A Garganta da Serpente
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Metamorfose

(Luiz Lyrio)

Ninguém tinha mais medo de morte matada, lá pelas bandas do Mata Cobra, do que o tal de Zé Pedro. E não era um medo infundado. O pai e o avô de Zé Pedro tinham morrido tocaiados pelos jagunços do fazendeiro Bode Véio, que expulsou o resto da família de Zé Pedro das terras que ela ocupava na divisa com a Fazenda do Corcunda. Aliás, foi assim Véio, cujo nome de batismo era Juvercino Pereira dos Santos, tornou-se o maior latifundiário da região: matando quem se recusasse a vender suas terras para ele.

Zé Pedro lembrava-se bem do dia em que trouxeram os corpos do avô e do pai para a casa onde morava com a mãe e seis irmãos todos com menos de dez anos. Sua mãe desabou quando viu os dois defuntos. Socorrida, desatou a chorar. Seu choro durou cinco dias ininterruptos, ao final dos quais a mulher veio a falecer desidratada. Bem que, durante o velório e nos dias seguintes aos enterros, os vizinhos e parentes tentaram alimentar e fazer a mulher beber alguma água, mas, apaixonada como era pelos dois homens, a perda para ela fora irreparável. E ela preferiu morrer a continuar a viver num mundo desabitado por aquelas duas criaturas.

Sem pai nem mãe nem avô, Zé Pedro e seus irmãos foram para pertinho do povoado do Mata Cobra, morar com uma velha tia que vivia de fazer mandingas. A mulher unia e desunia casais, dizia, só fechando os olhos e rezando, onde achar bois perdidos no mato e desfazia feitiço feito por gente que mexia com magia negra. Temente a Deus, entretanto, dona Maria Lôra só fazia seus feitiços se tivesse absoluta certeza que estava fazendo o bem. Não se importava, porém, em prejudicar alguém se isso viesse a trazer a felicidade de um vivente que ela considerava bom. E gabava-se de ser boa conhecedora da índole humana, sabendo, só de bater o olho, quem era bom e quem era mau. Muito solicitada para fazer trabalhos de todo o tipo para os moradores da região, só tinha uma coisa que dona Maria Lôra sabia como fazer bem, mas, nunca tinha feito: feitiço para fechar o corpo de alguém.

Muita gente procurava a velha com este fito, mas, ela desconversava e dizia que Deus dava a hora de cada um e não seria ela que iria contrariar a vontade do Todo-Poderoso. Além disso, - isso ela não dizia para ninguém - Maria Lôra se recusava a fazer o feitiço porque ele era muito perigoso, como tudo que desafia as leis da natureza.

O tempo foi passando e Zé Pedro e seus irmãos foram crescendo. Quando tinha quinze anos, Zé Pedro perdeu o irmão mais velho, de novo de morte matada. Foi numa briga no bar do Tito, ocasionada pelo atrevimento do Fuinha, que mexeu com a Zica, xodó do sobrinho mais velho de dona Maria Lôra. Furioso e enciumado, o irmão mais velho de Zé Pedro investiu sobre o Fuinha, que escorou o corpo do rapaz com um facão, O facão cortou tudo que o rapaz tinha de recheio e não teve jeito. O moço morreu antes mesmo de chegar o Chico da Farmácia.

Dona Maria Lôra chorou muito. E Zé Pedro, além de chorar, passou a ter mais medo ainda de morrer de morte matada. Na noitinha seguinte ao enterro do irmão, ele chegou perto da tia e fez-lhe a pergunta que há muito calava em seu peito:

_ Tia, a sinhora sabe fazê algum feitiço pra fechá o corpo da gente?

_ Sei sim, fio. - Nunca a mulher revelara isto para nenhum ser vivente. - Mas é muito perigoso. Faz muito mal para a pessoa que tenta ferir o corpo do protegido. E pode fazê mal até para pessoa que tivé o corpo fechado. Só sua tia conhece esse ritual. E ele é muito poderoso. Nunca faia!

_ Tia...Eu queria que a sinhora fechasse meu corpo. Num quero morrê de morte matada ingual meu pai, meu avô e o Jordélio...

_ Melhor num tocá nesse assunto mais, menino! Eu já disse que é perigoso!

_ Tia, num tem nada mais perigoso que a morte. Se a sinhora num fechá meu corpo, eu num vô nunca mais vivê em paz. É capaz até deu me matá pra me livrá dessa sina!

_ Meu fio, pensa bem no que cê tá me pedindo! É perigoso! É perigoso pros seus inimigo...

_ Os meus inimigo que se dane!

_ Num fala desse jeito!

_ Tá, tia, descurpe...Mas então fecha meu corpo!

