O Sapateiro Pedro e seu filho Juca, tinham uma sapataria onde eles fabricavam
sapatos, sandálias e botas, mas também compravam as que outras
pessoas faziam e lhes vendiam. Com isso eles ajudavam os outros e ganhavam um
extra. Um dia eles estavam trabalhando normalmente e chegou um senhor já
de idade, querendo vender um par de botas de couro. Eles, como sempre, compraram
as botas. As colocaram na prateleira e continuaram seu trabalho.
Mas, Juca, muito curioso, perguntou ao Pedro:
- Pai, quem é este homem? Nunca o vi por estas bandas. Um tipinho estranho,
não é?
- Estranho por quê? Só por que nós não o conhecemos?
- Sei não, me pareceu que olhou para mim com um brilho esquisito nos
olhos,até me deu um arrepio. Desviei os olhos na horinha mesmo.
- Ora, ora, Juca, meu filho você é muito cheio de manias. Tem uma
cabeça cheia de imaginação, está sempre inventando
coisas.
- Eu? Não se lembra da última vez que senti uma coisa estranha?
Eu estava certo.
- Juca, foi só uma coincidência. Eu não acredito naquilo
que eu não vejo. Eu trabalho, cuido de minha família, não
vivo no mundo da lua e coloco a cabeça no travesseiro e durmo a noite
toda.
- Hoje eu não vou dormir, aquele homem....O senhor não deveria
ter comprado aquelas botas.
- Pare de falar e trabalhe!
- Tudo bem, pai, o senhor manda.
Já dá para ver a distância entre pai e filho no que diz
respeito à cultura: Pedro é do tipo antigo, talvez nem tenha tido
oportunidade de escola, tornou-se um sapateiro, pai de família, trabalhador
e cético. Juca, o filho, por sua vez está na escola, o pai quer
um futuro diferente para ele, ele tem um professor de Literatura que enche sua
cabeça com histórias, a dos livros que traz para a sala, coisas
da Antiguidade Clássica, mitologia, paganismo, coisas da Idade Média,
misticismo, bruxarias, magias, fogueiras, inquisições, e coisas
do contemporâneo, a ficção científica, a imaginação,
a fantasia, seja em prosa ou poesia, ele está sempre tentando contextualizar
com o real, com o mundo em que vivem. E Juca apaixonou-se pelo passado vivido
pelos homens, em especial o passado da época das cavalarias, das magias,
dos encantamentos, dos sonhos que alguns livros traziam, como o do Mago Mérlin,
o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, Ou, ainda, livros do século
XIX, como o Eurico, o Presbítero, ou poetas como Castro Alves, Álvares
de Azevedo, ah! morrer na aurora da existência! Viver no
mundo místico da emoção! Era tudo o que Juca sonhava e
por isso, lia e lia e lia mais. Na sua adolescência ele até que
era bem precoce e tinha uma imaginação!
Eles moravam numa pequena cidade no interior do Paraná, na verdade, era
um Distrito desta cidade, chamava-se Pedregulho. Passaram-se oito dias, tudo
seguia na normalidade, mas....eis que no nono dia um pé da bota desapareceu
da prateleira. Procura de lá, procura de cá, perguntaram às
crianças da vizinhança, pois viviam brincando de esconde-esconde
e algumas vezes se escondiam dentro da sapataria, poderiam ter levado, só
por sacanagem, um pé da bota. Ninguém sabia de nada. No décimo
segundo dia, um menino disse que viu a bota pendurada numa árvore, perto
do alagado lá do rio Iguaçu. O pai, imediatamente mandou Juca
buscar a bota.
Já estava entardecendo, Juca disse ao pai:
- Deixe a bota lá, já ficou tantos dias, uma noite a mais não
faz mal, amanhã eu vou.
- Amanhã, coisa nenhuma, vai é agorinha mesmo, amanhã cedo
tem escola, daí fica pra tarde e depois vai ficando e ficando, vai já!
