Catava pela rua as pedrinhas soltas, e guardava-as nos bolsos da saia. Era
uma mulher, e picada na sua blusa uma rosa branca acenava para os olhos da cidadezinha,
esses olhos curiosos.
Vagava como fosse pacata, e como o seu corpo não tivesse as graças
de mulher vivida, ou como se os seus olhos não fossem tão azuis
quanto deveriam ser as estrelas, no imaginário de um pobre poeta. E andava
para encher os bolsos de pedrinhas, pedras cinzentas, pretas, sujas de terra,
e até mesmo as mais branquelas, que, às vezes, davam de aparecer
na cidade. Porque as catava do chão, suas mãos andavam sempre sujas,
e os seus dedos, mesmo quando lavados, diziam alguns, tinham algo da cor de poeira.
Ela não era moça de lá, da cidadezinha. Vinha toda a semana
colher as tais pedrinhas, e então voltava, não se sabia bem por
onde. Vestia sempre aquela saia até os joelhos, cheio de bolsos remendados,
e uma blusa fina por cima da camiseta branca, sem graça. E olhava nos olhos
de todos, mas todos os olhos dela fugiam, avessos ao que ela poderia lhes dizer,
ou imaginar, dentro daquela sua cabeça, donde os cabelos vazavam lisos
até os seus ombros miúdos.
Chamavam-na de a Caminheira, menos os Sampaio - a família do prefeito,
do vereador e dos empresários de nome da cidade -, que a preferiam chamar
Srta. Margarida. Diziam os boatos, que a tal Caminheira havia se engraçado
com um dos Sampaio - sabe-se lá qual deles -, daí a intimidade;
mas, a verdade das coisas, ninguém conhecia. E, mesmo por isso, o nome
Caminheira pegou, e Srta. Margarida continuou sendo só um nome de moça
falecida na cidade, há uns quarenta anos, quando aquilo nem cidade era.
E toda a vez a Caminheira caminhava pelo mesmo caminho: chegava pela única
saída da cidade, passava pela Rua dos Coquinhos até o seu cabo,
quando pegava a direita numa ruazinha sem nome, pra desembocar na Rua do Comércio;
virava bem na metade dessa rua, e seguia em zigue-zague até o posto, e
de lá para a Rua da Ofélia, que seguia até dar numa viela
que levava ao começo da Rua dos Coquinhos, donde se mandava da cidade -
que, nessas visitas, visitava toda. Mas, e como ia com passadas bem pequenas,
o trajeto, que compreenderia uns 20 minutos nos tempos da cidade, durava nos seus
pés quase uma hora.
Desde quando ela visitava a cidade, ninguém sabia precisar, mas parecia
há tanto tempo que espantava ela aparentar a mesma juventude em todas as
memórias. O seu Nelson, velho cujos olhos viram se erguer as primeiras
casinhas naquilo que, outrora, foram as suas terras, dizia que ela já passava
por lá quando ele era ainda moço vistoso, e que tinha, naqueles
tempos, espiado por debaixo da sua saia. Mas a esses contos, ninguém da
cidade creditava a mínima fé. A dona Ofélia, por sua vez,
contava que a primeira vez que a moça apareceu por lá, estava chovendo
tanto que o mundo parecia prestes a desabar. Ela conta que levava um filhinho
no colo, pretinho como carvão, até onde passava o rio, onde o largou,
chorando muito tanto o filhinho quanto a moça. E o motivo porque ela catava
as pedrinhas era porque ela achava que aqueles eram os pedacinhos do seu menino,
que ela estava montando lá na cidade grande.
Mas também o que a dona Ofélia dizia não era lá muito
confiável, porque ela muitas vezes confundia as histórias dos outros
com as suas: para ela - sejamos sinceros -, metade das mulheres da cidade já
havia deixado um seu filhinho, pretinho como carvão, no rio, pra morrer,
chorando muito os dois, naquele dia chuvoso.
