O gaúcho velho sempre tivera verdadeira fascinação pelo
grande caudilho, o general Honório Lemes. Era uma afeição
de macho para macho. De general para general. Uma admiração que
beirava as raias da veneração por aquele maragato que pusera em
cagaço muita gente buena que se tinha por valente e ao encontrá-lo,
dera-se conta de que nem tanto. Era o Leão do Caverá, ao seu ver,
a encarnação do que havia de melhor do espírito aguerrido
gaúcho e que passara de peão de estância a general, por
aclamação, muy semelhante ao que lhe sucedera, nos tempos da Legalidade.
Como fora Alegrete um dos principais redutos maragatos, para lá enveredou
o homem, numa manhã de julho, para encontrar-se com a legendária
figura.
Montado, ia ao valente Malacara, o mesmo de tantas outras cavalgadas. Muitas
por necessidade. Outras, por precisão. Algumas, como nesses tempos de
emoções em que estava vivendo, por puro diletantismo. No trote,
dirigiu-se à Vila de Palmas, dali à Lavras. De Lavras até
Rosário, deixando São Gabriel pela destra e então, quando
dava o meio-dia e completava o terceiro sol de marcha, avistou o Texacão
do Caverá, que era um hotelzinho muy muquirana que ficava na beira da
carreteira, junto a um posto de gasolina - o tal de Texacão - às
portas da cidade berço do Oswaldo Aranha, do Mário Quintana, do
Piola, do Valderez Mutuca Garcez, do Oswaldo Chibiaque, do Adão Faraco,
do Nilo Rodrigues, do Antônio Carlos Bica, entre outros e que distava
mais de cinquenta léguas da fazenda - o Rincão do Sol, lá
no Basílio - de onde partira.
Os anos haviam passado desde sua ultima estada naquela terra e tudo
estava diferente. A velha carreteira, que outrora se usava para cortar caminho
até a faixa, passando pelo cemitério e pela pedreira, estava em
desuso e o chircal campeava solto como praga. No seu lugar, haviam aberto outras
faixas, de nomes Avenida República do Rio Grande e Rio Grande do Sul,
que eram utilizadas por quem cruzava o Ibirapuitã, passava na frente
do Aeroclube, do Parque de Exposições, dos puteiros de saudosas
noitadas e vinha sair mais ou menos no mesmo lugar onde a velha estrada saía
outrora e que agora, a não ser que se lhe soubesse da existência,
nem rastro se achava.
Junto do Ibirapuitã, que vinha alto na caixa, estacou. Deu um refrigério
no pingo que estava assoleado, embora a temperatura amena e sentou-se para esperar
o cair da noite enquanto o bagual, livre dos aperos, refestelava-se, de cascos
para cima, esfregando o lombo na grama rala das barrancas, queimada pela geada.
Como vinha também cansado da marcha batida, acomodou-se enroscado no
poncho e lhe foram mermando as forças... Mermando as forças e
pesando as pálpebras, até que dormiu. E sonhou...
Num vórtice, afloraram as lembranças dos livros que lera, não
fazia muito, sobre o caudilho... E, naturalmente, sobre a razão da guerra
fratricida...
Com o fim da Revolução Federalista de 93, em 95, Júlio
de Castilhos, eleito em 20 de novembro de 92, governara o Estado até
1898. Bom administrador, recuperara as finanças do Continente, que se
haviam combalido. Reduzira a dívida pública à metade. Organizara
a Justiça Civil. Decretara impostos. Pusera em funcionamento o telégrafo,
as linhas de navegação, reorganizara a Secretaria de Obras Públicas.
