muito
bem que não é interessante apostar quantias muito altas nos dias
de hoje, aliás é muito mais seguro investir tais quantias na bolsa
de valores. Diz-se por aí que, com o auxílio de um bom economista,
pode-se dobrar ou triplicar qualquer valor em um ou dois anos, somada a inflação.
Pois bem, depois de descer as escadas e sair pelo portão do prédio,
Márcio caminhou, finalmente, até o ponto de ônibus mais
próximo. Esperou pouco até que o ônibus que ia até
o largo do Paysandu, próximo ao seu local de trabalho, chegasse. E chegou
lotado, para a aflição de Márcio, que tanto se sentira
aflito durante a sua vida inteira e que, na maior parte das vezes em que assim
se sentia, experimentava um profundo senso de resignação. Imagino
eu que, ao ver o ônibus lotado, devem ter passado pela cabeça de
Márcio uma angústia que apenas os mais desafortunados experimentam:
ele detestava multidões. Só não pagava um táxi até
o trabalho, pois gastaria então muito dinheiro, de modo que era preferível
sentir-se aflito mesmo. Ele entrou encolhido no ônibus e... Ah, sim, já
ia me esquecendo! Acontece que sempre que Márcio vai de ônibus
ou de metrô a algum lugar, o que é raro, ele veste uma capa de
chuva transparente. É possível que a sua pele seja sensível,
e tenha alguma reação alérgica quando em contato com o
suor alheio, mas não sei dizer se essa possibilidade corresponde à
verdade dos fatos. Um dermatologista talvez dirá que sim, que tal reação
alérgica afeta certos indivíduos, e é até muito
comum; e contará, vá lá saber, que na Suécia esse
é um problema bastante recorrente, quiçá um caso de saúde
pública. Mas eu não conheço nenhum dermatologista, nem
sei a quantas anda a situação da saúde pública na
Suécia, e por isto tudo não é bom que me precipite em afirmações
sem fundamento.
Seja como for, naquele dia Márcio entrou encolhido no ônibus, com
a sua capa de chuva transparente, e se espremeu entre os passageiros. Uma garota,
muito bonita e com um belo par de botas amarelas, fitou a figura extravagante
de Márcio e lhe dedicou um expressivo olhar de desprezo e repugnância,
que não passou despercebido pelo faro de Márcio. Ele, aliás,
assim que percebeu o olhar de desprezo e repugnância, abriu, vá
entender por que razão, um sorriso para ninguém, e em seguida
abaixou a cabeça.
O ônibus seguia normalmente a sua trajetória quando algo inesperado
aconteceu. Pela porta movediça do ônibus, parado em uma estação
da Rebouças, entrou uma mulher de uns quarenta anos, que logo prendeu
a atenção do nosso aflito funcionário público: tratava-se
de Joana.
Seria muito bom se eu soubesse exatamente quem foi na vida essa Joana, mas a
verdade é que não sei. Ela é como que um mistério
para mim, quase uma sombra que se destaca apenas levemente num ambiente de penumbra,
ou um pequeno rosto em meio a uma multidão de um retrato antiquíssimo,
desgastado pelo tempo, e, ainda por cima, de pintor pouco habilidoso, incapaz
de retratar com precisão qualquer coisa que seja. Há muitos pintores
desse tipo por aí, até mesmo nos dias de hoje, e o pior de tudo
é que alguns deles são esforçados, mas simplesmente não
tem talento. Uma pena. Quanto à Joana, sei apenas que se chamava Joana,
e que, há muitos anos, estudara na mesma faculdade em que Márcio
se formou.
E Joana entrou pela porta movediça do ônibus, olhou a sua volta
e viu Márcio. Márcio também a viu, e de imediato a reconheceu.
Ela custou um pouco, mas também o reconheceu, e foi se apertando entre
os passageiros até chegar ao lado de Márcio e cumprimentá-lo.
Falaram apenas uma ou outra palavra um com o outro e ficaram quietos os dois,
mutuamente desinteressados. Joana e Márcio provavelmente nunca mais teriam
se falado na vida se, por coincidência, não descessem exatamente
no mesmo ponto...
Desceram juntos e, após Joana, distraidamente, comentar a coincidência,
descobriram que estavam indo para o mesmo lugar: o edifício Martinelli.
Márcio então guardou a sua capa de chuva, explicando para Joana
que estava doente:
- É a minha pele, é essa poluição - ele dizia -,
o dermatologista falou que precisava usar isso. É a minha saúde,
ela anda meio, entende, meio assim, como dizer, debilitada.
