Pela vidraça fechada Vanessa observava o tímido e frio sol do
amanhecer de mais um dia, neste princípio de maio. Sempre gostara do
outono, uma estação de meios-termos. Nada muito intenso, nem o
frio, nem o calor. Nem a exuberância do verão, nem a escassez do
inverno. Uma estação de mudanças, de revisão, de
limpar as gavetas, jogar fora o que não tem mais utilidade (como a natureza
faz com as folhas das árvores), de fazer faxina no coração.
O ar frio já se insinuava pelas frestas da janela nos finais de tarde.
À noite, não se podia mais sair sem um agasalho, ainda que leve.
Não que isso importasse, já que, nos últimos dias, ela
não tinha colocado sequer os pés para fora de casa. Seu espírito
estava ainda mais frio que o ar lá fora e parecia-lhe que todo o dia
era escuro como a noite. Seu coração, antes resignado, estava
enrijecido pelo sofrimento. Sua mente só pensava nos últimos acontecimentos.
Não conseguia sair deste torpor, como num coma, não percebendo
nada mais ao seu redor.
Foi há mais de um mês - meados de março - que tudo começou.
O dia em que encontrara as passagens de avião no bolso de Rodrigo. Lembrava-se
perfeitamente do sentimento de surpresa, misturado à um certo contentamento
ao imaginar que o marido queria viajar com ela. Seria para se redimir da indiferença
que vinha crescendo no último ano? Logo descobriu que estava errada.
Via agora, diante de si, como se estivesse acontecendo naquele momento: ela
correndo para ele, feliz, perguntando-lhe para quando era a viagem e ele, sério,
cortando-lhe as palavras:
- Vanessa, pare! Precisamos conversar. Eu quero o divórcio.
O choque foi tão grande, que ela caiu no sofá, imóvel.
Ele, aproveitando a oportunidade, despejou tudo que vinha, há dias ,
ensaiando para dizer:
- Estas passagens são para Cláudia e eu. Queria falar antes, mas
não tive coragem. Já estamos juntos há alguns meses. Desculpe-me,
mas não a amo mais e não há como suportar essa vida que
levamos. Nada dura para sempre e nosso casamento acabou, só você
não se deu conta disso. Melhor eu sair de casa hoje. Vou para um hotel
até resolver minha vida.
Vanessa continuava ali, estática, sem dizer palavra. Em sua cabeça
passava a ideia de que acordaria do pesadelo dali a instantes e olharia
Rodrigo dormindo tranquilamente ao seu lado. Só reagiu quando a
porta do apartamento foi fechada com estrondo.
Ela então, tornando à realidade, olhou em volta. Sobre a mesa,
ele havia deixado sua cópia da chave e algum dinheiro. Lembrou-se de
o ter ouvido falar, durante seu transe, em uma ajuda para o próximo mês
de aluguel. Correu ao quarto e abriu a parte dele do guarda-roupa - vazia; as
gavetas - vazias; o criado-mudo - vazio. Foi ao banheiro, abriu o armário:
não estavam ali nem a escova de dentes, nem o barbeador elétrico,
nem o gel para o cabelo, nem a loção após barba... Tudo
faltava. Na sala, não havia mais a foto dos sogros e o cinzeiro que ele
ganhou da irmã. As roupas lavadas, que deveriam estar no varal da área
de serviço, já não estavam mais ali. Nada dele estava mais
ali, como se ele nunca tivesse morado naquela casa. Não havia vestígios
de sua presença ali. Sentiu-se só, de uma solidão que nunca
havia experimentado, nem mesmo quando seu pai morreu. Porque essa, que sentia
agora, era uma solidão magoada, cheia de culpas e porquês. "Nada
dura para sempre", ele dissera. Seu casamento chegara ao fim.
Passou a noite em claro, pensando. Queria compartilhar sua dor com alguém
mas tinha poucos amigos, nenhum irmão e só a mãe para pedir
colo. Queria ter ligado para ela assim que Rodrigo saiu, mas perdeu a coragem,
não sabia bem porque. Talvez por medo de ser recriminada. O sentimento
mais forte que tinha dentro de si era o de incompetência. Não soubera
manter o amor de seu marido. Sua mãe, provavelmente, diria isso.
Levantou cedo no dia seguinte. Era uma sexta-feira. Saiu de casa às sete
mas não foi trabalhar. Andou sem rumo pelas ruas por mais de duas horas.