A única fonte de verdades da cidadezinha, os Sampaio, não relevava
nada da intimidade dessa moça. Quero dizer, o prefeito, o vereador, e os
empresários até que falavam dela, e o prefeito inclusive se gabava
de ter conversado uma vez com a Srta. Margarida, que, daquela feita, havia-lhe
rendido os mais rasgados elogios, mas pedira que não se falasse nada sobre
ela, porque era moça tímida. O vereador, por sua vez, falava pra
quem lhe perguntasse que já vira a Srta. Margarida perambulando pela cidade
grande, e ela era moça de família, muito reservada, mas muito rica,
também. Por conta desses comentários, a cidade toda preferia não
chegar muito perto dela, e, até mesmo, desviar o olhar, quando pegos pelos
olhos azuis da Caminheira. Tinham-na, quando a viam passar, por uma espécie
de fantasma, que merecia ser temido. Só depois que ela saía voltavam
a falar sobre ela, e toda a semana o seu Nelson lembrava de ter espiado, há
tanto tempo, por debaixo da sua saia.
Quando passava a Caminheira - que seguia os ponteiros do sol, abandonando a cidade
assim que eles apontavam o último raio pra debaixo da terra -, a janela
do seu Nelson abria, e esperava até que ela chegasse na Rua da Ofélia,
onde morava, pra lhe espiar. Arrepiavam-se-lhe os cabelos do braço quando,
de vez em quando, ela olhava direto no buraquinho da cortina por onde ele espiava,
e então ele, feito o moleque travesso de outros tempos, escondia a cabeça
no chão e ficava ali até que o sol caísse, e ele tivesse
a certeza de que ela já tinha partido. Uma vez, quando julgou vê-la
sorrindo, ficou ali até dormir, e quando acordou não sabia se tinha
sido sonho ou não. Se tinha, ou não, pouco se importou, e foi correndo
pra dona Ofélia contar que tinha visto sorrindo a Caminheira. Ela recebeu
com o carinho de costume o velho, que, naquele dia, tinha as suas faces variando
do seu natural mais-preto-que-o-carvão, para um roxo afetado, injetado
de sentimentos os mais encabulados. Contou pra dona Ofélia o caso, e ela
espalhou pra cidade inteira: pela primeira vez a Caminheira tinha dado um sorriso,
ela que era tão tímida!
Precisava haver uma explicação para aquilo, que havia chocado toda
a cidade, e provocado as mais variadas reações. Os netinhos brancos
da dona Ofélia diziam que ela se estava rindo porque tinha se enfurnado
no mato com o tal Sampaio; a moça mais bonita da cidade dizia que ela tinha
se apaixonado por um poeta da cidade grande; o esposo da dona Ofélia falou
pra não darem atenção para essa vagabunda; o dono da mercearia
disse que ela tinha comprado um doce caseiro dele, e por isso sorria tanto; e
o próprio seu Nelson já contava que, depois que ela deu aquela risadinha,
tinha puxado ela pra dentro de casa e espiado de novo - e com muito detalhe!,
falava, a testa quase suando o seu roxo - o que ela tinha de escondido por debaixo
da saia.
Até que o prefeito, justo naquele dia, que era de eleição
resolveu explicar tudo: a Srta. Margarida estava rindo porque estava contente
em saber que ele seria reeleito em breve. Jurou que a Srta. Margarida, se ele
fosse mesmo reeleito, iria trazer um monte de rosas brancas feito aquela que levava
no peito, e as distribuiria pra toda a cidade.
Mas na semana seguinte a Caminheira não trouxe as rosas, embora o Sampaio
houvesse sido reeleito por maioria esmagadora. Naquela semana, ela passou pelo
caminho que sempre passava, e o seu Nelson a espiou pelo buraquinho na cortina,
mas ela, dessa vez, nem olhou para ele. O seu Nelson, então, resolveu-se
de que já não sabia se tinha visto no rosto dela um sorriso ou não,
mas depois de ponderar a noite inteira, decidiu que tinha visto, sim, e, na manhã
que nascia, correu pra casa da dona Ofélia mostrar a rosa que tinha lhe
dado a Caminheira, no dia anterior. Era uma rosa vermelha, do mesmo vermelho daquelas
que uma das filhas brancas da dona Ofélia plantava no jardim, mas o seu
Nelson explicou que aquela era vermelha assim porque as brancas a Caminheira guardava
só para ela. E contou que ela era muito caprichosa, tinha ficado toda encabulada
- mais vermelha até do que era aquela rosa - quando ele, mais uma vez,
espiou tudo o que ela tinha debaixo da saia.
