A Garganta da Serpente
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Décima charla:
O Leão e o Ratinho

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na décima noite, retomaram, os quatro personagens, os seus lugares à volta da mesa de tábuas largas da cozinha da casa do gaudério.

Retomar seus lugares, evidentemente, é uma força de expressão, uma vez que se havia, por vontade de La Fontaine, efetuado um rodízio e ele, que, durante as primeiras noites, sentara-se ao lado da viúva, agora estava ao lado do capataz, enquanto que, por sua vez, Esopo tinha sobrado como par para madame.

Para o gaúcho, se por um lado melhorara, porque assim a chinoca não podia ficara a esfregar-se no fabulista francês, por outro, passaria a amargar as insinuações de monsieur, que o elegera como alvo da sua ternura súbita e da sua volúpia.

Como La Fontaine estava ainda em desvantagem em relação ao grego, no tocante às narrativas, em muito lembrando da fábula, já vista e comentada, da Tartaruga e da Lebre, o gaudério achou que talvez fosse conveniente, para emparelhar a penca, na qual ia Esopo de corpo e luz, voltar a oportunizar ao francês que recuperasse a cancha perdida.

- Senhor La Fontaine, - iniciou o chirú - se for do seu agrado, considerando que o senhor Esopo já teve mais oportunidades de brindar-nos com as suas narrativas, a noite é sua...

O francês fechou o pequeno espelhinho de moldura dourada com o qual estava apreciando, ao que parece, com muita satisfação a maquillage, agradeceu ao invite, com uma vênia, limpou a goela com uma tossidela e começou:

- Pensei em narrar-lhes, esta noite, a fábula do Leão e o do Ratinho, em homenagem ao colega Esopo, seu autor, e, também, a um grande escritor, por sinal brasileiro, de Taubaté, o imortal Monteiro Lobato, que a adaptou magistralmente ...

O guasca velho apressou-se em rabiscar a introdução à ata, com todo o esmero, apontando os dias do mês e da semana, o nome dos presentes, acrescentando ainda o do orador, do homenageado e do autor, sublinhando o tema da charla que estava se iniciando.

A madame, que havia tomado um livro emprestado ao deputado, de autoria do ilustre paulista, intitulado Fábulas, ao qual passara a noite a ler e a suspirar, perguntou:

- Qual delas, mon bijou?...

O fabulista pensou um pouquinho e respondeu, cheio de si, demonstrando que, além de escritor, era também um atento leitor:

- A que madame preferir, uma vez que de leões e ratinhos, há muitas...

Um ligeiro tremor percorreu a senhora, que, na verdade queria mesmo era sugerir outra coisa, mas que se conteve e controlou, porque, afinal, monsieur havia trocado de lugar e acabou por limitar-se a pedir, cheia de segundas intenções:

- A do "amor com amor se paga"...

O francês aquiesceu e iniciou a história propriamente dita:

- Um ratinho penetrou, inadvertidamente na caverna onde vivia o Rei dos animais...

- Mas que ratinho mais ousado... - comentou a senhora, que lançou um outro olhar de desconsolo ao narrador e atirou ainda, irônica: - Algumas pessoas deviam aprimorar-se com ele!...

- O Leão... - reiniciou o narrador.

Aí, foi a vez do gaúcho também comentar:

- Eu também já estive na toca do Leão!

La Fontaine, perplexo, pois não lhe constava haver leões na terra brasilis, perguntou, sem conseguir disfarçar o espanto:

- Verdade, monsieur Tuquinha?

- Verdade... - confirmou, ajuntando: - Estive lá para justificar à Receita uns cobres que não declarara...

A viúva, compreendendo a analogia, acrescentou, ligeira:

- Nessa toca eu também já estive!

Desta vez foi o marido que se surpreendeu, repetindo o francês?

- Verdade, querida?

Ela confirmou, com um aceno de cabeça e acrescentou:

- Quase que pela mesma razão que tu, Lindinho...

- Também não declaraste os cobres recebidos? - quis saber.

- Não... Os cobre, não... Um apartamento!... - explicou.

O grego, que vez por outra dava uma bola fora por não compreender bem o sentido das coisas, perguntou, com pureza:

- A madame adquiriu com honorários havidos em função de alguma causa ganha?

A moça voltou a negar com a cabeça, explicando:

- Não, senhor Esopo... Ganhei de um amigo generoso...

- Voltemos à charla! - recomendou o gaudério e o francês retomou, de onde parara:

- O Leão, vendo aquele pequeno intruso a vagar por sua casa, apanhou-o e ia levá-lo à boca...

- Ai, que horror! - apartou outra vez a moça, arrepiada de nojo.

O gaúcho justificou:

- É a lei natural da vida, minha querida... O maior come o menor...

- Isso é verdade... - concordou, continuando: - Eu que o diga...

