A Garganta da Serpente
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A gótica e a coleira

(Leonardo de Magalhaens)

SUMÁRIO

O presente conto pretende uma análise sociológica e psicológica, ontológica e antológica do fenômeno "a gótica e a coleira", no contexto da emancipação feminina e seus reflexos e consequências.

SUMMARY

The present tale wants a sociological and psychological, ontological and antological analysis about the phenomenon "The gothic girl and the collar (for animals)", in the context of female emancipation and its reflexs and aftermths.

Na manhã cinzenta de sábado, após a chuva inesperada da madrugada, num alvorecer brumoso, Nightspirit e Graveflower encontraram-se no acolhedor dia nublado para uma caminhada tranquila rumo à Praça da Liberdade. Não que tivessem acabado de se encontrar! Na verdade, passaram a noite juntos, sob os lençóis, e agora o calor humano é que provia o aquecimentos básico nessa manhã assim gélida.

Nightspirit (o Nachtgeist ou ainda Roger) esperara pacientemente Graveflower, enquanto ela se vestia no toalete, a folhear um livro, junto a cabeceira da cama. "Dicionário de Suicidas Ilustres", de J. Toledo, Editora Record, especialmente no verbete "Anna Karenina", emocionado ele, ainda que a tratar-se de uma personagem literária (Mas quantas personagens literárias não se mostram mais vivas e palpitantes que os seres humanos de carne e osso ao nosso redor!) Assim, Nightspirit sofria com as traições de Anna Karenina, que traia seu Karenin com o oficial Vronski, até sua morte sob as rodas de um trem! Nisso, a bela Graveflower (ou Alice) saiu do toalete, fechando a bolsa de couro negra e a conferir se nada esquecera.

Trocaram um olhar e ouviu-se um tilintar de correntes. "Estou pronta, meu bem.", ela disse, e ali ficou, à disposição dele, ali todo arrumado, pois os homens sempre se aprontam primeiro, e ela nada mais exigia. "Estou pronta", ela ainda repetiu, e ele se levantou. Em suas mãos, a origem do tilintar metálico: uma corrente de coleira. Aproximou-se, cuidadoso a atar o apetrecho no pescoço alvo e delicado de sua amada.

Uma coleira?!, se espantam os leitores. Realmente, ela, Alice, ou Graveflower ('flor da sepultura', em tradução livre) ali estava à espera de sua agora inseparável coleira. Presente do Nightspirit, obviamente. Nas comemorações eróticas de um ano de ardoroso e obsessivo namoro. Ele, o cimento, não perderia a oportunidade de assim controlar as torções do globo encefálico de sua amada, quando de viradas ousadas em olhadelas para outros machos, quiçá, potenciais rivais!

E assim, o apetrecho enlaçava aquela carne macia, ali desejosa de couro e tachas, aquelas que penetravam voluptuosamente na pele frágil em dolorosa carícia! E Alice (ou Graveflower) mal podia esperar o momento de semelhante posse! (Volúpia semelhante ela somente sentira nas primeiras transas, numa vida erótica que fora reavivada justamente pela presença do apetrecho!)

Mas, e diriam as mulheres (liberadas e feministas) que isso é o cúmulo da humilhação: uma mulher usando coleira! Mas é que o mundo é vário e variados os desejos: uns enviam flores, outros passam uma coleira. E Alice jamais reclamava! Ao contrário! Ela agora realmente se sentia uma mulher! E devia isso ao seu amado Roger (ou Nightspirit) e nada poderia mudar isso.

Nem mesmo o olhar de sua melhor amiga, nem a desaprovação de seu melhor amigo (enciumado?), nem nada! Muito menos o olhar do porteiro, quando alcançaram o térreo, abandonado o elevador. O porteiro que olhava com insistência indiscreta, assim mordendo os lábios, seguramente a represar uma crise de riso! Mas o porteiro foi solenemente ignorado e o casal avançou rumo a luz acizentada das calçadas.

Onde agora estamos, assim indecisos entre uma saudável caminhada de cinco quarteirões ou um ônibus que vem subindo, lentamente, a avenida Brasil. Decidiram, em segundos, a opção caminhada. Não que temessem a opção ônibus, devido a inusitada indumentária de ambos. Ela com um vestido longo, negro, e um colete de couro, e uma maquilagem um tanto desleixada, a combinar com os coturnos gastos, e ele com um jeans barra-pesada e um jaquetão de dois números acima do seu tamanho, o que dava um ar de sobretudo de filme do "Jack, the Stripper", a realçar a magreza mórbida do rapaz.

Assim, seguiram, subindo a avenida Brasil, à sombra esmaecida das palmeiras, olhando um ou outro vulto de edifício, com olhares de desaprovação e até nojo. É que apreciavam, ali na região, somente a arquitetura secular do complexo de Secretarias da Praça. Devotavam ódio mortal ao "Rainha da Sucata", uma literal 'sucata' segundo declaram, quando raramente se permitiam externar suas profundas opiniões e preferências.

E opiniões e preferências não faltam. Desde que mergulharam em semelhante paixão (de couro e tachas) nunca se arrependerem. Afina, o problema não era com eles. O problema eram os outros.