O esposo da dona Ofélia, ouvindo a conversa dos dois velhinhos, quis intrometer-se,
ele que era o irmão do prefeito. Bem verdade que era o único Sampaio
pobre da região, mas ele que escolhera assim, casando com aquela ruiva
pobretona que, com os tantos anos, tornou-se a dona Ofélia. Estavam nos
cinquenta, mas ela parecia bem mais velha, naquela manhã. O Sampaio
pobre, metendo-se na conversa de acordo com o que lhe pedia a cachaça virada
na garganta, meteu uma grana na mão poeirenta do seu Nelson, e mandou que
fosse comer, para, em seguida, pedir que de uma vez por todas esquecesse o que
havia visto por debaixo da saia da sua esposa, naqueles anos idos há tanto.
A dona Ofélia e o seu Nelson nem tentaram entender, e, como estavam, voltaram,
ela para o quarto, e ele, pra casa, e de casa pra mercearia, quando lembrou-se
de que não comia havia dois dias quase inteiros. A rosa vermelha, deixou
no chão de um caminho, quando escorreu pelas suas mãos distraídas,
antes de sair da vista da dona Ofélia.
Na quarta visita da Caminheira pela cidade desde esses fatos, o seu Nelson já
não vivia mais. Anunciaram a sua morte pelos megafones que a ditadura havia
deixado de herança, nessas palavras:
"Morreu, ontem, o mais querido dos fundadores desta cidade, o senhor Nelson
Junqueira dos Santos, pai e avó de todos nesta cidade. Morreu do coração,
que nos guardava a todos. As despesas do enterro serão cobertas pela prefeitura",
e depois disso uma marchinha triste começava, aquela que era a preferida
do seu Nelson.
Todo o mundo comoveu-se, até os netinhos brancos da dona Ofélia,
que só voltaram a rir quando pintaram de spray a palavra corno na parede
da casa do pai, o Sampaio pobre, que nem respeito por si próprio tinha,
de qualquer maneira. Mas, no meio de tanta comoção, só chorou
a dona Ofélia; e mesmo ela, tão logo começou a chorar, já
tinha se esquecido do porquê, caduca que estava, e nesse choro sem razão
ficou até os olhos cansarem do exercício.
O corno, vendo a cena, comoveu-se no mais fundo do coração, e, ninguém
entendeu seu gesto, levou a esposa para a casa do falecido, para morarem lá,
sem os filhos - mesmo porque o mais velho, o deputado, era quem cuidava deles,
e lhes ensinava as coisas da vida, de qualquer forma. Quando na rua do falecido,
o casal se encontrou com a Caminheira, que largava a rosa branca na frente da
porta, que nem mais tranca tinha, de tão acabada. A dona Ofélia
quis lhe perguntar alguma coisa, saber, talvez, o que ela fazia com as pedrinhas,
ou por que nunca parecia envelhecer, mas entendeu que essas eram perguntas tolas,
e por isso deixou-as esvaecerem na lembrança. Já o corno, esse não
precisava perguntar mais nada a ninguém, pelo pouco resto da sua vida.
Tudo o que fez a dona Ofélia foi dar um beijo na testa da moça,
que lhe respondeu com um sorriso de verdade, para, em seguida, tomar o seu rumo
pela Rua Ofélia. O casal, depois de algum silêncio, entrou pela porta
e habitou a casa - aquele que era o único lugar decente na cidade, teve
que admitir o esposo da dona Ofélia.
E a Caminheira, ela nunca mais visitou a cidade, que o tempo foi preenchendo com
pedrinhas de toda a sorte, até torná-la um imenso monumento de pedras.