Incentivara a criação dos minifúndios, criara o Serviço
de Higiene, regulamentara o exercício da Medicina. Oferecera garantias
à magistratura, assegurando-lhe a independência do Poder Executivo,
abolira o júri, criara a Assistência Judiciária, os serviços
policiais, reorganizara a instrução primária. Mas, - e
sempre existe um mas - preterira os candidatos naturais à sua sucessão,
Ramiro Barcelos e Pinheiro Machado, em prol de Borges de Medeiro, sua cria política
e altamente concentrador, invasivo e burocratizador. Na quarta candidatura,
após vinte anos de governos ineficientes, de perseguições
cruéis e descabidas aos adversários políticos, de montagem
de uma máquina partidária sólida e onipotente, Borges conseguiu
levantar contra si uma onda de protesto e repúdio ao arrebatar, fraudulentamente
as eleições a Joaquim Francisco de Assis Brasil, republicano histórico,
deputado constituinte, embaixador em Portugal, Ministro Extraordinário
na Argentina e nos Estados Unidos, escritor e pensador. Sufocado nas urnas,
Borges não viu outra maneira senão organizar uma comissão
apuradora constituída exclusivamente por deputados republicanos que impediram
o acesso à contagem dos sufrágios aos prepostos daquele candidato
e, afugentando os poucos e derradeiros escrúpulos, anularam todas as
urnas necessárias para que Borges atingisse a meta de três quartos
do eleitorado. Fora jogada a bosta no ventilador.
Em 24 de janeiro de 1923, véspera da posse do surrupiador da intenção
popular esmagadora, o deputado Artur Caetano da Silva e o general João
Rodrigues Mena Barreto, de Carazinho enviaram telegrama ao Presidente Artur
Bernardes, denunciando o esbulho e pedindo intervenção federal.
No dia seguinte, cerca de mil homens do interior do município de Passo
Fundo, ao comando de João de Souza Ramos e outros líderes, sitiam
a vila. Oito dias correm e nada da intervenção solicitada. Está
decidida a sorte do Estado: É a luta de recursos... De guerrilhas.
De todos os rincões abarcados pelo Cruzeiro brotaram grupos de voluntários,
liderado por caudilhos locais, para dar eco ao grito que se iniciara em Passo
Fundo, colocando o Rio Grande em pé de guerra.
Tudo isso o índio velho, exausto, envolto em seu poncho via em seu sonho,
às margens do Ibirapuitã, porque lera nos livros de história
que levara para casa ou porque, um ou outro causo ou episódio ouvira
contar, pelos peões andarilhos que às vezes cruzavam pelo Basílio,
desgarrados ou que encontrava escorados no balcão do bolicho do Xamuset,
lá no Desvio, entornando um liso de canha e charlando... Charlando...
Mas a dormir de prontidão, estava acostumado... Com um olho fechado e
outro aberto... Então, um ruído despertou-o por completo. De um
saldo se pôs de pé e boquiaberto viu a ponte ferroviária
que não vira quando chegara. Estava coberta de tábuas grossas,
assentadas sobre os trilhos e por ela, apressados, porém organizados,
cambiava de margem grossa tropa de cavaleiros bem armados.
O gaúcho, rápido como um corisco meteu os arreios no Malacara,
arrebanhou o poncho que ficara no chão e galopou barranca acima para
encontrar aquele mundéu de gente que somava mais de mil... Dois mil,
talvez. E foi só meter a cara no meio deles que já lhe calçaram
à boca de arma:
- Alto lá! - gritou um índio entroncado e preto como tição.
- Alto lá uma bosta! - respondeu o Tuquinha, que já vira coisa
mais ou menos semelhante quando cruzara na frente do 9º Regimento de Infantaria,
lá em Pelotas, quando estivera à testa do Piquete da Legalidade,
rumando para a capital
- Pica-pau ou maragato? - tornou a gritar o homem.
- Maragato, chirú macanudo! Tu não está vendo o lenço
colorado? -
voltou a responder o Tuquinha, indicando com a mão o lenço encarnado
que sempre trazia ao pescoço.
O homem que o intimara abriu um sorriso e abaixou a arma.
- Desculpe... Achei que era algum legalista...
