O BAIRRO DO ANDARAÍ é muito triste e muito úmido. As montanhas
que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam
a densa vegetação que as devia adornar com mais força em
tempos idos. O tom p1úmbeo das árvores como que enegrece o horizonte
e torna triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra
a monotonia dó quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as
cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria
que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas
casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas "vilas"
de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela
alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção
do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria
e tinha na cimalha este dístico pretensioso: "Vila Sebastiana".
O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam
ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho
que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além
da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase
a correr todo o prédio. Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo,
de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim
em que trazia para a casa os papéis da repartição com o
fito de não lê-los; e também o guarda-chuva de castão
de ouro e forro de seda. Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade
que ele vencia os dous degraus dos "Minas Gerais" da Light, atrapalhado
com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de " ouro". Usava
chapéu de coco e cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.
A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram,
era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão
um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso,
por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera com ele,
mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona
Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite.
Ela, quando queria olhar alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição,
erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado
severo.
Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se
em não haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas
da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela
preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido
para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar;
e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia-se de tudo,
até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé
de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que
por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte
anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai, entestando com a mãe,
bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio
com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como -
as outras.
Eram estes os habitantes da "Vila Sebastiana" , além de um
molecote que nunca era o mesmo. De dous em dous meses, por isso ou por aquilo,
era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte
calhava.
Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados
a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os
escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia
pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda.
Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários
Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos
na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de
seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último
chefe do protocolo da sua secção, cargo de extrema responsabilidade,
para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria
de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus mais constantes comensais, nos
seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha
a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas
na classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares
com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por
diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse
casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição
e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares
salientes, face curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa
fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá,
transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três
ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não
há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma.
Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartição,
para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra.
Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício
que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes
olhos negros e de uma timidez de donzela.
Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e
sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru,
a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha,
mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa,
todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético
bacharel:
- Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo
olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam
juntos.
- Minha senhora, não tenho tempo...
- Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria - não é
Felicianinho?
Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído
para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira
. razão estava em não ser a tal faculdade "reconhecida",
negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com vivacidade :
- Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava
com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse,
para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio
de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia advogar.
- Não posso. Não é só a repartição
que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.
Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais
a cabeça com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava
esse quadro célebre nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada
pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor - Simplício, dizia, cravou
resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru.
Percebendo isto, o mato-grossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo
português. Há muita gente que pensa que no antigo regímen
não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do
Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções
dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta
dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então
como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito
público se transformou, ao influxo de concepções liberais;
e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso
meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das ideias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: "Quem
teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição
de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será
cousa viva.
Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar
livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer
sorrir.
- Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão
feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho
?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei
as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.
- Essas cousas não se dizem às nossas mulheres; são segredos
de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções
para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja
o promovido o doutor Fortunato ou... O "Seu" Simplício, e eu
estaria prevenida para a uma "festinha".
Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.
Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que
procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício
ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha,
que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega
Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se
foi também Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava unicamente em duas cousas: no Natal próximo
e no "Direito" de Guaicuru. Quando pensava nesta .' perguntava de
si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo? Guaicuru é absolutamente
ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor
Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque
era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera
a pistolões nem a títulos de Goiás.
Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação
a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru,
como de hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana,
com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o "Seu"
Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados
ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma cousa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É
um fato. A obra de Guaicuru, porém, é que até hoje não
saiu...
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