A Garganta da Serpente
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Parece mentira

(Linda Graal)

Lembra, querido? Parece mentira que caminhávamos pelas ruas de sempre como se fora a primeira vez. Dos dias quentes em que sentávamos debaixo das árvores em praças favoritas e você me lia Balzac para que eu embasbacasse de te ouvir sussurrar o elixir da longa vida, e deixávamos Don Juan para que pudéssemos viver de instantes? Lembra? Sim senhora, uísque. Você achou curiosa essa minha cicatriz na testa, como maior evidência de miolos moles, disse-me, com esse sotaque ainda coalhado dos tempos da Itália. Divertia-me com seus pequenos desastres diários, os tropeços mais charmosos eram os seus, porque depois deles, você olhava de esgueira, aguardando rubramente pelos meus risos já desculpados de antes. Assim que costumávamos, às terças, assistir aos filmes raros e aproveitávamos como meninos ainda as pipocas servidas no decorrer das sessões. Eram salgadas em demasia, acorda-te? A senhora aceita mais uma dose? Mas era por isso mesmo que brigávamos até os últimos milhos para que nossas salivas pudessem ser mais bem aproveitadas em tempo de beijo. Recordo-me agora como é bom quando cerveja e nicotina misturam-se às línguas. Ainda guardo nossos passeios. Parece mentira que estamos aqui agora, depois de tanto tempo juntos, vivendo uma vida de sonhos. Hein, meu rapazinho! Ok, essa é por conta da casa. Ahh...é! Lembra das noites em que nas voltas para a casa, você cuidava de deixar-me, primeiramente, no terminal porque eu mal sabia andar com minhas próprias pernas - desobedientes que insistiam em movimentos flagrantes de que eu não saberia mais caminhar se não fosse às alturas contigo -, depois, na de meus pais? À contragosto você se aproximava, tão avesso aos laços. E nossos redemoinhos emocionais não nos deixavam cair das nuvens, loucos de palavras. Quase. E cantávamos algo de cordel, talvez pelo fogo encantado que viveríamos quando seu corpo, na medida exata, encostasse ao meu, porque era como um menino que me gritava colo. Eu protegia-te inteira e precisava de você frágil quando me amava, todo sem forças, suado de perder-se entre meus cabelos que se enroscavam na sua barba. Gostava do atrevimento e da sua falta de controle e de quando falávamos muito. Peça-me e a levarei. Assim foi, lembra? Levas-te-me...no esquecimento dos olhos claros demais. Lembra? Senhora, o bar já está fechando. Precisa de algo? Não obrigada, é que o vento - instante que acena quando passa - lambeu-me inteira e meu corpo vibra descompassado, em meio aos seus segredos gelados que insistem em atacar os notívagos solitários, rascunhados em quinas olvidadas com seus pedaços amargos de lado esquerdo. Assim que, poeticamente embaraçada, vou esmiuçando o que mora em mim em horas de partos silenciosos que gritam do útero primeiro....meu ventre meus ventos. Ai ai!! Desmoro/nada! adivinho meus escombros... caí em meu precipício de en(fim)...mentira vermelha que escorre ainda quente e mistura-se aos pêlos daquela barba atrevida de não rimar. Assim que desemboca em sumiço salgado...e eu alcoólica inteira de re/partida verdade, quase doce. Enjoo.

(24/04/2007 - 03:00h)

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