Na segunda noite, após o jantar, prepararam-se os viajantes e os donos
da casa para a segunda sessão de palestras a respeito das fábulas,
que haviam aqueles, escrito a miles de tempos e que, até os dias de hoje,
encantavam a todas as gerações do mundo inteiro, que as sabiam
de cor e salteado.
Como na noite anterior fora a vez de La Fontaine narrar uma das suas criações,
nesta seria a de Esopo que, sem mais delongas, exceto a provocada pela gagueira,
iniciou:
- V... Vo... Vou contar-lhes a fábula do fazendeiro e dos filhos...
- E será em versinhos, assim como a de monsieur La Fontaine?... -
quis saber a viúva, lançando um olhar de mormaço para o
francês que, com a ajuda de um pequeno espelho de moldura dourada, retocava
o pó-de-arroz.
- N... Nã... Não, senhora... - respondeu o grego, educadamente.
- Que pena!... - exclamou a moça - Foi tão lindinha!...
O grego prosseguiu:
- U... U... Um fazendeiro, estando às portas da morte, chamou os filhos
ao pé do leito, para contar-lhes um segredo: "Meus filhos, estou
morrendo e quero dizer-lhes que em nossa propriedade há um tesouro escondido...
Se vocês cavarem, hão de encontrá-lo."
E assim, logo que o pai morreu, os filhos pegaram pás e ancinhos e
reviraram o terreno de todo o jeito a procura do tesouro. Não acharam
nada, mas a terra, trabalhada, produziu uma colheita nunca vista...
La Fontaine, à conclusão da história, fez um muxoxo de
tédio.
- E isso é tudo? - perguntou a moça, que esperava mais.
- S... Si.. Sim... - confirmou Esopo - É... É... Esta é
toda a história...
- Que significa, - disse o gaúcho - que é o trabalho, o verdadeiro
tesouro, não é?
O autor concordou que era, ao que La Fontaine discordou:
- Mas esta é uma história boba... Onde se viu alguém revirar
a terra e ela produzir sem que lhe hajam deitado as sementes?
- É... É... É uma história simbólica... -
defendeu-se Esopo.
- Mas monsieur tem razão, - aparteou a donzela - as coisas não
estão muito bem explicadas... Além disso, já vimos esse
tema na história de ontem e ficou provado que o trabalho nem sempre é
o melhor remédio...
- Mas não podemos olvidar que esta história foi criada seis ou
sete séculos antes de Cristo, - voltou a interferir o capataz, continuando:
- quando as coisas eram diferentes... Além disso, não aconteceu
no Brasil, onde acredito, realmente não teriam tido, as palavras do moribundo,
o efeito desejado...
A moça, que na presença de terceiros gostava de desfazer do marido,
corrigiu-o, com ares de muito sabida:
- Lindinho, quando falamos nos séculos antes de Cristo, devemos primeiro
empregar os maiores e depois os menores...
- Como assim? - perguntou o gaudério.
- Deve-se dizer sete ou seis séculos antes de Cristo, que é para
ficar devidamente ordenado, uma vez que o período referido fica entre
os séculos sétimo e sexto e não entre o sexto e o sétimo...
- Ué, mas não é a mesma coisa?... Não é parecido?
- Parecidos, são os homens que tive, que queriam todos a mesma coisa...
- disse ela, complementando: - E parecido, não é igual... - aí
pensou um pouquinho e garantiu: - Não é mesmo, Lindinho!...
La Fontaine endereçou-lhe uma vênia, de admiração
pela erudição, o
que trouxe um calor de satisfação à moça, que para
refrigerar-se talvez, correu discretamente mais um pouquinho do fecho da blusa,
para baixo, expondo o colo generoso.
Esopo resolveu interferir, para que a discussão não se alongasse:
- Qua... Quan... Quando escrevi esta história, era minha intenção
lembrar aos leitores que o trabalho tudo vence... Q... Q... Que é muito
mais importante produzir do que especular...
- Nisto o senhor está redondamente enganado! - objetou a viúva.
Agora foi a vez do gaudério indignar-se:
- Mas se a riqueza não advém do trabalho, de onde advirá?
- Da especulação... Da bolsa de valores... Das atividades ilícitas...
Da corrupção... Da exploração do trabalho de terceiros...
-
começou a moça, sendo acompanhada pelo olhar de peixe morto de
La Fontaine, que ficava vidrado quando ela se manifestava.
- Acho que não... - argumentou o gaúcho, aparteando - Eu, por
exemplo, trabalhei a vida inteira...
- É!... - concordou ela, complementando: - E no que é que deu?
Não tens onde cair morto!... Estás sem atividade nenhuma hoje,
a não ser essa bobagem que inventaste, de contar histórias, como
se fosses capaz e, além disso, o próprio sangue te quer arrebatar
o pouco que ainda possuis...
- E que eu não devo! - esclareceu o gaúcho, pelo sim, pelo não.
- Não! Não deves, realmente, mas para a justiça, não
faz a menor diferença... Já, se tivesses sido um safado, um grande
ladrão ou um colarinho branco, ela estaria do seu lado!
- É possível... - concordou o capataz, pensativo.
- Em França as coisas não eram assim... - interferiu La Fontaine.
A viúva brindou-o com um sorriso do tipo "tomara que me comas"
e
perguntou, fazendo biquinho e ar inocente:
- Não?...