- Não pode mesmo dar muita corda! - dizia um senhor grisalho à sua possível esposa, ao passaram sob o sinal vermelho.

Realmente, a ideia de Nightspirit (ou Roger) era a de não dar muita corda a sua amada Graveflower (ou Alice). Se ela girava a cabeça, ele logo puxava a corda! Mas ela poço se importava! (Ou se importava muito! Adorando esse controle!) Afinal, o amor não é uma prisão consentida? Ela não ouvira isso no Lacrimosa? Ou foi naquele álbum raro do Fields of Nephilim?

Aqueles amores doentios dos filmes do Tim Burton! Aquelas heroínas pálidas a envenenarem os corações dos homens a se julgarem tão cheios de si mesmos! E o que ela poderia fazer além de arrepiar-se com aquela servidão que afinal de tudo era domínio! Domínio dela sobre ele! Ele se ajoelharia aos pés dela, caso ela insinuasse qualquer separação!

Assim, Graveflower (ou Alice) nada tinha a perder, exceto a sua servidão. Pois a corrente dava o limite de sua liberdade. E seguiam muito contentes consigo mesmos.

- A Geni estava linda! - disse uma voz à distância. Na esquina dois rapazinhos de boné, camisetas de baseball e bermudões de skatistas. - E fingiu que nem me viu!

Mas o casal passou direto e Alice (ou Graveflower) percebeu a real identidade dos dois skatistas. Na verdade, duas adolescentes! E a voz que se esforçava para ser máscula não ocultava a macieza da voz de mulher.

E as duas lésbicas de súbito congeladas n esquina! Ao se depararem com semelhante cena: um cara puxando uma menina pela coleira! Inusitado! Só em boate GLS! Claro que vez ou outra aparecem os sadomasô, mas é de regra. E elas, as lésbicas, de figurino de skatista, nem eram muito de frequentar boates. Preferiam cair dos skates ali no átrio da Biblioteca Estadual, ou dando tapinhas na testa e calvície dos ilustres escritores mineiros.

Então, o casal viu-se parado. Quem era aberração para quem? As mocinhas skatistas nem ousavam sorrir. Sérias, interpretavam bem o papel de rapazinhos brutais. O casal olhou para os lados e desviou-se da buzina. Uma moto passou à dez centímetros a 80 km por hora. Alguém gritou um palavrão, o sinal voltou a fechar. As meninas com jeito de skatistas atravessam. O casal desistiu.

Entram na primeira padaria. Ela quer cigarros. Os dele acabaram. Mas a mocinha do caixa está boquiaberta. "Vocês são do circo? Se apresentam ali no sinal?", é o que ela quase dizia, se o gente não estivesse junto as caixinhas de leite, dois passos à sua direita. "Que personagens!", limitou-se a pensar, enquanto estendia o maço de cigarros e esquecia de oferecer o isqueiro.

- Obrigado. - disse Nightspirit, ignorando qualquer outro gesto da atendente.

Seguiam contrariados. Sentiam atrair olhares como um maelstrom atrai navios, ou um buraco-negro sorve estrelas. Não que fizessem pouco do 'sucesso'. Ambos adoravam aparecer! Se não como explicar os dentes vampíricos dele e as unhas negras e os vários piercings dela? Assim, conseguiram ser expulsos de casa. Mesmo que bons alunos do curso de Belas-Artes da UEMG, ainda que maiores de idade (ele com 25 e ela, 20), nada puderam fazer além de sair batendo a porta (no caso dela) ou ameaçando o pai (no caso dele), e aceitaram o peso do destino.

Destino a pesar à sombra pálida das palmeiras, enquanto procuram um banco disponível, um banco menos submerso pela garoa da manhã, e em passos lentos, cabisbaixos (toda satisfação já era!) junto as fontes ainda desligadas, em tedioso sossego, quebrado vez ou outra por um obeso idoso em esforço de Cooper inútil e mal-feito, agitando banhas na manhã.

Roger (ou Nightspirit) aponta um banco e se inclina com gestos cavalheirescos, para que Alice (ou Graveflower) possa se acomodar primeiro. Ela se aproxima, se inclina e uma vertigem a invade! Acaba de ouvir uma pergunta, gaguejada por um súbito transeunte:

- Vocês trabalham no teatro? - e logo, mais enturmado - Eu faço produção de teatro! Inclusive, se quiserem ajudar a minha companhia, estou vendendo estes cartões... - e exibiu a mão cheia de ursinhos felpudos, esquilos arteiros, formigas abelhudas, papais-noéis zombeteiros.

O casal recusa, e até desiste de se sentar. "É muita gente chata no mundo!" Não se enxergam não?", pensa ela. E "Cada gente estranha!", pensa ele. E se afastam na alameda, realmente incomodados. "Atração de circo é a mãe!", pensam ambos. E foi bem a tempo! Logo surgiram vultos: uma equipe com uniformes e um imenso globo girante nas lapelas, prontos com microfones e uma câmera indiscreta.

- Ei, vocês! Gostariam de dar uma entrevista?

E como fugir? De repente, resignados, cercados por todos os lados, sem qualquer lugar para se esconder, ele e ela se olham e aceitam gravar aquela entrevista para o Fantástico, o "show da vida".

(28/29jan08)

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