Joana não sabia. Nem se interessou muito ao assunto, preferindo mudar
o rumo da conversa e perguntar o que Márcio estava fazendo da vida, e
em que trabalhava no edifício Martinelli.
- Ah, eu sou supervisor técnico na secretaria do planejamento da prefeitura
- disse, exibindo no rosto um brilho que poderia ser de orgulho, mas que mais
provavelmente era apenas suor, uma vez que Márcio transpirava muito.
Assim que ouviu as últimas palavras do nosso nervoso supervisor técnico,
Joana abriu um largo sorriso, percebendo que aquele era o seu dia de sorte,
como ao fim deste relato ficará claro e evidente.
- Hum... Sei, e o que você faz exatamente lá? - quis saber Joana,
agora profundamente interessada. Eu não sei se deveria contar isto, mas
vou contar assim mesmo: Joana não me agrada. Pelo menos o pouco que sei
sobre ela não me agrada. Quer dizer, é o jeito dela que não
me agrada, embora eu precise admitir que se trata de uma boa pessoa, das mais
bem intencionadas. Ela às vezes me parece distraída, relapsa.
A certas coisas que Márcio lhe dizia, por exemplo, ela respondia com
certa indiferença, como não entendesse bem o que ele dissera,
ou de todo não se importasse, o que seria ainda pior. Outras vezes, ela
era de uma indelicadeza notável para com o nosso tímido funcionário
público: não cansava de encher o seu ouvinte com perguntas pouco
discretas. Márcio achou engraçada a última pergunta dela,
a respeito do que ele fazia exatamente, mas para não ter que se explicar
muito apenas repetiu que era supervisor técnico na secretaria do planejamento
da prefeitura, como se isso explicasse tudo. É que, no fundo, achava
muito tedioso o seu trabalho, e julgava inconveniente explicá-lo detalhadamente.
Mas Joana, então, acenou com a cabeça, olhou de lado e acendeu
um cigarro, deixando Márcio na obrigação de quebrar o silêncio.
Foi quando o nosso pobre Márcio não teve outra opção
senão descrever cada pormenor sobre as suas atividades, até que
Joana, ao terminar o cigarro, o interrompeu e pediu para que ele a acompanhasse
até uma farmácia, pois ela precisava comprar absorventes. Acrescentou
ainda que parecia muito interessante o que Márcio fazia, e que talvez
ele pudesse ajudá-la.
O convite para ir à farmácia foi o que mais chamou a atenção
do nosso pudico funcionário público, porque o chocou severamente,
a ponto de fazê-lo deixar escapar uma risada engasgada, quase tossida.
Joana também riu, embora não visse graça nenhuma naquilo
tudo e tivesse um riso bem mais elegante, rindo apenas pelo gesto de se rir,
ou por educação, como se diz. Por sua vez, Márcio pensou
que ela estivesse brincando, e respondeu:
- Então vamos na farmácia lá então, eu preciso de
absorventes também.
Não se precipite em absurdas conclusões, leitor, pois o funcionário
público em questão não menstruava, nem em sua vida jamais
menstruou, até onde eu saiba. Quer dizer, é bem possível
que, avançando célere como há tempos avança, a medicina
plástica já seja capaz de operar uma façanha feito essa,
fazendo com que gente nascida homem se tornasse apto a menstruar. Penso, todavia,
que pouco proveito se faria de uma operação do tipo, sem contar
que, só de imaginar os procedimentos cirúrgicos necessários,
sinto arrepios que abalariam até mesmo o mais corajoso dos homens. Quanto
a Márcio, duvido que ele se submetesse a uma tal cirurgia, ele que prefere
as pílulas aos bisturis. Estou seguro de que ele jamais menstruou em
seus quarenta e dois anos de vida, apesar de não ter evidência
alguma a respeito desse fato. Se Márcio disse o que disse, ou seja, que
precisava comprar absorventes, é somente por que tinha um estranho senso
de humor: aquilo ali que o leitor leu foi uma tentativa de piada do nosso confuso
funcionário público. Tentou a piada, riu sozinho, novamente com
seu riso engasgado, tossido, e depois acompanhou Joana, que, de fato, havia
ido comprar absorventes.