- Legalista? O compadre está variando?
A sentinela olhou para o intruso, espantada, enquanto a tropa
continuava a cruzar-lhes pelo lado, vadeando o rio a seco, pela ponte habilmente
improvisada:
- De que planeta o senhor chegou?
- Não venho de planeta nenhum... Acabo de chegar, isto sim, é
lá do Basílio... - respondeu o gaúcho.
- Do Basílio? Nunca ouvi falar...
- É uma vila muy da mixe que fica para lá de Bagé... Perto
do Herval...
Agora a sentinela pareceu ter se situado.
- O amigo aderiu ao movimento?
- Movimento?... Do que o compadre está falando?
- Da Revolução! É só disso que se fala aqui...
- Revolução? A milicada derrubou o Ferreiro? - perguntou o
viajante, meio zonzo.
- Se o doutor Borges é ferreiro eu não sei... Ao que me consta
é rábula...
- Doutor Borges?
- Sim... Doutor Borges de Medeiros...
- Doutor Borges de Medei...? - aí o gaúcho caiu em si. Deu-se
conta da situação. Como vinha há dias que só pensava
no assunto, dormira na barranca do Ibirapuitã e acordara na tarde do
dia dezoito de julho... Dezoito de julho de 1923! A patroa, que já pagara
uma nota preta para um doutor de almas muy do charlatão fazê-la
voltar no tempo, iria à loucura quando ele lhe contasse que voltara sem
gastar nada.
Agora, situado no tempo e no espaço, voltou à conversa:
- O amigo tem razão... É jurista... - confirmou, lembrando que
lera em algum lugar que o homem era versado nas lides do Direito.
Foi então a vez da sentinela espantar-se:
- Jurista! Que diabo vem a ser isto?
- Jurista é a mesma coisa que advogado... Pensando melhor, é mais
um pouco. É um advogado que dá pareceres sobre questões
do direito... - explicou o gaudério, sentindo-se importante por
saber alguma coisa e poder compartilha-la.
- A la putcha, tchê! - exclamou a o negro - Então ele não
podia ter feito as cagadas que fez!
O Tuquinha voltou a considerar, agora sob este outro aspecto que o
taura levantara. Coçou o queixo, ajustou o barbicacho e sentenciou, com
a propriedade que lhe era característica:
- É que na prática a teoria é outra, como dizem... Normalmente,
as maiores burradas vêm daqueles mais capacitados a não faze-las...
Agora foi a vez do negro pensar. Matutou... Abriu a boca para falar...
Fechou, sem nada dizer... Pensou mais um pouco e então, achando que era
filosofia demais para um pobre peão, lascou:
- A tropa está terminando de cruzar o rio... O gaúcho vai unir-se
a nós ou veio só para olhar?
O desafio bateu na veia do capataz como um raio.
- É claro que vou! Onde está o general?
- O general Honório?
- Quem mais seria?
- O general foi um dos primeiros a atravessar o Ibirapuitã e deve estar
agora a traçar planos junto com o doutor Batista, que foi convidado por
ele para assumir a chefia do estado-maior da força.
O viajante quase teve um colapso:
- O doutor Batista Lusardo? - perguntou, quase sem acreditar que
por uma casualidade do destino mataria, por assim dizer, dois coelhos de uma
só cajadada.
- Ele mesmo... Juntou-se a nós ainda ontem ou anteontem...
- Mas então não percamos mais tempo, - disse o Tuquinha, louco
para ver o caudilho - me leve até o homem!
O negro foi buscar a montaria e voltou logo em seguida, fazendo
sinal ao gaúcho para que o acompanhasse.
Juntos, subiram a barranca e embrenharam-se na mata nativa e logo e
logo entraram no acampamento maragato, onde a sentinela, conhecedora das tendas
armadas, foi direto à do comandante.
- General?... - chamou o negro, fazendo uma continência muito da
displicente.
