SUMÁRIO
O presente conto pretende uma análise sociológica e psicológica, ontológica e antológica do fenômeno "a gótica e a coleira", no contexto da emancipação feminina e seus reflexos e consequências.
SUMMARY
The present tale wants a sociological and psychological, ontological and antological analysis about the phenomenon "The gothic girl and the collar (for animals)", in the context of female emancipation and its reflexs and aftermths.
Na manhã cinzenta de sábado, após a chuva inesperada da
madrugada, num alvorecer brumoso, Nightspirit e Graveflower encontraram-se no
acolhedor dia nublado para uma caminhada tranquila rumo à Praça
da Liberdade. Não que tivessem acabado de se encontrar! Na verdade, passaram
a noite juntos, sob os lençóis, e agora o calor humano é
que provia o aquecimentos básico nessa manhã assim gélida.
Nightspirit (o Nachtgeist ou ainda Roger) esperara pacientemente Graveflower,
enquanto ela se vestia no toalete, a folhear um livro, junto a cabeceira da
cama. "Dicionário de Suicidas Ilustres", de J. Toledo,
Editora Record, especialmente no verbete "Anna Karenina", emocionado
ele, ainda que a tratar-se de uma personagem literária (Mas quantas personagens
literárias não se mostram mais vivas e palpitantes que os seres
humanos de carne e osso ao nosso redor!) Assim, Nightspirit sofria com as traições
de Anna Karenina, que traia seu Karenin com o oficial Vronski, até sua
morte sob as rodas de um trem! Nisso, a bela Graveflower (ou Alice) saiu do
toalete, fechando a bolsa de couro negra e a conferir se nada esquecera.
Trocaram um olhar e ouviu-se um tilintar de correntes. "Estou pronta, meu
bem.", ela disse, e ali ficou, à disposição dele,
ali todo arrumado, pois os homens sempre se aprontam primeiro, e ela nada mais
exigia. "Estou pronta", ela ainda repetiu, e ele se levantou. Em suas
mãos, a origem do tilintar metálico: uma corrente de coleira.
Aproximou-se, cuidadoso a atar o apetrecho no pescoço alvo e delicado
de sua amada.
Uma coleira?!, se espantam os leitores. Realmente, ela, Alice, ou Graveflower
('flor da sepultura', em tradução livre) ali estava à espera
de sua agora inseparável coleira. Presente do Nightspirit, obviamente.
Nas comemorações eróticas de um ano de ardoroso e obsessivo
namoro. Ele, o cimento, não perderia a oportunidade de assim controlar
as torções do globo encefálico de sua amada, quando de
viradas ousadas em olhadelas para outros machos, quiçá, potenciais
rivais!
E assim, o apetrecho enlaçava aquela carne macia, ali desejosa de couro
e tachas, aquelas que penetravam voluptuosamente na pele frágil em dolorosa
carícia! E Alice (ou Graveflower) mal podia esperar o momento de semelhante
posse! (Volúpia semelhante ela somente sentira nas primeiras transas,
numa vida erótica que fora reavivada justamente pela presença
do apetrecho!)
Mas, e diriam as mulheres (liberadas e feministas) que isso é o cúmulo
da humilhação: uma mulher usando coleira! Mas é que o mundo
é vário e variados os desejos: uns enviam flores, outros passam
uma coleira. E Alice jamais reclamava! Ao contrário! Ela agora realmente
se sentia uma mulher! E devia isso ao seu amado Roger (ou Nightspirit) e nada
poderia mudar isso.
Nem mesmo o olhar de sua melhor amiga, nem a desaprovação de seu
melhor amigo (enciumado?), nem nada! Muito menos o olhar do porteiro, quando
alcançaram o térreo, abandonado o elevador. O porteiro que olhava
com insistência indiscreta, assim mordendo os lábios, seguramente
a represar uma crise de riso! Mas o porteiro foi solenemente ignorado e o casal
avançou rumo a luz acizentada das calçadas.
Onde agora estamos, assim indecisos entre uma saudável caminhada de cinco
quarteirões ou um ônibus que vem subindo, lentamente, a avenida
Brasil. Decidiram, em segundos, a opção caminhada. Não
que temessem a opção ônibus, devido a inusitada indumentária
de ambos. Ela com um vestido longo, negro, e um colete de couro, e uma maquilagem
um tanto desleixada, a combinar com os coturnos gastos, e ele com um jeans barra-pesada
e um jaquetão de dois números acima do seu tamanho, o que dava
um ar de sobretudo de filme do "Jack, the Stripper", a realçar
a magreza mórbida do rapaz.
Assim, seguiram, subindo a avenida Brasil, à sombra esmaecida das palmeiras,
olhando um ou outro vulto de edifício, com olhares de desaprovação
e até nojo. É que apreciavam, ali na região, somente a
arquitetura secular do complexo de Secretarias da Praça. Devotavam ódio
mortal ao "Rainha da Sucata", uma literal 'sucata' segundo declaram,
quando raramente se permitiam externar suas profundas opiniões e preferências.
E opiniões e preferências não faltam. Desde que mergulharam
em semelhante paixão (de couro e tachas) nunca se arrependerem. Afina,
o problema não era com eles. O problema eram os outros.
- Não pode mesmo dar muita corda! - dizia um senhor grisalho à
sua possível esposa, ao passaram sob o sinal vermelho.