_ Tá bom! Ta bom! Eu já perdi meu pai, meu cunhado, minha irmã e, agora, o meu sobrinho mais véio. Chega de morte! Vô fechá o corpo docê primeiro. Dispois, daqui um tempo, eu fecho o dos seus irmãos. Só que cê vai tê que fica sete dia trancado no quarto, bebendo só água e se alimentando só duma sopa que eu vô prepará procê.

_ Tia, eu aceito quarqué coisa pra ficá com o corpo fechado!

_ Então, tá certo, fio. Amanhã a gente começa o ritual...

E assim foi feito. Num ritual complicado que durou sete dias e sete noites de muita reza e sacrifício, Zé Pedro teve o corpo fechado por sua tia bruxa.

Dona Maria Lôra não teve tempo de fechar o corpo dos outros sobrinhos, conforme prometera para Zé Pedro. Morreu de pneumonia sete dias depois de completar o ritual com o sobrinho. A pneumonia, porém, foi só um pretexto que o Criador usou para levar para o purgatório aquela bruxa boa que havia desafiado a morte, livrando o sobrinho da sina de morrer aos vinte e cinco anos, varado por bala de carabina.

E, enquanto dona Maria Lôra penava no purgatório, Zé Pedro tornou-se um homem. Um homem com o corpo fechado.

Só aos vinte e cinco anos, Zé Pedro foi entender porque o feitiço era tão perigoso para quem tentasse feri-lo. Foi quando ele deu um corretivo no Coré. Coré ficou inconveniente quando bebeu umas pingas e começou a brincar de passar a mão na bunda dos homens que conversavam no balcão do bar do Tito. Zé Pedro não gostou da brincadeira e colocou o Coré para fora do bar a pontapés. Coré foi em casa, buscou a carabina e, mesmo meio tonto, ficou firme, frente a frente com Zé Pedro, apontando a arma para a cabeça do sobrinho de dona Maria Lôra. Quando Coré puxou o gatilho, o tiro saiu pela culatra. A bala atravessou-lhe a testa e Coré caiu mortinho na mesma hora.

Foi depois do incidente com Coré que Zé Pedro se convenceu de que o feitiço de Maria Lôra era poderoso e realmente lhe fechara o corpo. Agora, ele entendia o que sua tia quisera lhe dizer quando falara que o feitiço era muito perigoso para os seus inimigos. Sabendo-se protegido, Zé Pedro, enfim, tomou coragem para colocar em prática o plano de vingança que, em suas fantasias de infância, arquitetara contra o latifundiário Bode Véio. Mataria dois coelhos com uma cajadada só: acabaria com o fazendeiro que causara a morte de seus pais e de seu avô e tomaria para si aquele mundão de terras que aquele velho solitário possuía.

Zé Pedro, apesar de confiar no feitiço de Maria Lôra, não era besta de ir sozinho enfrentar a jagunçada de Bode Véio. Assim, ele recrutou vinte jagunços dos bons, aos quais prometeu um pedaço de terra, e o bando armado partiu em direção à Fazenda do Capeta, que era o nome que os habitantes do Mata Cobra deram à fazenda onde morava o latifundiário Juvercino Pereira dos Santos.

Antes que os homens de Zé Pedro pudessem entrar na propriedade, a cerca de cem metros da porteira, deu-se o encontro dos dois bandos de jagunços. Zé Pedro ordenou à sua jagunçada que não atirasse, mas, quando os homens de Bode Véio levantaram as armas e o próprio fazendeiro apontou sua garrucha na direção de Zé Pedro, a jagunçada do sobrinho da bruxa desobedeceu a sua ordem e começou a atirar. Foi um massacre. Os homens de Bode Véio começaram a atirar uns nos outros, enquanto eram fustigados pela artilharia da jagunçada de Zé Pedro. Até o latifundiário apontou sua garrucha contra a própria cabeça e estourou seus miolos. Cessado o tiroteio, abaixada a fumaceira, os corpos de toda a jagunçada de Juvercino Pereira dos Santos e o do próprio verme jaziam espalhados pelo chão. Do lado do bando de Zé Pedro não houve nenhuma baixa. Só Fussu de Bembem levou um tiro de raspão dado de mau jeito pelo seu companheiro de bando Jacinto. Coisa boba, de nenhuma gravidade.

