Ele atravessava o túnel do metrô. Em cima da hora para o curso
na Secretaria de Educação. Ela em pleno intervalo para o almoço.
Ela interessada na exposição fotográfica sobre o ano de
1968. O tal ano que ainda não terminou. 40 anos depois... A exposição
cobria as paredes do túnel que desemboca na Praça da Estação.
O ônibus que sobe a Rua da Bahia deixa o ponto às 12:25. Ali no
visor rubro piscam os dígitos 12:18. O curso marcado para às 13:00.
Ela em passos na exposição semicircular. Arrepia-se com um "Oi!"
que brota do vulto imediatamente à sua esquerda. "Você!"
Ele observa o que ela observa. "É proibido proibir" diz o grafite
no muro. Ao lado de "Abaixo a Ditadura". E à direita fotos
de tropicalistas, Beatles, hippies desnudos. Até John Lennon peladão
ao lado de uma 'cool' Yoko Ono. E olham as fotos. "Você se
assustou?", ele pergunta, de olho no olhar dela, atenta à nuvem
de gás lacrimogênio. "Faça amor, não faça
guerra" e jovens queimam as cartas de convocação enquanto
policiais avançam. Ela agora olha o olhar dele. Ele constrangido diante
de Lennon e Yoko? Um 'faça amor, não faça a guerra' literalmente
entre os lençóis. Ao redor um som tropicalista. Ele confunde tudo:
acha que é o Chico Buarque. "Ontem eu passei aqui. E era o Chico!",
ele tenta desculpar o péssimo deslize musical. "Ontem eu passei
mais cedo.", como a dizer "Hoje não tenho muito tempo, senão
eu ficaria a tarde toda aqui ao teu lado".
Ela somente olha. Ele continua. "Época brutal! Sabia que os arquivos
estão disponíveis? Fichas de torturados, mutilados, desaparecidos.
Em nome da Segurança Nacional." Ele ousa. "É, imagino",
ela ousa. O visor rubro exibe um 12:22. "Tenho escrito algo sobre a Ditadura",
ele insiste. "É mesmo?", ela resiste. "Pois é.
Preciso ir. Tenho um curso lá na Secretaria de Educação.
O ônibus sai em 3 minutos... A gente se vê.", ele ajeita a
blusa sobre o ombro. "Até mais", ela ecoa. "Beleza?",
ele quer dizer "Sem problemas se eu for embora de novo?", e segue
o túnel até emergir ao lado do ônibus que trêmulo
aquece os motores.
O tempo passa. Um ou outro email. Poemas e contos. Letras das músicas
que poderiam ter ouvido juntos. Ele no cursinho. Ela em outro cursinho. Ele
ainda escrevendo. Ela enviava uns spams. Ele reclamava. Ela dizia não
escrever mais. A vida continuava. "Pois é pra quê?" Ele
até escreveu um poema. Se ela leu ele não sabe. No cursinho (dele),
tinha uma loira, que acabou saindo com um lutador de jiu-jitsu. Tinha
também um rapaz, mas o perfume dele era medonho. Detalhes. Ele decorava
os elementos químicos da tabela periódica. Ou as relações
trigonométricas. Ou as fases da Revolução Francesa. E ela
também. Ele não sabia. Nem ela sabia.
Só descobriram essas decorebas paralelas quando ele chegou correndo para
a prova da 1a etapa do vestibular, nervoso e eufórico, ainda que faltasse
meia hora para o martírio e ela gritou o nome dele numa entonação
que ele se sentiu fisgado, "Oi! Tudo bem?", mas não passou
disso. Fugiu para a fila. E não a encontrou pelos corredores. Quem sabe
na 2a etapa...
Mas ele nem sabia se para ele havia 2a etapa. A prova de matemática destruiu
todas as suas matrizes e determinantes, tornou irracionais todos os seus logaritmos,
embaralhou todas as suas proporções e progressões. Ela
confiava no cursinho. Renovava a esperança e a matrícula. Ele
manifestou a surpresa em emails. Ele não sabia se ela lia... No
dia do resultado, em acesso a internet, quase não acreditou! Desligou
o computador e ligou para a mãe e para ela. Ela atendeu com o nome dele
na mesma entonação do encontro na fila - a incredulidade.
