A Garganta da Serpente
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Novo ano

(Lauro Oell)

Fogos de artifícios denunciavam a iminência do momento da virada, da entrada do novo ano. João e José conversavam, observado a explosão dos fogos, sentados sobre o pequeno muro da frente do casebre onde vivia a família de João.

- Então é isso, João. Mais um ano que se foi. E passou assim, como se fosse um carro de bacana a toda na estrada.

- É mesmo. Nem percebi e, quando vi, já era final de ano. Mas também, quanta luta. Todo santo dia, sem uma folguinha. Nem deu para uma paradinha, uma prainha, só eu e minha patroa.

- Lembra do Ernestinho? Morreu antes de ontem, coitado.

- Não me diga isso! O Ernestinho morreu? Como?

- Tiro. Levou um balaço bem nos corno.

- E o enterro?

- Já foi. Fizemo uma vaquinha e enterremo ele.

- Mais que barbaridade que tá esse mundo. Então um trabalhador como o Ernestinho, ralô a vida interinha, de sol a sol. Dedicado para a família que nem ele, não conheço outro. E os filho, como ficaram?

- Tão tudo muito puto da cara. Acham que foi morte mandada.

- Mais por quem?

- Aí é que tá. Ninguém sabe. Tão tentando descobri quem tá de mal com o Ernestinho.

- Nóis devia falá com eles, pra não deixar que eles façam alguma coisa de burrada. E se foi um polícia?

- E adianta? Já falei com eles, mas eles tão é com vontade de fazer uma bobagem, mesmo.

- Que coisa triste que é essa vida. Um sujeito tão bom como o Ernestinho... Mas olha que tem muito mais: o Zé falador, o Paulinho mão-santa, o Juca, o Gomes. Lembra do Gomes? Além do tiro que levou ainda foi atropelado. Morreu e foi confirmado.

- É. Tanta gente morreu nesse ano. Muita gente boa. O cara tava aí, no trabalho e, quando menos espera, bam! Alguém mete uma azeitona bem no meio das fuça do sujeito. Às vezes eu penso se tudo vale a pena, viu José.

- Aí é que você começa a falá besteira, homem. E tua família, não merece o esforço que você faz, todo santo dia, prá botar arroz e feijão na mesa? Se não fosse assim, como seria tua vida e dos teu filho? Não se descorçoe, não, amigo, que tudinho o que você faiz tem um bom motivo. Afinal, quem é por você, além de você mesmo?

- Eu sei, eu sei. É que tudo é tão difícil. A gente sai para trabalhar e não sabe se volta para casa, se vai ver a família de novo. Às vezes eu fico um pouco chateado com tudo isso. E para que? Como você diz, só para botar comida na mesa, nada mais. O que vou deixar para meus filhos? Esse barraco aí? Grande herança...

- É mais do que teu pai te deixou. Já é alguma coisa. Além disso, tem também o teu exemplo, a tua coragem que todo mundo conhece. Aqui em cima você sabe que todos te querem bem e te respeitam.

- É, tem isso. Mas acho pouco. E te digo mais, esse novo ano não vai ser diferente. Vai ser ralação e mais ralação, sem ter certeza de voltar vivo do trabalho.

Deu meia-noite. Os fogos iluminavam a escuridão, num espetáculo bonito. Faíscas vermelhas, verdes e amarelas, riscavam os céus, para todos os lados; muitos vizinhos saíram à rua, para olhar o efeito. Gritos de "Viva" e "Feliz Ano Novo" ecoaram por toda parte. Alguns estouravam espumantes; outros abriam cervejas; João e José tomaram um golão de cachaça e se abraçaram, emocionados, quase chorando. Logo acudiram os filhos e as mulheres, e todos se abraçaram, comemorando o ano novo.

Jantaram a janta simples, a mesma de todos os outros 364 dias do ano. A diferença era a alegria da criançada, feliz sem saber por quê, sem precisar de motivos. João e José até chegaram a se deixar levar pela alegria simples dos filhos pequenos.

João olhou para a filhinha mais nova, de 3 aninhos: só de calcinha, sem uma camiseta, muito menos chinelos. Não muito diferente dos outros seis filhos, a maioria sem camisa e sem chinelos; os pés numa crosta de sujeira; os cabelos, um emaranhado de fios que nunca haviam visto uma escova ou pente. A realidade da miséria de sua família, atingindo-o como um soco no estômago, trouxe-o de volta dos sonhos. Então João chorou. Quieto, sem alardes. Chorou pelo futuro de seus filhos e pelo seu futuro, cheio somente de uma coisa: incertezas.

A filhinha viu o pai chorando.

- Tá tlite papaijinho? Não chola, viu?

- O pai tá chorando de alegria pelo novo ano, querida - João abraçou a filha, que saiu correndo, gritando.
- Biba o ano nobo!

João terminou de jantar. Hora de ir pro trabalho. Fez sinal para José e pegaram os apetrechos da lida; beijou a mulher, deu tchau pros filhos, ainda alegres, correndo em volta do pai.

Lá se foram os dois. Uma hora de caminhada e a vizinhança já era outra.

- Aonde vamos hoje, João?

- Naquela esquina, perto do semáforo. Hoje é dia de movimento por ali.

Mais dez minutos andando, chegaram. Pararam, esperando. O sinal logo fechou. Nisso, um carro se aproximou, as pessoas dentro dele cantando, alegres. José e João correram.

- Assalto! Tira a mão do volante aí, meu chapa, senão passo fogo!

- Calma aí! Calma aí! - balbuciava o motorista - Dou o que vocês quiserem, só não nos façam mal.

A mulher, no banco do carona, começou a gritar. As duas crianças no banco de trás começaram a chorar alto, assustadas.

- Cala a boca, sua infeliz, senão eu te mato agora!

- Olha, toma aqui minha carteira. Tem bastante dinheiro. Deixa a gente ir, por favor - o motorista começou a chorar.

Confusão. A mulher ficou histérica, gritava sem parar. As crianças, aterrorizadas, também gritavam. Na balburdia, o motorista tentou arrancar.

- Atira, José, que eles tão querendo fugir!

Bam! Bam! Bam! Três tiros e o carro segue, lentamente, em direção ao meio-fio. Gritos ainda mais estridentes, o carro parando ao atingir a calçada. Ao longe, som de sirenes que se aproximavam.

- Pega só o dinheiro e joga fora a carteira do topeira, José. E simbora, que os home tão chegando.

Ao saírem correndo, João ainda falou.

- Novo ano nada! É tudo a mesma coisa.

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