Eu não vejo nada de mais em tudo isto. Por um lado, é bem possível
que certas pessoas, neste mundo em que todo o mundo é tão diferente
um do outro, tenham, por assim dizer, um senso de pudor que faça com
que elas se sintam ofendidas quando em contato com a intimidade alheia. A privacidade,
nos dias de hoje, é um bem muito precioso e raro, e tem virtude aquele
que sabe preservá-la, como o próprio Márcio. Como culpar
alguém que, como ele, sente-se ofendido por ver exposto algo que, do
seu ponto de vista, pertence à esfera da intimidade? Deve-se tolerar
esse tipo de atitude, ou não? Eu tenderia a responder que sim, deve-se
tolerar tais atitudes. Por outro lado, é preciso admitir que, às
vezes, Márcio é um pouco exagerado mesmo, ofende-se e se aflige
com qualquer tolice. Uma vez, conta-se pelos corredores do edifício Martinelli,
em ocasião de um amigo secreto entre os funcionários dali, Márcio
ganhou de uma estagiária da USP uma cueca vermelha comestível.
Sinceramente ofendido com o presente de, digamos... gosto duvidoso, deixou o
prédio às lágrimas.
Ah sim, já ia me desviando do caso extraordinário que me propus
a contar. Ao perceber que Joana de fato comprara os absorventes, o nosso sensível
funcionário público viu-se obrigado a também comprar absorventes,
cumprindo assim com o que dissera e evitando, conforme lhe pareceu, um vexame.
Escolheu uma marca que parecia apropriada, com abas duplas e microporos com
triplo poder de absorção, e creio que, se fizesse algum uso deles,
ficaria muito satisfeito com a aquisição.
- É para a minha filha - explicou Márcio, que, até onde
eu sei, nunca na vida teve uma filha ou um filho. A explicação,
no entanto, como seria de se esperar, suscitou a curiosidade de Joana, que quis
saber mais sobre essa filha, afinal já uma mocinha.
- Ah, ela vive mais com a mãe, está comigo só essa semana.
- E como ela se chama?
- Mas então, quer dizer, ela se chama Rebeca - respondeu Márcio,
hesitando um pouco e diminuindo sem querer o volume da voz.
- E tem quantos anos já?
- Tem catorze. Mas acontece que... acontece que ela vai fazer quinze já,
no mês que vem.
- Ah é, que bom isso. Sabe que eu não tive filhos? Não
tive, não. Mas quer dizer que você é separado, a mãe
da garota não mora com você?
- Sim... - respondeu Márcio, no rosto um brilho que certamente não
era de orgulho. Agora, sinceramente, isto tudo, as mentiras e invencionices
de Márcio, isto foi um pouco culpa da Joana! Não quero ser implicante
com ela, porém não há como deixar de censurar tamanha curiosidade
por parte dela. Perguntar assim, para alguém que não se vê
há quase duas décadas, e que se encontra por acaso no ônibus,
sobre um assunto tão delicado quanto o da separação, só
pode ser indiscrição, ainda mais para alguém recatado como
Márcio. E, neste caso, não importa que ele jamais tenha, em primeiro
lugar, se casado, isto é apenas um pormenor. O que importa aqui é
a gritante falta de sensibilidade de Joana, sem dúvida.
- Sei. Poxa, que coisa não é verdade? - respondeu Joana, como
sempre inconveniente - Bom, Márcio, eu vou tentar resolver desde já
o que vim fazer no Martinelli, será que você não pode me
ajudar, talvez me indicar alguém? É uma licitação
que preciso. A gente vai almoçar depois, o que acha?
- Ah, você diz almoçar? Não sei, quer dizer... Almoçar,
é? - por favor, leitor, não se impaciente com Márcio. É
verdade que ele é um pouco devagar com algumas coisas, mas não
é preciso que ninguém se irrite com isso.
- Isso, foi o que eu disse. Pôr a conversa em dia, sabe?
- Sei, sei sim. Ah, vamos ver... Acho que pode ser, acho que sim. Almoçar,
então.
- Combinado, Márcio?
- Pois é, acho que sim, quer dizer, combinado. Ah, eu trabalho com licitações,
nessa parte, quer dizer, posso ajudar você agora, agora mesmo. Ou melhor,
daqui a pouco, na minha sala. Vamos lá na minha sala, no meu trabalho,
resolver isso.
- Verdade? Poxa, que bom! Vamos então - e Joana foi, visivelmente satisfeita.