"Nem acreditei! Afundei na prova de matemática! Acho que foi inglês
que me salvou!", ele ousa. Ela vai ouvindo. De repente, ele fala e fala.
Estuda isso e aquilo. Idiomas. Guerras. Política. "Talvez arriscasse
História na Católica", ele revela, "Plano B, sabe?"
Ela vai ouvindo. "É preciso dar sentido a existência",
ele didático. Ela em votos de futuro brilhante, "Você é
esforçado" ou foi "Você tem talento"? Ele queria
mais, "Vamos sair?" Ela até se anima, "Pode ser no domingo."
Ele aproveitou, "Tem algo na programação cultural? Cinema
? Teatro? Estou por fora..." Também só mergulhado em estudos!
Lendo as biografias e os discursos dos grandes líderes! Traduzindo documentos
em cinco idiomas! Pois bem! Nem sabia quais os filmes estavam em cartaz! Nem
se era época dos teatros à preços populares!
Uma semana que afundou na chuva. Ele enviando links de filmes. Ela voltando
a rotina do cursinho. Ele não insistia. Ela escolhia. Só não
queria sair debaixo de chuva. Nada animada a se molhar. Ambos lembrando uma
certa noite de chuva e vento. A noite da separação. Uma sessão
de cinema. Antes uma discussão. Depois uma discussão. Ela se foi.
Ele deixou ela ir.
Domingo. Nenhuma chuva. Nem vento. A Praça e o Palácio. Casais
se beijam meio a decoração de Natal. A mesma que ele antes ironizou.
Agora imaginava-se passeando ali ao lado dela. Os dígitos rubros dizem
18:27. O filme em outro horário. Ele esperaria. Apenas meia hora. Casais
se beijam na fila do cinema. Uma loira oferece pipoca a uma morena. Um menino
de olho no sorvete de uma menina. Apenas vinte minutos. A morena oferece bombom
a loira. A menina exibe o sorvete. O menino quer o sorvete ou a menina? Apenas
quinze minutos. Existem 1,6 milhões de mulheres na metrópole.
Mas ele espera apenas uma. Apenas dez minutos. A loira e a morena se beijam.
Talvez ali atrás sejam dois rapazes que se abraçam. O menino rouba
o sorvete. A menina corre para as saias da mãe, a que vende pipocas.
Apenas cinco minutos. A porta se abre. O porteiro a recolher os bilhetes. Os
casais entram. A loira e a morena, os dois rapazes. Apenas dois minutos. O menino
devolve o sorvete. Só queria uma lambida mesmo. O filme começa.
Ele confere o horário. Afinal, não é o filme o importante.
O motivo. Ela não apareceu. Não ligou. Nada. Ele vai para casa.
carrega um livro. Comprou para ser o presente de fim de ano. Ela não
apareceu. Outras 1,6 milhões de mulheres ao redor - e dela nem sinal.
Ele come uma pizza, sozinho. E compra um panettone de gotas de chocolate.
Deita-se sem se animar a um banho. Terá escovado os dentes? Ou trocado
de roupa?
No dia seguinte, o email. Ela a pedir as respeitosas desculpas. Sem comentários.
Ah, se fosse ele quem não aparecesse! Mas as mulheres são desculpáveis!
Os homens é que são uns canalhas! Uns escrotos!
Sem comentários.
As semanas passam. A vida passa. "Pois é, pra quê?"
Não se encontraram durante os dias das provas específicas. Ele
até olhava. Ele até trocou olhares com uma futura caloura. Ela
viu um apressado cruzar de corredores. Ela enviou um email. Preocupada
com o atraso dele. Ele não respondeu.
A vida realmente não tem sentido.
(25dez/08 a 17jan/09)