Realmente, a ideia de Nightspirit (ou Roger) era a de não dar
muita corda a sua amada Graveflower (ou Alice). Se ela girava a cabeça,
ele logo puxava a corda! Mas ela poço se importava! (Ou se importava
muito! Adorando esse controle!) Afinal, o amor não é uma prisão
consentida? Ela não ouvira isso no Lacrimosa? Ou foi naquele álbum
raro do Fields of Nephilim?
Aqueles amores doentios dos filmes do Tim Burton! Aquelas heroínas pálidas
a envenenarem os corações dos homens a se julgarem tão
cheios de si mesmos! E o que ela poderia fazer além de arrepiar-se com
aquela servidão que afinal de tudo era domínio! Domínio
dela sobre ele! Ele se ajoelharia aos pés dela, caso ela insinuasse qualquer
separação!
Assim, Graveflower (ou Alice) nada tinha a perder, exceto a sua servidão.
Pois a corrente dava o limite de sua liberdade. E seguiam muito contentes consigo
mesmos.
- A Geni estava linda! - disse uma voz à distância. Na esquina
dois rapazinhos de boné, camisetas de baseball e bermudões de
skatistas. - E fingiu que nem me viu!
Mas o casal passou direto e Alice (ou Graveflower) percebeu a real identidade
dos dois skatistas. Na verdade, duas adolescentes! E a voz que se esforçava
para ser máscula não ocultava a macieza da voz de mulher.
E as duas lésbicas de súbito congeladas n esquina! Ao se depararem
com semelhante cena: um cara puxando uma menina pela coleira! Inusitado! Só
em boate GLS! Claro que vez ou outra aparecem os sadomasô, mas é
de regra. E elas, as lésbicas, de figurino de skatista, nem eram muito
de frequentar boates. Preferiam cair dos skates ali no átrio
da Biblioteca Estadual, ou dando tapinhas na testa e calvície dos ilustres
escritores mineiros.
Então, o casal viu-se parado. Quem era aberração para quem?
As mocinhas skatistas nem ousavam sorrir. Sérias, interpretavam bem o
papel de rapazinhos brutais. O casal olhou para os lados e desviou-se da buzina.
Uma moto passou à dez centímetros a 80 km por hora. Alguém
gritou um palavrão, o sinal voltou a fechar. As meninas com jeito de
skatistas atravessam. O casal desistiu.
Entram na primeira padaria. Ela quer cigarros. Os dele acabaram. Mas a mocinha
do caixa está boquiaberta. "Vocês são do circo? Se
apresentam ali no sinal?", é o que ela quase dizia, se o gente não
estivesse junto as caixinhas de leite, dois passos à sua direita. "Que
personagens!", limitou-se a pensar, enquanto estendia o maço de
cigarros e esquecia de oferecer o isqueiro.
- Obrigado. - disse Nightspirit, ignorando qualquer outro gesto da atendente.
Seguiam contrariados. Sentiam atrair olhares como um maelstrom atrai
navios, ou um buraco-negro sorve estrelas. Não que fizessem pouco do
'sucesso'. Ambos adoravam aparecer! Se não como explicar os dentes vampíricos
dele e as unhas negras e os vários piercings dela? Assim, conseguiram
ser expulsos de casa. Mesmo que bons alunos do curso de Belas-Artes da UEMG,
ainda que maiores de idade (ele com 25 e ela, 20), nada puderam fazer além
de sair batendo a porta (no caso dela) ou ameaçando o pai (no caso dele),
e aceitaram o peso do destino.
Destino a pesar à sombra pálida das palmeiras, enquanto procuram
um banco disponível, um banco menos submerso pela garoa da manhã,
e em passos lentos, cabisbaixos (toda satisfação já era!)
junto as fontes ainda desligadas, em tedioso sossego, quebrado vez ou outra
por um obeso idoso em esforço de Cooper inútil e mal-feito, agitando
banhas na manhã.
Roger (ou Nightspirit) aponta um banco e se inclina com gestos cavalheirescos,
para que Alice (ou Graveflower) possa se acomodar primeiro. Ela se aproxima,
se inclina e uma vertigem a invade! Acaba de ouvir uma pergunta, gaguejada por
um súbito transeunte:
- Vocês trabalham no teatro? - e logo, mais enturmado - Eu faço
produção de teatro! Inclusive, se quiserem ajudar a minha companhia,
estou vendendo estes cartões... - e exibiu a mão cheia de ursinhos
felpudos, esquilos arteiros, formigas abelhudas, papais-noéis zombeteiros.
O casal recusa, e até desiste de se sentar. "É muita gente
chata no mundo!" Não se enxergam não?", pensa ela. E
"Cada gente estranha!", pensa ele. E se afastam na alameda, realmente
incomodados. "Atração de circo é a mãe!",
pensam ambos. E foi bem a tempo! Logo surgiram vultos: uma equipe com uniformes
e um imenso globo girante nas lapelas, prontos com microfones e uma câmera
indiscreta.
- Ei, vocês! Gostariam de dar uma entrevista?
E como fugir? De repente, resignados, cercados por todos os lados, sem qualquer
lugar para se esconder, ele e ela se olham e aceitam gravar aquela entrevista
para o Fantástico, o "show da vida".
(28/29jan08)