A Garganta da Serpente
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Nona charla:
Os dois Burros

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Monsieur foi o primeiro a assentar-se para a nona charla. Na verdade, passara a tarde toda à mesa da cozinha, rabiscando nos seus papéis, ou andando, de um lado para o outro, com as mãos às costas, falando sozinho e arrastando, pelo chão, o seu vasto chambre de cetim laranja. Vez por outra tinha, ao que parecia, algum alumbramento e corria para a mesa para apontá-lo, antes que esquecesse.

A viúva passara a tarde inteira à sua volta, solícita e oferecida, trazendo chazinhos e cafezinhos que o autor, distraído, mal tocava. Ou tocava, dando um golezinho, para não fazer desfeita e deixava esfriar, abandonado.

Amiúde, quando deixava as ideias campear, enrubescia, com alguma ideia mais atrevida para a história que estava compondo e a dama, percebendo e achando que podia ser alguma coisa que monsieur estivesse a imaginar fazer com ela, se aproximava curiosa e pedia:

- Deixe-me ver, mon bijou?...

Ele negava, obstruindo-lhe a possibilidade, ora virando os escritos para baixo, ora puxando-os para fora do seu raio de visão, até que ela, com ar maroto e resignado, se afastava e ele podia, então, retomar as lides.

O gaudério, agora mais tranquilo, pois sabia que seria mais fácil monsieur La Fontaine ser comido pela mulher do que o oposto, fora para o campo, a cavalo, no Malacara, acompanhado pelo grego a quem o deputado, gentilmente emprestara a sua montaria favorita: a égua Marta Rocha.

Verdade também é que deixara o Derneval, de plantão, na varanda da casa, debulhando milho, para que a pouco casta esposa não se sentisse muito à vontade e não arriasse os panos com facilidade.

Assim, quando caiu a noite, insignes viajantes e insignes ficantes, voltaram a reunir-se.

- E então, senhor La Fontaine? - perguntou o chirú.

O francês encabulou um pouquinho e tirou os papéis do bolso do jaquetão, colocando-os sobre a mesa e explicando:

- Infelizmente não pude concluir a nova história...

- Que pena, mon petit... - exclamou a dama, insinuante.

O gaúcho foi gentil ao extremo, dizendo:

- Não tem importância, meu senhor... O senhor é autor de miles de fábulas e de certo que não lhe faltará alguma na lembrança...

O fabulista voltou a corar e justificou-se:

- Não fosse a perereca estar o dia todo a me esfregar o rabo na cara, estaria pronta...

O capataz fuzilou a mulher, que baixou o olhar, culpada.

Esopo sugeriu, salvando a noite:

- Conte a dos dois burrinhos, colega...

La Fontaine voltou a iluminar-se e, tendo o gaudério feito as devidas anotações na folha da ata, iniciou:

- Dois burros, carregados, chegaram à margem de um rio...

Aí a viúva, que não tinha vergonha na cara, interrompeu:

- Que horror fazer os pobres animaizinhos andarem abarrotados de carga!...

O marido amenizou:

- É somente uma história, minha querida...

- É... Pode ser, mas eu queria ver se a Dona Palmira tivesse morado lá na França, se contariam histórias desse tipo!

Monsieur, que nunca havia ouvido falar nessa tal de Dona Palmira, deu de ombros e prosseguiu:

- À beira da água empacaram, pois não sabiam da sua profundidade...

- Não conte histórias de afogamentos porque eu ainda estou traumatizada! - pediu a viúva.

O francês olhou para o capataz, que agora, por hábil troca, estava ao seu lado e, ante o gesto de "não lhe dê bola", continuou:

- "Como faremos para cruzá-lo a vau?" - perguntou um dos animais. Ao que o outro, que era mais despachado e que trazia às costas dois volumosos fardos de açúcar, respondeu: "Você fica aqui, observando, que eu tomo a dianteira, a nado..."

- Só podia ser coisa desses donos de engenho lá do norte... - indignou-se a moça, completando: - Não bastasse explorar os operários, até aos pobres animaizinhos exploram!...

Monsieur simulou um bocejo de desagrado e seguiu adiante:

- Isso dito, atirou-se à água, onde os fardos de açúcar se dissolveram e nadando, chegou ileso ao outro lado...

- É, mas o meu ex-amor não estava carregando açúcar nenhum e afogou-se!... - insistiu a moça, na tragédia.

O gaudério, aguilhoado, observou, mordaz:

- Pode-se dizer que deu com os burros n'água, não é, querida?

A moça ofendeu-se e foi à forra:

- Com os burros n'água se fosse tu, que és um estupor... Ele era muito culto, inteligente e boniiiito...