Bem, porque o pai mandava e mandava mesmo, Juca partiu para o alagado, deveria
ficar uns dois mil metros do lugarejo onde moravam. Chegando lá, onde
aquele menino havia indicado, realmente, a bota estava amarrada num galho de
árvore, um galho que estendia-se sobre as águas. Ele pensou, ah!
É fácil subir ali e o galho é bem forte, não há
perigo. E começou a subir.
Quando chegou perto da bota, ela desapareceu e como que por encantamento surgiu
o velho, aquele que vendera as botas para seu pai. Juca viu novamente os olhos,
agora ele viu bem: eram de fogo! Um tremor correu por seu corpo e ele perdeu
as forças. Estava caindo do galho, mas o velho lhe segurou firmemente
e disse:
- Você chegou bem na hora.
Juca não podia falar, sua voz não saía, ele queria gritar,
mas nada. Então, mais um inesperado aconteceu! O velho transformou-se
num jovem rapaz e lhe disse:
- Não tenha medo, Juca, sou eu, não está me reconhecendo?
Faz tempo, não é? Mas sou eu mesmo.
- Mas....você? Você morreu?
- Ainda não, preciso que você me ajude. Quero que chame os policiais
e conte que meu corpo eles acharam, mas tem o da minha amada Sueli, ele está
aqui, no fundo deste alagado.
- Mas...como? Sueli foi embora pra cidade grande?
- Não, ela não foi, ela se encontrava comigo aqui, os pais dela
não gostavam de mim, porque eu era um vaqueiro, sem eira nem beira.
- Você a matou?
- Eu? Não! ... Eu a amava.
- Ela caiu e você não conseguiu salvá-la? Mas você
nadava bem!
- Foram os dois capangas do Seu Jacó, me amarraram, estupraram a Sueli
na minha frente, depois de baterem muito nela e a jogaram nas águas,
foi então que me assassinaram. E também me atiraram no fundo do
alagado. Mas eu boiei, fui encontrado. E todos pensaram que a Sueli tinha fugido
da roça.
Ninguém pensou que ela poderia ter sido morta. A gente namorava escondido.
Eu passei estes últimos três anos tentando soltá-la, mas
perdi as forças, envelheci. Foi então que me lembrei de você,
meu amigo. Você podia me ajudar. Mas como eu ia aparecer para você?
Então eu usei as botas.
- Mas... o par de botas?
- Quando me acharam, não retiraram do fundo do rio, são os meus
mesmo. Só consegui lhes dar um brilho, o couro era dos bons. Se você
me ajudar eu vou embora com a Sueli, senão...o lugarejo vai ter que mudar
de lugar! Agora é com você, porque eu tenho contas a tratar. Adeus,
meu amigo.
Juca chegou em casa esbaforido e sem o pé da bota, ela havia sumido da
árvore.
Assim que ele chegou, começou a querer falar, mas o pai interrompeu dizendo:
O Juca, demorou menino! E veja só, a bota não estava em árvore
coisa nenhuma, ela caiu da prateleira e ficou misturada com as das reformas.
Quando você saiu fui fazer limpeza e achei a danada! Ah! você soube
do entrevero que deu lá perto do chiqueiro do seu Jacó? Parece
que os dois capangas dele se desacertaram e se furaram de facão. Pois
não é que os dois morreram?
- E eu não achei a bota pai, mas achei a Sueli, lembra dela?
- Lá vem você com suas histórias. A Sueli foi embora, todo
mundo sabe. O que a Sueli ia estar fazendo sozinha, depois de três anos,
na beira do alagado? Só na tua imaginação mesmo!
Naquela noite Juca não conseguiu dormir, será que foi tudo imaginação?
Será que acabou dormindo na beira do alagado? Aquele calorzinho de fim
de tarde....mas e os capangas do seu Jacó? Acabou adormecendo, enfim.
No outro dia, ao primeiro raiar do sol Juca mergulhou nas águas do alagado
do Rio Iguaçu.