Foi novamente a vez do gaudério manifestar-se:
- Como que não?... Olhemos para a literatura... Os três Mosqueteiros,
por exemplo, que sempre tivemos por mocinhos, eram os maiores trapaceiros que
já existiram...
- Como assim? - quis saber La Fontaine, indignado, ao que o
gaúcho, que andara lendo a obra de Alexandre Dumas, explicou:
- Viviam às custas das mulheres e das amantes... Tudo aquilo que tinham,
era delas que provinha...
Ao que a viúva arrematou, capciosa:
- Hoje em dia não é muito diferente, não é, Lindinho?
La Fontaine apanhou a crítica no ar e achando-se muito superior ao
gaúcho, tirou a caixinha de rapé do bolso, aspirando um pouco
do conteúdo e oferecendo-a, a seguir, à moça, ansioso que
se encontrava por achar uma nova protetora, uma vez que estava quase a ver navios
em França, tendo sido inclusive preterido, pelo rei Luís XIV,
para ocupar uma vaga na Academia Francesa de Letras, em favor de Boileau, que
era o preferido do monarca, o que causara um certo constrangimento à
Madame De La Sablière, sua atual protetora, que estava pensando seriamente
em dispensa-lo, por medida de economia e, principalmente, pelo seu sofrível
desempenho no... no... No leito!
O gaudério fez ouvidos moucos à mulher e olhos cegos ao francês,
para não ter de ampliar o bate-bocas, com a primeira e, de dar um relhaço,
dentro da própria casa, no segundo, o que seria coisa muito feia, visto
ser este um convidado, prosseguindo:
- Acho que estamos nos afastando do tema...
Esopo, que era o conciliador natural, apesar do desdém com que era
tratado pelo francês, intercedeu, a favor do proprietário:
- F... Fa... Falávamos do trabalho...
- Isso... Dessa coisa estúpida que inventaram para nos encher as horas...
- disse La Fontaine, mal disfarçando um bocejo.
A viúva, que não perdia uma oportunidade de babar no peito do
autor
francês, arrematou:
- Monsieur tem toda a razão... Perde-se um tempo enorme escolhendo as
roupas que vestiremos na manhã seguinte, para não fazermos feio
no ambiente de trabalho...
- Ué, eu uso sempre as mesmas bombachas... Só cambio as cuecas...
- observou o gaudério, ao que a prenda, mais uma vez,
maldosa, ajuntou:
- Isso, porque eu peço! Senão, ficavas com a mesma a semana inteira...
- Pode ser, mas banho eu tomo todo o dia! - defendeu-se o capataz.
Um rubor subiu à face da donzela, com a indireta e o francês, cortês,
saiu em seu socorro:
- Eu banho-me apenas duas vezes por ano... Fora isso, troco a camisa e as ceroulas
diariamente e uso e abuso das colônias...
A viúva, recuperada na sua dignidade, esticou o narizinho empinado
para o pescoço do estrangeiro, aspirando profundamente e, após
suspirar, disse:
- E não tem o menor bodum!
Ao que o capataz não se conteve, exclamando:
- Então deves estar com as ventas lacradas, mulher, porque até
daqui estou sentindo a catinga!
- Nó.. Nó... Nós estávamos falando da minha fábula...
- voltou a
interceder o grego, que estava vendo a hora em que o circo ia pegar fogo.
O gaúcho, aborrecido com aquilo tudo, voltou a dar de mão nos
vícios... Picou o fumo crioulo com calma... Muy minuciosamente, enrolou
o palheiro, que levou à boca, enquanto que com a outra mão campeava
nos bolsos, atrás do isqueiro de mecha que finalmente encontrou e lhe
deu três ou quatro piparote, até que ficasse em brasa, para deitar
fogo ao pito.
Com muita paciência, tirou a primeira baforada, enquanto se lhe arrefeciam
os ânimos e, só então, deu continuidade a charla:
- Dizíamos?...
- Da... Da... Da minha fábula sobre o trabalho... - voltou a lembrar
o grego, com toda a humildade.
- Bah! - exclamou agora o francês - O assunto vai e vem e não conseguimos
nos livrar desta fábula boba!
Esopo encolheu-se na sua cadeira, pronunciando ainda mais e mais a
corcunda e o gaudério, que afinal era o dono da casa e devia manter as
coisas em ordem, repreendeu-o, sutilmente:
- Fábula boba uma merda!
- Lindinho! - exclamou a viúva, desfalecendo sobre o francês.
La Fontaine já estava com a moça nos braços. Talvez, que
não de
todo apagada ou fora de si, porque o gaudério, aproximando-se para atende-la
também, ouviu quando murmurava, para o galante escritor, ainda de olhinhos
semicerrados:
- Afrouxe mais a minha blusa porque não consigo respirar...
Foi o tempo que deu para o gaúcho passar a mão na bombinha, que
ela trazia sempre na frasqueira, e aciona-la uma ou duas vezes, goela adentro
da moça, que logo voltou a dar sinal de vida, dando fim ao mise-en-scène,
com um grand finale:
- Onde estou?...
Ao que o francês, balanqueiro, respondeu:
- Madame, tu je ne sais pás... Mais je suis au ciel!
E o gaudério, que não era trigo limpo, acrescentou, para encerrar
bem
encerrada aquela entente cordiale:
- Jeu de mains, jeu de villain... E toca cada um para o seu quarto, para acabarem
logo com esta sem-vergonhice!
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )
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