O capataz abespinhou-se de vez, porque sempre que ela dizia que alguém era boniiiito, fazendo biquinho e esticando os "is", queria dizer muito mais...

La Fontaine, que estava cambiando de amor, não deu atenção à ela e prosseguiu:

- Chegando na outra margem, são e salvo, gritou ao companheiro: "Vês como foi fácil?..." e o colega, que estava com um carregamento de esponjas, atirou-se também à água, mas estas se encharcaram e ele foi tragado e afogou-se...

- Igualzinho ao finado!... - soluçou a mulherzinha.

O gaúcho sacudiu a cabeça, chateado e o francês, solidário, colocou a mão na sua coxa, logo ali abaixo do... Do... É, dele mesmo!

Amigos, amigos, frescuras à parte, o gaudério pegou aquela mãozinha branca e magra e devolveu à perna do dono, dizendo:

- Chega pra lá, Colombina!

- E terminou a história?... - perguntou a zinha, enxugando os olhos ainda lacrimejantes, na ponta do manto de Esopo.

- Terminou... - confirmou o narrador.

- O senhor La Fontaine esqueceu de contar um pequeno detalhe... -

observou o capataz, com jeito, para não ferir suscetibilidades.

Todos se abismaram, inclusive o autor e perguntaram, em uníssono:

- Qual?...

- Do início da história, quando o burro que carregava o fardo de esponjas vinha agastando o companheiro, que vinha vergado ao peso do açúcar...

- É verdade! - exclamou monsieur, justificando: É que eu estou muito excitado hoje, mon ami...

O gaudério, pelo sim, pelo não, chegou-se um pouquinho mais para longe dele e perguntou aos outros ouvintes:

- Não é foi uma bela história?...

A viúva suspirou, lembrando do cadáver do afogado, em tempos que não era ainda cadáver e só se afogava entre as suas pernas...

Esopo sacudiu a cabeça e concordou, aos arrancos:

- Mu.... Mu... Muito boa!...

La Fontaine fez uma mesura de agradecimento, como se fosse um maestro e ofereceu a narrativa em homenagem ao gaúcho, como sói fazerem les grand virtuoses.

O capataz agradeceu àquela frescura toda e perguntou à viúva, que estava muito pensativa:

- Pensando na moral da história, querida?

- Não, Lindinho!... Não exatamente... Por sinal, qual é ela?

- Há muitas... - respondeu o homem - Uma delas, que é muito difundida por aqui é que reza e cautela, não fazem mal à ninguém...

A moça objetou:

- Tu sabes que eu sou à-toa, não rezo nunca...

- Ateia, minha querida!...

- Isso... - disse ela e aí, com um risinho, acrescentou: - E à-toa também, não é, Lindinho?...

O gaúcho, que era gentil, preferiu não responder, para não ter que mentir e perguntou, ao senhor La Fontaine:

- Então é verdade que o senhor está escrevendo uma fábula atual?

O francês corou de emoção e respondeu:

- Estou sim... - e acrescentou: - É dedicada ao amigo...

- Ao senhor Esopo?

- Não!... - corrigiu o fabulista, ao equivoco - Ao senhor!

O chirú velho emocionou-se e perguntou:

- Eu posso incluí-la em um livreco que ando escrevendo?...

La Fontaine ia dizer que sim, mas foi interrompido pela matraca:

- O Lindinho agora deu para pensar que é gente grande e não sai da frente do almaço!...

- Mas isso é muito bom, madame! - observou o francês.

- Monsieur pode imaginar a pantorra? - insistiu ela em humilhar o marido, coisa que, por sinal, fazia amiúde.

O gaudério baixou a cabeça, ofendido no fundo da alma e ela prosseguiu, espezinhando e tripudiando:

- Se pelo menos escrevesse alguma coisa que prestasse... Ou se fosse inteligente...

- Tenho certeza que monsieur Tuquinha há de sair-se muito bem! -

defendeu-o o escritor francês, ao que o grego, acrescentou:

- Como diriam os romanos, o importante é que não haja nulla dies sine línea...

Madame, que conhecia um pouco de latim, ou por haver ouvido nos tribunais ou por haver algum douto amante balbuciado durante o sono, replicou:

- Mas o Lindinho não passa de um sine nomine vulgus!...

O francês, que estava ficando caidinho, quis impressionar ao gaúcho e replicou, também na língua mater:

- Amicus, macte animo! Sic itur ad astra...

A viúva achou que seria difícil combater aos dois sábios, pelo menos com as armas de que dispunha e que estava acostumada a utilizar e para as quais, nem um nem outro, estava nem aí e, entregando os pontos, levantou-se e saiu rabiosa, batendo as tamancas, em direção do quarto.

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

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