O homem estava de costas, debruçado sobre uma mesa de campanha,
analisando um mapa topográfico da região, ladeado por outros oficiais
que o gaudério nunca havia visto em fotografias e muito menos ao vivo.
- General?... - insistiu a ordenança.
O homem voltou-se:
- O que é, cabo?
- General, acabo de encontrar este vivente que diz que é la do... do...
- Do Basílio! - completou o próprio Tuquinha, sentindo que o
olhar do general caía sobre ele, perscrutador.
- De onde? - perguntou, por fim.
- Do Basílio, general... - voltou a afirmar o gaúcho.
- Basílio... - repetiu o caudilho, absorto em pensamentos - Acho que
já passei por lá uma vez...
- Espero que tenha gostado... É uma vila buena.
- Toda vila que nos manda gente para a luta é boa. - atalhou o general,
que não tinha tempo a perder também - O voluntário está
armado?
O Tuquinha acenou que sim, mostrando a coronha do trinta que trazia
no coldre da guaiaca.
- Muito bem... Estou pensando em estender, amanhã cedo, uma linha na
orla do mato, para esperar os republicanos que vêm chefiados pelo Flores
da Cunha e dar-lhes um belo cagaço enquanto não conseguimos nos
unir às forças do general Estácio Azambuja e Zeca Neto
e podermos enfrentá-los num combate maior e mais decisivo.
- Então estou às suas ordens, general.
- Ótimo... O cabo vai acompanha-lo até a cantina e depois apresenta-lo
aos companheiros... Está dispensado. - disse ele,
voltando a concentrar-se nos mapas.
O negro fez sinal ao gaúcho, que relutava em sair de perto do caudilho,
indicando que a entrevista de apresentação estava encerrada e
que ele deveria segui-lo.
- Quem são os homens que estavam com o general? - perguntou ao
cabo, logo que se afastaram da tenda de comando.
- Não conheço o nome de todos... Mas lá estavam os tenentes-coronéis
Gabriel e Delfino Timbaúva e Maurício de Abreu, entre outros.
- respondeu-lhe o negro, postando-se à entrada da barraca
que funcionava como cantina à qual havia chegado e de onde se desprendia
um delicioso aroma de feijoada, coisa que ao viajante muito bem cairia, uma
vez que vinha em viagem há quatro dias agora e, de sustância, não
lhe vira nada o bucho.
Ali mesmo, na cantina, de imediato formou-se-lhe a roda em volta. Era sempre
assim. Estava acostumado a contar histórias e causos nas pulperias e
nos bolichos. Histórias onde, ao contrário dos outros - e aí
talvez residisse a graça e estivesse o encanto - ele, via de regra, levava
a pior ou escapava por um fio.
A noite caíra, fria. Os homens se foram dispersando rumo às suas
barracas e trastes. Uns poucos se agruparam à volta do fogo e ficaram
pitando enquanto o amargo corria preguiçoso. Longe, um combatente qualquer,
arranhava a viola, melancólico. Até o cabo, que se havia cosido
ao gaudério, testavilhou, enroscado num baixeiro e se foi a la gran puta.
O Tuquinha, deixado sozinho no meio do acampamento, levantou-se da banqueta
onde estivera sentado e foi acomodar o Malacara para passar a noite. Amarrou-o
a um galho e acomodou os arreios no chão, para que lhe servissem de travesseiro.
Estava entretido arrumando a cama quando se deu conta de que tinha companhia.
Voltou-se e deparou com o general ali ao seu lado.
- Fique à vontade soldado...
- Obrigado general...
- Hay um índio lá perto do Basílio... Xamuset... O amigo
conhece? - perguntou o homem.
- Conheço, general... Mas hay de ser seu filho, certamente.
- É possível... É possível... - murmurou o caudilho
e então, refazendo-se do devaneio, perguntou: - Está pronto para
a luta de amanhã?
- Estou general!
- E não tem medo?