O marido pensou em perguntar por que, mas desistiu.

O grego coitado, que não estava no melhor dos seus dias, tomou o seu lugar e inquiriu:

- A... A... A senhora concorda então que o maior deva comer o menor?...

- É claro!... Eu mesma sempre fui comida por gente maior do que eu... - aí pensou e fez a observação: - Com exceção do pai da borrega, que era um homúnculo!

O gaúcho afundou na cadeira, deixando escapar a pena e entornando o tinteiro sobre a ata da reunião.

A charla ficou em suspenso, até que a mesa fosse limpa e só depois que tudo se acertou é que foi retomada, prosseguindo La Fontaine:

- Ia levar o camundongo à boca, quando o Ratinho implorou por sua vida, alegando à sua majestade, que era pequeno demais para ser sacrificado, uma vez que não satisfaria ao apetite do soberano....

- Isso, o ratinho... - voltou a interromper a donzela - Eu, por mim, coloco a mão no fogo e tenho certeza que sempre satisfiz!...

Monsieur aproximou-se do gaudério e sussurrou ao seu ouvido:

- Mon mignon, avec moi esse tipo de problema o senhor não terá!...

O gaúcho considerou a proposta e agradeceu, preferindo continuar correndo o risco e o francês, mais confiante, tentou concluir a narrativa da fábula:

- O Leão, que na verdade não estava faminto, acabou soltando o pobre bichinho, que logo sumiu da sua vista...

- Isso, - observou o gaúcho - Porque, quem não é visto, não é lembrado...

A prenda discordou, peremptoriamente:

- Isso é o que tu dizes Lindinho porque eu, embora fique às vezes muito tempo sem ver os meus amigos, penso sempre neles e tenho convicção de que, por sua vez, também eles não esquecem de mim...

O gaúcho concordou e a charla continuou:

- Passado algum tempo, o Leão caiu em uma rede que lhe haviam armado alguns caçadores...

- Mais maldades! - observou ela - Este mundo é muito cruel, vocês não acham?

Les bonhommes concordaram que talvez fosse mesmo.

Monsieur La Fontaine continuou, sem dar-lhe atenção:

- O Leão debateu-se a mais não poder e por fim, exausto e cativo, deixou-se prostrar à sua sorte... Foi quando o Ratinho, que havia visto o seu desespero, surgiu e reconhecendo àquele que o havia poupado, um dia, se pôs a roer as cordas e acabou por retribuir ao monarca, libertando-o...

- E a moral da história, qual é?... - quis a madame saber pois, inconstante e instável, já havia esquecido que fora ela mesma a clamar pela fábula.

- Ora, querida... Que amor, com amor se paga! Que aquele que pratica o bem, deve o bem receber de volta!... Ou ainda, que mais vale o esforço continuado do pequeno do que os arrancos furiosos do grande!...

A moça pensou... Pensou e retrucou:

- Em tese, não é, Lindinho?...

O gaúcho pensou que talvez não fosse a pessoa mais indicada para discorrer sobre praticar e receber o bem e achou melhor ficar calado.

O grego Esopo, que estava em um dos seus dias de mais involuntária inspiração, quis saber:

- A... A... A senhora não concorda que é dando que se recebe?

- Concordo! - disse a moça, ratificando: - Com isso eu concordo plenamente!

- De... De... Deve ter recebido muito, durante a sua vida, não?... - voltou a inquiri-la o grego.

- Senhor Esopo, na verdade, dei bem mais... - e aí, lançando um olhar para monsieur, completou: - É uma coisa da qual não me arrependo... Pelo contrário, desejo ainda dar muito e muito mais!...

O gaúcho resolveu interceder, antes que a coisa descambasse:

- Não é isso que o senhor Esopo está perguntando, querida!...

- Ué, mas ele não queria saber se eu já tinha dado muito?...

- Queria, meu amor... Mas, mais exatamente, se tu já tinhas dado, no sentido de fazer o bem?... E de recebê-lo de volta!?...

- Pois é do que eu também estou falando... Cada vez que dou, eu estou fazendo o bem!... E, simultaneamente, já o estou recebendo de volta!... - aí ela lembrou do Alemão, de quem não tinha tido retorno e acrescentou: - Bem, quase sempre, não é?...

Aí foi a vez do gaudério encerrar a charla daquela noite e perguntar, porque, afinal, perguntar não era ofender:

- Está certo, querida... À propósito, não queres me fazer tal bem esta noite?... - e acrescentou: - Eu te garanto que terás de volta tanto ou mais do que deres...

A moça procurou por monsieur que já ia, junto com o grego, batendo em célere e estratégica retirada e, voltando-se depois para o marido, que com tal defecção se havia tornado a única alternativa, e perguntou, resignada:

- E há outro remédio, Lindinho?...

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

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