Ao voltar para casa ainda não tinha tomado uma decisão. Mal fechou
a porta, o telefone tocou. Era sua mãe. Ela teria adivinhado? Não.
A voz chorosa do outro lado da linha tinha uma coisa para lhe contar:
- Vanessa, acabo de vir do médico. Ele me disse que preciso fazer uma
cirurgia - um soluço cortou-lhe a frase - Você não poderia
vir aqui em casa neste fim de semana? - E começou a chorar
Vanessa ficou assustada com a reação da mãe, sempre tão
forte e decidida. Disse-lhe que estaria lá no final da tarde. Desligou
o telefone com uma decisão tomada. Primeiro foi à loja onde trabalhava
e pediu demissão. Em seguida, passou na imobiliária e entregou
o apartamento. Doou os móveis para uma instituição de caridade,
juntou seus pertences em três malas grandes, colocando-as no porta-malas
e no banco de trás de seu velho carro, e partiu. Dirigiu por 30 km e
chegou a sua antiga residência ao escurecer.
A casa era graciosa por fora e confortável por dentro. Nada muito luxuoso,
mas com um certo requinte. Peças herdadas de avós e bisavós
davam um ar antigo à residência de Dona América. Ela morava
sozinha e sentia-se bem assim. Era muito querida pelos vizinhos, mas não
tinha o hábito de ter um relacionamento muito próximo com eles.
Vanessa pensava sempre o quanto era parecida com a mãe neste aspecto.
"Somos duas felizes solitárias", era sua definição.
Dona América estava na varanda, ansiosa pela chegada da filha. Nem percebeu
que ela veio de mudança. Mais tarde, para não preocupar a mãe,
Vanessa disse-lhe apenas que ela e Rodrigo resolveram mudar de apartamento e
como ele viajaria para fazer um curso, ela veio ficar uns dias com a mãe.
- Mas e seu emprego? - perguntou a senhora
- Não estava bom, mãe. Vou procurar outro assim que voltar para
a cidade.
A conversa não se estendeu muito porque, já inteirada dos problemas
da mãe, estavam ambas com o pensamento na cirurgia. A coisa era realmente
grave - um coágulo no cérebro - e Vanessa sentia-se desamparada.
Era sua vez, pela primeira vez, de amparar a mãe, dar-lhe confiança
e manter-se calma. Nunca sua mãe pareceu precisar disso. Nem quando enviuvou.
Ao contrário, quem sentia falta do pai era ela e a mãe a consolava
em suas crises de depressão. Mas tudo estava mudado. Sua mãe parecia-lhe
extremamente frágil e carente de afeto e proteção, como
uma criança. E justo naquele momento tão difícil de sua
vida, meu Deus!
Lembrou-se de rezar. Há anos não se envolvia com nenhuma religião,
mas tinha dentro de si uma confiança em Deus que fora plantada por seu
pai, em sua infância feliz. Buscou essa confiança e sentiu-se mais
forte. Alguém tinha que tomar as rédeas da situação.
E só podia ser ela. Pediu a Deus que lhe desse discernimento. E Ele deu.
Vanessa adquiriu uma força para enfrentar os acontecimentos que viriam
a seguir que ela não podia explicar. As coisas aconteceram rapidamente
e ela soube o que fazer a cada momento. Até que tudo acabou...
Uma rajada de vento balançou a janela e trouxe Vanessa ao presente de
novo. Há quinze dias havia enterrado a mãe, que morrera na mesa
de cirurgia. Foram momentos difíceis. Uma desgraça nunca vem sozinha,
era o que diziam. Imediatamente, em seu pensamento surgiu a frase dita por Rodrigo:
Nada dura para sempre.
Lá dentro do seu coração, esta mesma frase ressoou mais
completa: "nada dura para sempre: nem a alegria, nem a tristeza. Essa é
a benção de Deus."
Ao pensar em Deus, sentiu um calor revigorante em seu corpo. Apesar de não
identificar a fonte, seu ânimo mudou. Afinal era outono, época
de jogar fora as velhas folhas secas, fazer faxina no coração,
preparar-se para descansar o corpo no inverno e partir para a renovação
da primavera!
Com este pensamento levantou-se, sacudiu a roupa como se retirasse uma poeira
imaginária e disse para si mesma:
- Vamos lá menina, mãos à obra! Comece a limpar os armários
de mamãe! Há muito trabalho por aqui e o outono também
não dura para sempre!