- Em verdade, não... - respondeu o gaudério, depois de refletir.
- Não? Até eu tenho! - exclamou o general, impressionado.
- Vai dar tudo certo...
- O que o amigo acha que acontecerá?
- O senhor determinará que trezentos homens a acavalo se postem em linha,
ao longo da mata... O general Flores da Cunha vai mandar o Nepomuceno Saraiva
atravessar a ponte para atacar-nos...
- E tu achas que ele se atreverá? - perguntou o general, tomando interesse
pelo raciocínio do recruta.
- Vai borrar as bombachas, general!
- Então não atravessará?
- Não... Ele não... Quem fará a travessia será o
próprio Flores da Cunha, a frente do seu estado-maior...
- O Flores da Cunha?... Por que o amigo acha isso?
- É difícil explicar-lhe...
- Então não explique! Mas diga mais... Se o recruta fosse este
general, o que faria? - perguntou o caudilho, entregando-lhe,
hipoteticamente, o comando e assumindo a posição de um observador.
- Eu não posso... Não posso, não... Não devo dizer-lhe
o que fazer.
- Ué, mas não pode por que?
- Porque não é certo!
- Agora não entendi nada! Tu estás ou não estás
do nosso lado? -
explodiu o general.
- Estou e não estou! - posicionou-se o gaúcho, tentando não
comprometer-se e nem assustar o caudilho com coisas que ele não entenderia..
- Assim está ficando difícil...
O Tuquinha pensou um pouco, e disse então:
- General, eu não estou do seu lado porque digamos que ainda não
existo... Mas se já existisse, estaria, com toda a certeza.
- Ah, agora entendi! - disparou o general - O amigo quer, na verdade, é
um posto de oficial do estado-maior? Quer deixar de ser um joão-ninguém,
é isso?
Ao visitante, o raciocínio do general, embora equivocado, serviu
como uma luva.
- Digamos que seja isso, general... - concordou.
- Mas então é fácil... O amigo quer ser o quê? Capitão?
Coronel? General? É só escolher que já o promovo na hora...
Mas pelo amor de Deus, diga-me o que faria amanhã se estivesse no meu
lugar!
- Eu deixaria os republicanos avançarem uns metros pela ponte... Talvez
vinte e então...
- E então? - perguntou o general, ansioso.
- Então abriria fogo sobre eles de detrás das taipas e das taperas
à margem do rio...
- E o amigo acha que seria suficiente para impedi-los?
- O general Flores da Cunha perderá as estribeiras com os seus comandados
e será ferido na luta... Seu irmão, o major Guilherme, será
morto... O tenente-coronel Oswaldo Aranha ferido e mais centro e trinta republicanos...
O general não acha que é este um número considerável
de perdas para desanimar o inimigo?
O general Honório Lemes ficou pensativo ante a perspectiva
apresentada, sem dar-se conta de que na realidade ela era a expressão
pura do que aconteceria na manhã seguinte, e por fim, concordou:
- Acho que o amigo dará um bom general...
- Talvez, comandante... Mas não deve o senhor deixar-se influenciar pelas
ideias de um simples capataz de estância...
- Isso não quer dizer nada... Eu também não passo de um
peão.
Isto dito, o caudilho ficou calado durante alguns instantes e depois,
dirigindo-se novamente ao gaúcho, desejou-lhe uma boa-noite e ia se retirando
para descansar um pouco antes da peleja que viria no dia seguinte, quando o
capataz, lembrando de algo que lhe vinha há muito na cachola, interrompeu
a sua saída:
- General...
O caudilho tornou a voltar-se em sua direção.
- Pois não?...
- General... É difícil encontrar a maneira de dizer-lhe isto...
Talvez que me faltem as palavras adequadas...
- Diga da forma mais simples que há de ser também a minha...
- É justamente sobre isso, general... O Rio Grande nunca vai esquecer
o que o senhor tem feito por ele...
- Eu espero que não...
