Esse meu amigo era o homem mais enigmático que conheci. Era a um tempo
taciturno e expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador
e vadio. Havia no seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas
e, na sua inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão,
de agudeza e embotamento.
Nós nos dávamos desde muito tempo. Aí pelos doze anos, quando
comecei a estudar os preparatórios, encontrei-o no colégio e fizemos
relações. Gostei da sua fisionomia, da estranheza do seu caráter
e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a minha meninice contemplava
maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se ia tão demoradamente
pelas coisas e pelas pessoas.
Continuamos sempre juntos até à escola superior, onde andei conversando;
e, aos poucos, fui verificando que as suas qualidades se acentuavam e os seus
defeitos também.
Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não havia jeito de
estudar essas coisas de câmbio, de jogo de bolsa. Era assim: para umas coisas,
muita penetração; para outras, incompreensão.
Formou-se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu
dele, afastado dessa humilhante coisa que é a caça ao emprego.
Era sentimental, era emotivo; mas nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar,
e era fácil. A sua delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com
outro, as coisas secretas de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de
secreto e profundo na sua alma.
Há dias encontrei-o no chope, diante de uma alta pilha de rodelas de papelão,
marcando com solenidade o número de copos bebidos.
Foi ali, no Adolfo, à Rua da Assembleia, onde aos poucos temos conseguido
reunir uma roda de poetas, literatos, jornalistas, médicos, advogados,
a viver na máxima harmonia, trocando ideias, conversando e bebendo
sempre.
E uma casa por demais simpática, talvez a mais antiga no gênero,
e que já conheceu duas gerações de poetas. Por ela, passaram
o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário Pederneiras,
o Lima Campos, o Malagutti e outros pintores que completavam essa brilhante sociedade
de homens inteligentes.
Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também uma academia.
Mais do que uma academia. São duas ou três. Somos tantos e de feições
mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta miniatura do Silogeu.
Não se fazem discursos à entrada: bebe-se e joga-se bagatela, lá
ao fundo, cercado de uma plateia ansiosa por ver o Amorim Júnior
fazer sucessivos dezoitos.
Fui encontrá-lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do ruidoso
cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.
Pareceu-me triste e a nossa conversa não foi logo abundantemente sustentada.
Estivemos alguns minutos calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.
O gasto de copos aumentou e ele então falou com mais abundância e
calor. Em princípio, tratamos de coisas gerais de arte e letras. Ele não
é literato, mas gosta das letras, e as acompanha com carinho e atenção.
Ao fim de digressões a tal respeito, ele me disse de repente:
- Sabes por que não me mato?
Não me espantei, porque tenho por hábito não me espantar
com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito naturalmente:
-Não.
- És contra o suicídio?
- Nem contra, nem a favor; aceito-o.
- Bem. Compreendes perfeitamente que não tenho mais motivo para viver.
Estou sem destino, a minha vida não tem fim determinado. Não quero
ser senador, não quero ser deputado, não quero ser nada. Não
tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos.
A minha vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo,
da arte, da religião e da ciência.
O Manuel serviu-nos mais dois chopes, com aquela delicadeza tão dele, e
o meu amigo continuou:
- Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não
me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes, é
coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa,
porque não quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças
que herdei e está em mim em estado virtual para passar aos outros. Não
quero viajar; enfada. Que hei de fazer?
Eu quis dar-lhe um conselho final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:
- Matar-te.
- É isso que eu penso; mas...
A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma nuvem lhe passava no
olhar doce e tranquilo.
- Não tens coragem? - perguntei eu.
- Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim natural da minha
vida.
- Que é, então?
- E a falta de dinheiro!
-Como? Um revólver é barato.
- Eu me explico. Admito a piedade em mim, para os outros; mas não admito
a piedade dos outros para mim. Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro
que tenho é curto, mas dá para as minhas despesas, de forma que
estou sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí qualquer droga, as autoridades
vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado de notas do Tesouro.
Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio?
Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida,
ato de suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através
da piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu
não quero isso...
Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar
não diminuía em nada a exposição das palavras sinistras
do meu amigo.
- Eu não quero isso - continuou ele. Quero que se de ao ato o seu justo
valor e que nenhuma consideração subalterna lhe diminua a elevação.
- Mas escreve.
- Não sei escrever. A aversão que há na minha alma excede
às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que
de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças
fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar
a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo
isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas,
arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante
de augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá o sentido do nosso
destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva
à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era isso...
- Mas vem cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira, nem por tal...
- Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.
- Mas podia ser atribuído ao amor.
- Qual. Não recebo cartas de mulher, não namoro, não requesto
mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir ao amor o meu desespero.
- Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não seria
aquilatado devidamente.
- De fato, é verdade; mas a causa-miséria não seria evidente.
Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me dispus. Fiz uma transação,
arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em beleza; mandei fazer
uma casaca; comprei camisas, etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco.
De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em casa, estava
a níqueis.
- De forma que é ter dinheiro para matar-te, zás, tens vontade de
divertir-te.
- Tem me acontecido isso; mas não julgues que estou prosando. Falo sério
e franco.
Nós nos calamos um pouco, bebemos um pouco de cerveja, e depois eu observei:
- O teu modo de matar-te não é violento, é suave. Estás
a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas quinhentos contos,
porque nunca te matarias.
- Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.
- Zás, para o necrotério na miséria; e então?
- E verdade... Continuava a viver.
Rimo-nos um pouco do encaminhamento que a nossa palestra tomava.
Pagamos a despesa, apertamos a mão do Adolfo, dissemos duas pilhérias
ao Quincas e saímos.
Na rua, os bondes passavam com estrépido; homens e mulheres se agitavam
nas calçadas; carros e automóveis iam e vinham...
A vida continuava sem esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres,
felizes e desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua
complexidade.
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