Logo que chegou à sala de trabalho de Márcio, Joana se sentou
a uma cadeira, remexeu na sua bolsa, uma bolsa grande e espalhafatosa, bem fora
de moda, até por fim tirar dali alguns papéis e mostrá-los
para Márcio. Tratava-se de comunicados da própria prefeitura exigindo
que certo estabelecimento comercial ("o meu barzinho", explicou Joana)
teria de ser fechado ou mudar de endereço por se localizar em uma área
estritamente residencial, inapropriada para qualquer tipo de comércio.
- Eu precisava dar um jeito nisso, não tenho como mudar o bar, ia ser
muito caro - explicou-se Joana - Eu nem sabia que era ilegal, que não
podia ter bar, eu não...
- Eu posso dar um jeito - respondeu com surpreendente segurança Márcio,
que nos assuntos do seu trabalho sempre fora particularmente ágil e prestativo.
É preciso ser bom em alguma coisa na vida, afinal...
- Ah é, que bom... - ia dizendo Joana, cada vez mais satisfeita com o
rumo daquilo tudo.
- Olha, Joana, vou direto ao ponto, pode ser? Quer dizer, eu só vou precisar
de uns 500 reais pra convencer os meus amigos que vão assinar a papelada,
deixe-me pensar se... Não, quer dizer, é, isso, uns 500 acho que
dá. Geralmente esse serviço é mais caro, mas eu não
vou me aproveitar de você, sabe? 500, mas só porque eles não
vão querer correr risco a troco de nada, acho que não vão.
Vou conversar com eles, mas certamente não vão querer por menos
de 500.
- Ah sim - concordou Joana, que logo se prontificou a negociar um preço
mais baixo. Como não conseguiu, ela passou a perguntar de que maneira
ele resolveria o problema dela, e Márcio foi explicando tudo pormenorizadamente.
Mas estes são assuntos profissionais, de modo que eu pessoalmente não
entendo muita coisa sobre o que eles se disseram. Preciso admitir que, se ouvisse
a conversa sem prestar muita atenção, dificilmente teria desconfiado
de que se tratava de uma negociata ilegal, tamanha era a naturalidade com que
conversavam.
Eu havia avisado, porém, que algo de extraordinário aconteceria
naquele dia. Pois é, já aconteceu, o que sucede é que ninguém
ainda havia se dado conta disso: apenas dois dias depois tudo aquilo o que passara
por trivial emergiria como extraordinário.
Foi assim que, dois dias depois, após chegar do trabalho, Márcio
ligou a televisão para assistir o Jornal Nacional, e teve uma indelicada
surpresa: lá estava Joana.
Lá estava ela, sendo entrevistada por uma jornalista muito bem vestida.
A entrevista revelava que toda a conversa que Joana e Márcio tiveram
no dia em que este caso extraordinário começou, toda essa conversa
não passou de enganação. Márcio logo entendeu que
não receberia os 500 reais que ela lhe prometera para dentro em breve,
e que a única vantagem de toda a negociata fora a conversa jogada fora
durante o almoço em um self-service, que, aliás, fora bancado
pela própria Joana. E a decepção provocada por Joana não
parava por aí: ela contava como, após uma jogada do acaso, encontrara
um velho amigo dos tempos de faculdade que trabalhava na secretaria de planejamento
da prefeitura, fora até a sala dele e gravara, com uma câmera escondida
na bolsa, uma negociata ilegal.
A reportagem seguia com algumas cenas da negociação, protagonizadas
por Márcio. A gravação era ruim, o som estava especialmente
prejudicado, a ponto de que quase nada podia se ouvir; mas com a ajuda de legendas
tudo o que fora dito pelos dois saltava aos olhos: as explicações
de como burlar a burocracia e a vigilância foram destacadas pela reportagem,
assim como comentários de que esse tipo de negociata era muito frequente
e, pelas palavras de Márcio, até mesmo "ajudam a cidade a
andar mais depressa, quer dizer, na verdade sem isso é muita burocracia".
O leitor perspicaz, que porventura tenha assistido ao jornal no dia em que a
matéria foi ao ar, também deve ter notado o pacote de absorventes
sobre a mesa de Márcio, pacote este cuja marca aparecia borrada por um
truque de imagem, e que serve de prova incontestável de que tudo o que
contei neste relato passou-se exatamente como descrevi.