- Eu lhe digo com toda a certeza... Não vai esquecer. Assim como não
o vão esquecer os nossos filhos e os nossos netos... E daqui a um século
ou mais o senhor estará tão vivo quanto está agora...
- É bondade sua...
- Não, general, é reconhecimento e orgulho de haver nascido, como
o senhor, gaúcho... Há no entanto, uma coisa que quero dizer-lhe
ainda...
- E o que é?
- Esta luta vai terminar algum dia... Outras virão, entre as mesmas facções
que hoje se digladiam... Daqui a algum tempo talvez que o senhor se veja em
um aperto... - aí o gaudério empacou.
- Estou ouvindo... - disse o general, encarando-o firmemente.
- Não quero colocar palavras na sua boca... Só quero dizer-lhe
que doutor, qualquer um pode ser... Basta estudar ou pagar para sê-lo...
Ao passo que general... General de verdade, numa ascensão vertiginosa
e meteórica, o único de quem ouvi falar é o senhor, reconhecido
e aclamado pelos que lidera...
- Onde o amigo quer chegar? - perguntou o general, a quem a
curiosidade estava invadindo e não sabia se entendia bem ao que o interlocutor
dizia.
- Quero dizer que quando estiver frente-a-frente com o inimigo, mesmo em situação
de desvantagem, não baixe a crista... Não se deixe humilhar por
gente que possa achar ser melhor do que os outros só porque teve mais
oportunidades... Porque nasceu em berço esplêndido...
- Entendo...
- Se entende de verdade e se tal acontecer, responda à altura da sua
grandeza e há de fazer o Rio Grande inteiro cantar...
- Prometo que o farei... - garantiu o caudilho.
- Há ainda uma última coisa... Gostaria que o general aceitasse
o meu revólver como presente...
- Eu fico agradecido e me sentirei honrado em usá-lo... Mas por quê?
- quis saber o velho maragato.
- Eu não posso dizer-lhe... Digo apenas que, caso o senhor tenha de entregar
a arma um dia, entregue esta e não a sua...
- E qual a diferença? - quis saber ele.
- É que a minha é uma arma comum... Que hay em qualquer bolicho...
- respondeu o gaúcho, humildemente.
- Ué, a minha também... - retorquiu o general.
- - Não, general... A sua representa a esperança do Rio Grande em que às coisas, estando malparadas, se possam cambiar...
- Se é assim que o amigo pensa, então eu aceito o seu presente...
Obrigado! - disse ele, retirando-se e levando consigo o revólver
que aquele estranho visitante lhe oferecia.
O capataz ficou vendo o general afastar-se no meio da névoa que se formara,
até que desapareceu por completo. Então, terminou de estender
o poncho sobre os pelegos, coisa que estava fazendo quando o maragato chegara,
deitou-se sobre uma das suas pontas, cobriu-se com a outra e ferrou no sono
porque tinha de estar descansado para a manhã seguinte.
Acordou com o Malacara, que se soltara da amarra, a puxar-lhe as cobertas improvisadas. O sol ia alto e, estranhamente, ao invés de chegar-lhe
filtrado pelas árvores, batia-lhe em cheio. De um salto se pôs
de pé e olhou para a ponte. Nada! Nem sombra. Correu ao capão
de mato, onde estava o acampamento maragato e nada! Nem barracas.. Nem cavalhada
nervosa, esgravateando o solo... Nem homens em armas... Nada! No céu...
No céu, além do sol de julho, apenas a esteira branca, lejos,
de um jato da Varig que fazia a rota Porto Alegre-Buenos Aires... Voltou à
beira do rio, onde acordara. Junto aos pelegos que lhe haviam servido de colchão,
o poncho, úmido da geada que caíra... Os arreios, nos quais recostara
a cabeça... E a guaiaca... A guaiaca com o coldre vazio!
(Porto Alegre, 27/maio/2003)
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa? Barbaridade, tchê! Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |