A Garganta da Serpente
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Tuquinha e a Lenda da Igreja das Dores

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

(baseado em: A Lenda da Igreja das Dores, de Dante de Laytano)

O gaudério tinha ido para Porto Alegre, junto com a chinoca que, volta e meia, sentia necessidade de tomar um banho de civilização. Deixar um pouco a vida no campo que fora buena antes, quando havia ainda enlevo e, como ela mesma dizia, "abrir as janelas da casa e deixar entrar ar novo para tirar o mofo".

Para ele, era bueno. Não que ela abrisse as janelas. Isso não. Era bueno estar na capital porque, amante que se havia tornado dos livros, tinha muitas opções de satisfazer sua curiosidade e de alumiar suas ideias. Inda mais, que a casa da madame ficava logo ali, pertinho da Biblioteca Pública do Estado e para ele, nem a subida da lomba da Espírito Santo, metia medo ou fazia-lhe minguar o desejo de imiscuir-se naquele santuário da literatura. Chegava a Casa e ia direto ao pavimento superior, que era onde se guardavam os tesouros gaúchos e, à vontade como pulga em costura, se esparramava junto da cupinzama, entre o livredo, e lia. Lia que se esbaldava.

Como andava a cismar com as lendas, não havia livro que bastasse e, à medida que ia folhando um, outro já ia pedindo aos atendentes que, solícitos, troteavam na sua volta, trazendo obras e mais obras.

Os dias se sucederam nesse deleite literário e um fim de tarde, avisando-o a prenda que tinha compromisso para a janta, com um velho amigo de São Leopoldo, que iria encontrar no restaurante do Hotel Plaza, para tratar de negócios permanentemente inacabados, solito, achou que era hora de dar um bordejo pelo Povo Grande e foi arrodear as chilenas, na Rua da Praia, que tinha de tudo. Ou quase. Praia que era bem bueno, só no apelido.

Andou para cima, andou para baixo, sempre arrastado pela multidão apressada que deixava o serviço. Na esteira dos caminhantes, foi até o mercado público. Tomou umas que outras junto aos pinguços que frequentavam o local, alguns bem importantes no cenário político estadual, outros que nem tanto e quando já ia adiantada a noite, pagou a rodada final, disse adeus aos amigos novos, que àquela hora tardia já eram antigos conhecidos e tomou o rumo, via Borges de Medeiros, para as casas.

Chegou passado da meia-noite. Subiu pela escada, uma vez que tinha um certo receio de andar de elevador e, descalçando as rossilhonas para não acordar a prenda que tinha sono leviano, entrou em casa pisando em plumas.

Para sua surpresa a moça não tinha ainda voltado. Talvez que a conversa se tivesse estendido ou o tal negócio se esticado além da conta e então, para não ficar preso entre quatro paredes sem ter com quem charlar, voltou a calçar as botas, enfiou o trinta na guaiaca que trazia à cintura, porque vira muita gente mal-encarada sob o viaduto e ganhou a rua de novo. Agora, ao invés de vagar à toa, ia com destino certo: Queria ver a Igreja das Dores, sobre a qual andara lendo uma história muy bem escrita pela pena do famoso Dante de Laytano.

Chegando, escorou-se no gradil que protegia a entrada, antes da escadaria e ficou a apreciar a arquitetura que diziam os papiros que lera, ser barroca, fosse lá o que isso significasse.

Entretido, enrolou com calma um palheiro e acendeu-o, tirando a primeira baforada quando se deu conta de que tinha companhia.

Havia parado, ao lado dele, para contemplar também a Igreja, um índio preto e possante, com ares de operário da construção, uma vez que, de dentro da sacola que carregava, via o gaudério apontando o cabo de uma colher de pedreiro e a tampa de uma garrafa térmica.

- Boa-noite! - saudou-o o gaúcho.

- Boa-noite, seu moço! - respondeu o homem.

Alguns minutos se passaram sem que voltassem a falar e por fim,

perguntou-lhe o estranho:

- O moço não é daqui?

- Não senhor... - respondeu o Tuquinha - Sou do Basílio...

- Nunca ouvi falar...

- Fica na Zona Sul... Perto do Herval... - explicou.

- Sei... E o que faz aqui a esta hora?

- Vim dar uma olhada na Igreja... É linda, não?

- Se é... - concordou o operário - Ajudei a construí-la... - logo

acrescentou, orgulhoso.

- Verdade? - perguntou o gaudério, maravilhado por encontrar

alguém que trabalhara naquela obra. E depois, dando-se conta de que a Igreja tinha centos de anos, perguntou: - Mas o início da obra não data de 1807?...

- Isso... Isso mesmo. - concordou o homem, fazendo as contas nos

dedos, para certificar-se da exatidão das datas.

- Devia ser duro trabalhar naquela época, não?...

- Se era, seu moço... Tinha-se de fazer tudo à mão...

- Eu sei... Lá na fazenda é mais ou menos assim. - concordou o

gaúcho, que bem sabia como as coisas eram difíceis.

- Mas era um tempo bom... Havia trabalho à farta.

- Isso também é verdade - voltou a concordar o capataz - que

ficara assombrado com o nível de desemprego que vira na capital.

- Por sorte não trabalho mais... - disse o homem.

- Está aposentado? - perguntou-lhe, para esticar a conversa.

- Mais ou menos...

- Mas então não entendo... Se está aposentado, por quê anda com a sacola de ferramentas? - perguntou, apontando-a.

- Força do hábito, talvez. - respondeu o estranho. E logo: - O senhor também trabalha no ramo?

- Não... Já trabalhei...

- Fazendo igrejas também?

- Não. Estradas de piche?

- De piche? - surpreendeu-se, por sua vez, o desconhecido - Nem sabia que se usava...

- Usa-se sim... Dizem que é para durar mais...

- E dura?

- Não dura nada... Estão todas que é uma bosta! Nas que não estão, o vivente é assaltado a cada dez léguas...

- Mentira!?... - exclamou o homem, horrorizado, querendo,

como era feito muy naturalmente no Rio Grande, dizer exatamente o contrário.

- Verdade! - confirmou o gaudério.

- Mas e a milícia não faz nada? - perguntou o negro, abismado.

- Nada! Pelo contrário, ajuda a assaltar.

- Isso não pode ser... E o Imperador?

- Imperador? - perguntou agora o Tuquinha, perplexo.

- Sim, o Dom Pedro?

Com aquela, o gaúcho só não caiu do cavalo porque o Malacara

ficara lá no Basílio. Já vira muita gente buena achar que quem governava o Brasil ainda era o doutor Getúlio mas, o Imperador, era a primeira vez.

Como viera a pouco do balcão de um bolicho lá no Mercado, achou que o estranho também pudesse ter passado por lá e, pelo sim, pelo não, perguntou:

- O amigo bebe?

- Só água da bica e café...

- Sofre de algum mal na cachola? - insistiu.

- Não... Nada que eu saiba...

- Amnésia, quem sabe?

- Ami-quê? - atrapalhou-se o desconhecido.

O gaúcho, lembrando que a prenda uma vez lhe falara da tal de

amnésia, para falar a verdade, a alcoólica, explicou, com ares doutorais:

- Amnésia... Um troço que dá nos miolos e que faz o vivente esquecer das coisas... Principalmente das que não quer lembrar.

- Não tenho, não... - apressou-se a dizer o homem.

- Então não sei... - murmurou o Tuquinha, que não sabia mesmo o

que se estava passando.

- Não sabe o quê? - perguntou o negro, meio desconfiado.

- Não sei como o senhor pode achar que quem manda na terra ainda é o Imperador?

- Mas não é?... Antes de pender da corda ainda recorri a ele...

- Pare aí um pouquinho! - pediu o gaúcho, para ter tempo de organizar as ideias - Pediu o quê?

- Pedi que me fosse comutada a pena, uma vez que era... Que era, não, que sou inocente. - explicou o homem.

- Pena?... De que pena o amigo está falando?

- Do patíbulo! Do que mais seria? - estranhou o negro.

- A la pucha, tchê! - exclamou o chirú, batendo com a mão na testa ao dar-se conta da situação - Então o senhor é o...? O...

- O João Pedreiro! Quem o senhor estava achando que eu era?

- Não sei... Talvez alguém cuja mulher estivesse jantando com algum amigo também... - tentou explicar-se o gaúcho, dizendo o

que primeiro lhe veio a cabeça e que, por sinal, muito o estava aborrecendo.

- Não, sou o João, trabalhador nas obras desta igreja e que foi acusado, sentenciado e enforcado por um crime que não cometeu!

- Mas não é possível!... - exclamou o gaúcho, que não acreditava

ainda em tamanha coincidência.

- Sou eu sim!... Pergunte a qualquer um. - garantiu o homem.

- Não... Não é isso... É que ainda hoje andei lendo sobre o senhor... - explicou melhor o gaudério ainda não desfeito do

abismo em que se encontrava.

- Lendo? Sobre a minha pessoa?

- Sim... Na biblioteca pública...

- Só se for nalgum jornal safado que tenha noticiado a minha pena!

- Não... Não foi. Foi a história da Lenda da Igreja de Nossa

Senhora das Dores... - informou o Tuquinha, louco para desfazer qualquer mal entendido.

- Mas eu não conheço lenda nenhuma... - disse o trabalhador.

- É que no seu tempo não havia... Só começou depois da sua... Da sua... - e aí o gaudério empacou, pois talvez o homem não

tivesse ciência do acontecido a si próprio.

- O senhor está querendo dizer depois que me enforcaram?

- Isso mesmo! - exclamou o gaúcho, aliviado por não ter de ser

ele a dar a notícia.

- Era só o que faltava... Lenda, é?

- É verdade... Uma lenda muito bonita, por sinal... - concordou o

capataz, satisfeito porque seria provavelmente ele quem a contaria ao protagonista da história.

- E eu posso pedi-lhe que a conte para mim? - perguntou o negro.

O Tuquinha, que estava com a história fresquinha ainda na cachola,

sentiu que a noite não estava de todo perdida. Para a patroa, que estava tratando de negócios de priscas eras, com certeza não estava. Para ele, sabia agora que não. E começou:

- Foi assim... No tempo em que se amarravam cachorros com chouriço, as gentes de bem, que sempre fizera cagadas, assim como as demais, tinham medo de não entrar no paraíso... Mas para elas, sendo abastadas, sempre havia solução...

- O senhor está dizendo que rico sempre entra no céu? - perguntou

o negro, que não entendera bem o preâmbulo da história.

- Mais ou menos isso... Naquela época... Isto é, na sua, corria frouxa ainda a indulgência...

O protagonista voltou a interromper:

- Indulgência? Que diabo vem a ser isso?

- Bueno, falando por riba, indulgência era um tipo de salvo-conduto que se comprava à igreja e que permitia aos pecadores a redenção ante as portas do céu, de forma que, para eles, sempre estivessem abertas...

- O pobre então estava fodido? - perguntou o negro.

- De certa forma sim... Na verdade, sempre esteve ou por uma razão ou por outra - filosofou o gaúcho - Mas isso não vem ao caso. O que interessa é que os pecadores faziam grossas doações à igreja, como forma de se redimirem dos pecados... Verdade é, que muitas vezes, segundo consta, doavam à luz do dia... E buscavam de volta na calada da noite, sob o beneplácito dos padres, que deviam ficar com parte...

- E onde eu entro nessa história? - quis saber o vivente, curioso.

- A igreja estava em obras... Necessárias eram as doações de materiais de construção... E de prata, para pagar os operários que eram autônomos alguns e não escravos que os senhores acabavam emprestando à obra...

- Estou ouvindo... - disse o homem.

- Certa feita, uma doação em espécie acabou desaparecendo da sacristia... Naturalmente que o vigário abriu em gritedo... Afinal, roubando da Igreja se estava roubando de Deus... E isso era mais que crime, era um sacrilégio...

- Dessa parte eu lembro. - corroborou o negro.

- A igreja, embora em obras, mantinha as portas abertas, o que facilitava as coisas, ou melhor, neste caso, dificultava, porque qualquer um podia ter sido o surrupiador...

- Então? - perguntou o homem, ao qual o gaudério já estava

achando que realmente tinha algum probleminha de memória.

- Então que como sempre acontece, a bosta, obedecendo à lei da gravidade, escorreu para baixo... O vigário acusou o sacristão... O sacristão, ao mestre de obras... O mestre, aos peões avulsos... E estes, naturalmente, aos escravos que estavam lá naquele dia... Aos escravos, não, ao escravo único, que era o amigo...

- Foi isso mesmo... - lembrou o negro - Foi isso mesmo...

- Então o senhor foi preso... Como era inocente, foi torturado, que é uma maneira muy inteligente que a nossa polícia ainda tem, de arrancar confissões... Mas o amigo, era valente... E inocente... Nem na base do tabefe confessou o que não fizera...

- Isso mesmo... Eu era inocente...

- Então, porque o causo tinha de ter um desfecho, tomaram o seu mutismo por confissão e lhe recomendaram uma gravata de sisal que, diga-se de passagem, lhe foi apertada no pescoço sem demora porque o culpado, todo mundo sabia quem era mas não podia dizer...

- Aí me fui ao palanque... Isso eu sei, mas e a lenda, de onde surgiu?

- A lenda, na verdade, começou a formar-se depois, por haver o senhor gritado, na hora da morte, que era inocente e que se vingaria...

- É verdade... Agora que o senhor falou, eu lembro bem disso...

- As coisas começaram a não dar certo... Virava e mexia e um pedaço da Igreja desabava, sem aviso e sem explicação... Parecia cousa do outro mundo...

- E então? - quis saber o negro.

- Então que logo o povo se pôs a falar... Que era obra sua aquela sucessão de desastres... Que a Igreja estava amaldiçoada e que nunca ficaria pronta...

- E demorou, não?

- Se demorou, meu amigo... Se demorou... - concordou o narrador.

- E o resto? Ficou o dito pelo não dito? - quis saber o acusado.

- Não... O tempo passou... O larápio, às portas da morte, sabendo que não haveria ouro que comprasse a sua entrada no reino celeste, durante a extrema unção acabou dando com a língua nos dentes... Não por decência... Por cagaço...

- E então eu fui finalmente inocentado? - quis saber o escravo.

- Foste! Foste sim. Por sinal, o Imperador aboliu a pena de morte, depois de tamanha burrada da polícia e da justiça...

- Isso quer dizer que eu não preciso mais ficar vagando a esmo? -

voltou a perguntar o homem, de quem o Tuquinha havia, com a história, retirado um peso de sobre os ombros e cortado, finalmente as cadeias que o prendiam a terra.

- É claro que não, amigo...

- E o senhor acha que eu entrarei no céu, depois de todos estes anos? - perguntou, temeroso.

- Tenho certeza plena... Vade in pace!...

- Então acho que vou tomar o rumo e descansar, finalmente.

Dito isso, o negro abraçou o gaúcho, bem apertado, como quem

abraça alguém que lhe safou de um grande entrevero e desapareceu no meio da noite.

No chão, junto da grade, ficou a sacola das ferramentas que ele não necessitaria mais.

O Tuquinha, orgulhoso de haver encaminhado uma alma para o paraíso, desta vez por bem, voltou para casa, onde encontrou a chinoca, esparramada no meio da cama, dormindo a sono solto e sorrindo... Sorrindo com ares de quem encontrara ninho de égua... Ou trevo de quatro folhas...

Então, trocando de roupa para finalmente deitar-se, pensou lá com seus botões que talvez, na manhã seguinte, fosse conveniente que ela atravessasse a rua, até a Cúria Metropolitana, para doar uns cobres à Igreja e garantir também a sua indulgência.

(Porto Alegre, 02/jun/2003)

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