Preciso admitir que tudo isto me surpreendeu muito. Eu não seria capaz
de imaginar tal conduta partindo de alguém tão ponderado quanto
o nosso atarefado funcionário público. Também me surpreendeu
a agilidade com que a polícia resolveu a situação, agilidade
essa que prova, ao contrário do que se diz por aí, a eficiência
das nossas forças de repressão civil. Já no dia seguinte
à reportagem, vieram interrogar Márcio, e levaram apenas mais
alguns dias para prendê-lo. Ele então ganharia uma segunda aparição
na televisão, que foi inclusive comentada por um sargento da polícia:
- As investigações estão prosseguindo e ainda temos muito
que averiguar, mas já coletamos as evidências que precisamos pra
indiciar o funcionário Márcio Tardelli. A polícia está
fazendo o seu trabalho e... - e por aí vai, como leitor pode imaginar.
Também o secretário do planejamento se pronunciou, fazendo um
longo e interessantíssimo discurso sobre ética e sobre a punição
do funcionário corrupto, de cuja conduta ninguém que ali trabalhava
suspeitara. Márcio Tardelli, porém, segundo as capciosas palavras
do nosso secretário, sempre fora considerado pelos demais funcionários
um sujeito meio alheio, taciturno, pouco conhecido por todos, sendo homem de
poucos amigos. E certamente operava todo o esquema sozinho, ainda assegurou
enfaticamente o secretário, de maneira que tudo estaria resolvido com
a prisão do criminoso.
Em declaração oficial, que circulou em jornais por todo o país,
até o prefeito comentou o caso:
- É importante que a população veja que estamos fazendo
o nosso trabalho para livrarmos dos nossos corredores os quadros de corrupção.
Ao contrário do governo anterior, estamos muito preocupados em manter
toda a lisura possível nas nossas secretarias, e esperamos que o eleitor
se lembre disso daqui a dois meses, quando chegarem as eleições.
Eu sei que tudo isto soa muito estranho. Quem imaginaria que um sujeito tão
pacato fosse um vil corruptor do interesse público? Eu mesmo não
seria capaz de imaginar uma coisa destas... Além do mais, há alguns
pormenores nesta história toda que não compreendo bem, apesar
de todos os meus esforços em compreendê-los. Por exemplo, a estratégia
de convidar Márcio para comprar um pacote de absorventes, se de fato
foi uma estratégia, certamente foi muito sofisticada e está além
do meu entendimento.
Nunca duvidei, porém, da eficácia da polícia, que se conduziu
muito bem neste caso. Só paro pra pensar, às vezes, no destino
do nosso abusado Márcio, que certamente deve estar bem aflito na penitenciária
em que se encontra, e de que dificilmente sairá, uma vez que não
conhece nenhum advogado. É que Márcio nunca gostou de advogados,
preferiu sempre a companhia dos médicos. Nem mesmo, para que a verdade
fique dita, gostava da companhia dos seus pares funcionários públicos.
O que estará se passando na cabeça dele, agora que está
atrás das grades? É isto que às vezes me pergunto, mas
decerto não posso dar a esta questão nenhuma resposta satisfatória.
De qualquer maneira, está aqui contado o caso todo, seja ele estranho
ou não. E sinto certo orgulho que tenha terminado com o estrito cumprimento
da lei. Isso me dá esperanças, preciso admitir. Hoje em dia, quem
mora em São Paulo sabe que tudo o que envolve o governo não passa
sem uma complicaçãozinha, não é verdade? Sinto que
é extremamente reconfortante pensar que enquanto gente como o Márcio
for levado para a cadeia por suas falcatruas, poderemos dormir um pouco mais
tranquilos, e nos preocuparmos com questões mais importantes, como
com a nossa saúde, por exemplo. Aquela história de que mascar
chiclete pode provocar câncer é deveras preocupante. Uma verdadeira
calamidade, pode-se dizer, que talvez possa ser sanada com a administração
de uma pílula adequada. As pílulas que há hoje em dia no
mercado fazem maravilhas, há pílulas para tudo. O próprio
Márcio, apesar do seu comportamento criminoso, era alguém que
fazia bom uso das pílulas: tomava-as para dormir melhor, para regular
o intestino, controlar a timidez, expurgar os vermes, melhorar a dicção,
prevenir futuros problemas de coluna, evitar que sua hipocondria escapasse dos
limites do razoável, e por aí vai. Deve certamente haver alguma
pílula que anule os efeitos nocivos de se mascar chicletes. Não
sei bem que tipo de médico me receitaria uma pílula dessas, um
oncologista, talvez? Não sei, vou tentar me informar a este respeito,
já que o câncer de boca certamente deve ser algo terrível.
Isto sim, realmente, anda me incomodando.
(2006)