Daí a uma semana, chegou ao Mata Cobra o delegado do distrito de Pássaro Branco. O Dr. Etelvino, porém, era daqueles delegados de interior que não gostavam muito de encrenca. Ele dava uma boiada para não entrar numa briga e sonhava morrer bem velhinho, de aposentadoria. Assim, ele aceitou a versão dada pelo povo do Mata Cobra de que houvera uma rebelião de parte da jagunçada de Bode Véio contra os maus tratos que o malvado infligia aos seus empregados. Numa guerra entre jagunços rebelados e jagunços fiéis ao fazendeiro, os próprios homens de Bode Véio, segundo os moradores do Mata Cobra contaram para o Dr. Etelvino, teriam se matado uns aos outros, não sobrando vivalma, nem o próprio fazendeiro, para contar a história. A única testemunha do fato fora o moleque Eunápio, que, trepado numa mangueira, presenciou todo o entrevero. Depois de dois dias no Mata Cobra, o delegado deu o caso por encerrado e voltou para Pássaro Branco.

Zé Pedro, então, mandou chamar o Bené do Cartório e o instruiu para que passasse escritura de parte das terras de Bode Véio para a sua jagunçada e para seus cinco irmãos. A maior parte das terras, porém, ele mandou registrar no nome dele. A partir de então, Zé Pedro passou a ser o mais poderoso latifundiário da região do Mata Cobra.

O rico latifundiário José Pedro Antunes teve uma existência relativamente tranquila, depois que Bode Véio morreu. Enfrentou algumas emboscadas, principalmente armadas por forasteiros que, tendo ouvido falar que ele tinha o corpo fechado, tentaram eliminá-lo em busca de fama. Zé Pedro tinha pena dos pobres, que se matavam com bala ou se atiravam do alto dos lajedos onde subiam para tocaiá-lo. Sentia principalmente pelos mais jovens, que acabavam tendo existência curta por causa de um capricho. Mas, o homem do corpo fechado não sentia remorso algum por estas mortes. Ele não podia se responsabilizar por algo que fora resultante da maldade dos infelizes que queriam acabar com ele, sem mesmo conhecê-lo.

Depois da guerra contra Juvercino Pereira dos Santos, ele procurou sempre a paz e continuou sendo um bom cristão, temente a Deus e frequentador da igreja católica, onde batizou os dez filhos que teve com a Zica, por quem se apaixonou e se casou, dez anos após a morte de Jordélio.

Aos quarenta e cinco anos, quando já havia vivido vinte anos a mais do que os que Deus lhe dera na Terra, Zé Pedro ficou doente. Seu estômago foi ficando ruim e, como não deu importância ao fato, ele foi convivendo com uma úlcera que, com o tempo, virou câncer. Zé Pedro foi definhando e, cada vez mais, sentia fortes dores, vomitava sangue e tinha dificuldades para se alimentar. Até que não teve mais jeito. Sua teimosia não lhe valeu de mais nada e seu filho Celestino acabou convencendo-o a ir para a capital, para se tratar.

Quando o médico da capital resolveu internar Zé Pedro para fazer os primeiros exames, começaram os incidentes desagradáveis. E os primeiros incidentes aconteceram na sala de endoscopia do hospital. Quando a enfermeira veio com a injeção para sedar o paciente, inexplicavelmente, a moça aplicou a injeção em sua própria coxa, e, grogue, foi conduzida até um leito por uma colega. Zé Pedro, nessas alturas dos acontecimentos, fraco e com fortes dores, bem que tentou dizer alguma coisa para alertar o pessoal do setor, mas, pensaram que ele estava delirando, e ninguém lhe deu atenção. Outras tentativas de sedar o paciente foram feitas sem sucesso. Com várias enfermeiras fora de combate, as duas enfermeiras que sobraram e o médico responsável pela sala de endoscopia chegaram à conclusão que estavam diante de um fenômeno inexplicável e levaram Zé Pedro de volta para o seu quarto.Os médicos, então, desistiram da endoscopia e, diante da gravidade do estado de saúde do paciente, resolveram operá-lo mesmo sem saber o que encontrariam quando abrissem a barriga do fazendeiro.

Zé Pedro foi levado para a sala de cirurgia em estado gravíssimo. Diante dos incidentes ocorridos na sala de endoscopia, os médicos optaram por anestesiá-lo usando apenas medicamentos que pudessem empurrar goela abaixo do paciente. Porém, quando um cirurgião pegou o bisturi, aconteceu o inusitado. O médico abaixou sua mão e, num rasgo só, abriu sua própria barriga. Teria feito estrago maior em si mesmo, se os colegas não o desarmassem e, na certa, o cirurgião teria ido desta para melhor, se não tivesse recebido atendimento médico de imediato. Diante do desagradável incidente, os médicos resolveram adiar a cirurgia de Zé Pedro para o dia seguinte.

Só que, no dia seguinte, Zé Pedro não precisou mais de cirurgia. De madrugada, sem dizer um ai e, provavelmente, ainda dormindo sob o efeito da medicação que lhe fora ministrada na sala de cirurgia, Zé Pedro Antunes faleceu.

Um dos sofrimentos que Maria Lôra penou no purgatório foi acompanhar passo a passo todo o sofrimento do sobrinho. Desde o primeiro momento em que Zé Pedro entrou no hospital até a sua morte, todos os fatos foram levados ao conhecimento da bruxa do Mata Cobra. Um anjo lhe disse que o sofrimento do seu sobrinho era para purgar o pecado que o jovem Zé Pedro tinha cometido ao se submeter a um ritual que desafiava a vontade do Criador. Maria Lôra, desde que soubera dos fatos ocorridos na sala de endoscopia, pedira ao Senhor que a deixasse voltar à Terra para desfazer seu feitiço, mas, o Todo Poderoso, ainda muito aborrecido com ela, disse-lhe que ela tinha que ficar onde estava, pagando pelo seu erro e deixando o sobrinho sofrer as consequências de seu atrevimento.

No momento da morte de Zé Pedro, porém, o Senhor, conforme Ele mesmo havia planejado, deixou Maria Lôra socorrer o sobrinho. É que o poderoso feitiço fechara tão bem o corpo do infeliz que sua alma não encontrara saída para abandonar aquela carcaça imprestável e ir para o purgatório pagar o resto dos seus pecados. Só Maria Lôra sabia com desfazer o feitiço, abrindo o corpo do fazendeiro para que seu espírito pudesse, enfim, abandonar o plano terreno.

Assim, Maria Lôra desceu à Terra e, como precisava de sete dias para desfazer o fechamento do corpo de Zé Pedro, levou o cadáver do falecido para a velha casa, agora abandonada, onde ela morara com seus sobrinhos até o dia da sua morte.

Quando Celestino chegou ao hospital, o alvoroço foi grande. Seu pai havia desaparecido como por encanto. Os médicos, enfermeiros e funcionários que estavam de plantão naquela noite foram chamados à sala do diretor do hospital, mas ninguém soube explicar como aquele homem tão enfermo e debilitado poderia ter abandonado o seu leito e desaparecido. O caso foi parar na polícia e depois na imprensa, que especulou, mas também não soube explicar o mistério. Falou-se em cura milagrosa, sequestro para exigir resgate e em roubo de cadáver para vender para alguma faculdade de medicina. Um repórter mais chegado ao bizarro levantou até a hipótese de que o corpo de Zé Pedro tivesse sido roubado e violado por algum necrófilo.

Na sétima noite após o sumiço do pai, Celestino teve um sonho. Uma velha, que se dizia sua tia-avó, disse-lhe que fosse até a velha casa abandonada onde seu pai morara antes da guerra contra Bode Véio e buscasse o corpo de Zé Pedro para encomendar sua alma e lhe dar um enterro decente.

Logo que acordou, Celestino vestiu-se, acertou sua conta de hotel e tomou o rumo do Mata Cobra. Chegou lá à tardinha e não perdeu tempo. Pegou três jagunços da Fazenda do Capeta, agora chamada de Fazenda dos Antunes, e foi para a casa abandonada onde, outrora, Maria Lôra morara com os sobrinhos.

Quando arrombaram a porta, Celestino e os jagunços que estavam com ele não tiveram dificuldade para achar o corpo de Zé Pedro. Ele estava em cima da mesa da sala. A carcaça do pai de Celestino, apesar de passados oito dias da sua morte, não exalava mau cheiro. No ar, predominava forte um cheiro de flor de defunto. Celestino, então, mandou chamar o Simão Perneta, que providenciou um caixão e uma coroa de flores. Antes do enterro do sobrinho de Maria Lôra, foi realizada uma missa de corpo presente para encomendar sua alma.

Zé Pedro ainda passou um bom tempo no purgatório, acabando de pagar seus pecados, principalmente os que cometeu na guerra contra Bode Véio. Estes pecados eram coisa para se pagar pela eternidade no inferno, mas o senhor levou em conta como atenuante o fato de que Bode Véio, além de ser ruim como a peste, tinha assassinado o pai e o avô de Zé Pedro. Além do mais, cheio de sabedoria, o Criador jamais iria condenar Zé Pedro ao mesmo castigo imposto ao latifundiário Juvercino, este sim condenado a penar no inferno por toda a eternidade.

Hoje, dona Maria Lôra e seu sobrinho vivem felizes no paraíso. E os segredos do poderoso feitiço para fechar e abrir o corpo de um ser vivente jamais chegou ao conhecimento de nenhuma outra bruxa. Ainda mais que dona Maria Lôra, que aprendera muito com o sofrimento dela e do seu sobrinho, resolveu cumprir a promessa que fez ao Criador de nunca mais revelar este segredo para nenhum mortal. Muito menos para um que fosse dado a lidar com bruxaria.

(Conto selecionado no VI Prêmio Literário Livraria Asabeça - 2007)

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