Meu Deus! Como é difícil levantar pela manhã. Doem os pés,
as costas, o pescoço. Falar a verdade, não sei é o quê
não dói. E quase sempre meu nariz está entupido. Consequência:
boca e garganta secas. Minha mulher, já faz tempo que acorda em outro
lugar da casa. Diz que eu ronco muito. Já lhe disse que a recíproca
é verdadeira, mas parece que nem todos suportam as idiossincrasias de
suas caras-metades. Levanto, procurando o descongestionante nasal. Logo depois
vem o anti-ácido e o anti-hipertensivo. Tomo tudo com um grande gole
de água, tão grande que dá tempo para pensar: é
a idade, já não sou mais tão novo.
Antigamente, talvez trinta anos trás, não havia anti-ácido
nem anti-hipertensivo para mim. Não havia dor nas costas, nem no pescoço.
Aliás, o travesseiro de dormir nem era levado em grande consideração.
Hoje testo mil e um travesseiros, tentando encontrar o graal, o travesseiro
dos sonhos. Inútil. Percebi que esse graal é igual àquele
mais famoso: quimera.
Quando era menino, as noites de sono eram revigorantes. Recarregar as pilhas
para as brincadeiras do dia seguinte. Cresci num bairro de uma cidade, mas poderia
ter sido no campo. Asfalto, água encanada, luz, ônibus, telefone,
tinha todas as comodidades. E tinha um rio e campos abertos à distância
de um pique, uma corrida rápida. Dividia meus dias entre pescarias, jogos
intermináveis de futebol e outras tantas brincadeiras.
Muito interessante era esse rio. Eu o conhecia (supostamente ainda o conheço,
afinal ele ainda existe, não sei em que condições) como
minha própria rua, minha própria casa. Desde o balneário
que havia nos trechos acima de meu bairro, até o ponto onde a obra humana
o emporcalhava completamente: um matadouro tinha o hábito de jogar restos
de animais abatidos em suas águas. Daquele ponto em diante o rio era
um esgoto fétido e morto. Mas para cima havia peixes e a água
era límpida.
Como todo lugar que se preza habitado por crianças, havia nomes específicos
para algumas partes do rio. Por exemplo, um lugar onde tinha muita areia nas
margens e as águas eram mansas era chamado de prainha. Outro lugar, famosíssimo,
era o poço do soldado. Era um remanso profundo do rio, com margens altas
(pelo menos pareciam enormes para mim, aos nove, dez anos de idade). Conta a
lenda que ali morreu um soldado do exército em treinamento, quando, ao
entrar no rio, não aguentou o peso da água que entrou em
seus coturnos e acabou se afogando. Lógico que o fantasma dele por ali
rondava, assuntando os incautos que por ali se aventuravam sozinhos. Nas noites
de inverno, nosso grupinho de amigos, todos sentados junto a um poste de luz,
encorujados de frio, era inevitável começar as estórias
assustadoras e sempre alguém dizia ter sido vítima do soldado
morto no rio. Adultos acabavam entrando nos contos para confirmar as versões,
talvez para dar mais consistência às estórias. Acabou que
eu conhecia o tal poço muito tempo antes de tê-lo visto ao vivo
e em cores.
Eu e mais dois amigos um dia tomamos coragem e fomos até o poço.
Chegamos já assustados. O barranco era altíssimo, parecia ter
uns 50 metros de altura! E então vimos, bem no meio do poço, um
pouco abaixo da superfície da água, o capacete do soldado! Na
mesma hora imaginei (ou vi, não sei, já não lembro muito
bem) o soldado com os pés no fundo do rio, coturnos cheios de água
e areia, quieto, espreitando. Só o sol batendo naquela exata posição
denunciava o plano do desgraçado soldado, que ficava só esperando
alguém dar mole, descer até a beirada do rio para ser agarrado
e levado para o fundo, para fazer companhia ao soldado morto. Eu e meus amigos
saímos dali como três foguetes! Acho que só parei de correr
para abrir a porta de casa.
Sonhei com o soldado por muitos dias, imaginando que ele viria até ali
em casa, para pegar o moleque que havia perturbado sua tocaia. Depois daquele
susto, nenhum de nós chegou perto do rio por muito tempo.
Anos depois o poço do soldado se tornou meu pesqueiro predileto. Foi
ali que peguei os meus maiores carás. Com o passar do tempo, o poço
perdeu seu charme tenebroso. Descobrimos que o capacete do soldado, que havíamos
visto, nada mais era do que uma pedra que sobe do fundo do rio até quase
a superfície. O topo dessa pedra era rombudo e parecia, de fato, com
a parte de cima de um capacete, ainda mais para três meninos impressionáveis...
Depois de algum tempo até nadávamos naquele outrora tão
lúgubre poço.
Outro lugar famoso que existe lá naquele rio são as cavernas.
Logo abaixo do poço do soldado, o rio estreita muito e entra numa área
de muita mata ciliar, mata fechada mesmo. E por ali existem picadas abertas,
tais como túneis na vegetação fechada. Sei lá quem
abriu aquelas picadas, só sei que elas pareciam cavernas. Eram labirínticas,
vastas. Uma facilidade para um bocó se perder por ali. Por isso só
íamos lá em grupos grandes, uns dez moleques. Íamos brincar
de policia e ladrão naqueles corredores sombrios. Essa brincadeira foi
o hit do momento por vários meses. Imagino que seria algo parecido com
o encantamento causado hoje em dia por um novo videogame ou qualquer outro jogo
informatizado que se jogue atualmente. Todas as tardes grupos cada vez mais
numerosos iam brincar nas cavernas. O final de tarde era melhor, por causa da
meia luz: quando começava a escurecer, mais assustador ficava aquele
lugar, e tudo o que queríamos naquela época era sentir medo. Foi
numa dessas tardes que vi o sujeito.
Estávamos no meio da disputa do dia. Eu era polícia. Ou ladrão,
não me recordo. Talvez ladrão, porque lembro de querer chegar
até um barranco que existia num trecho das cavernas para tentar me esconder.
Mas também podia ser um polícia, buscando o mesmo barranco para
ficar de tocaia. Enfim... Fato é que, ao chegar ao barranco (uma ravina,
na verdade o antigo leito do rio) encontrei-o ocupado. Havia um sujeito lá.
Inevitável pensar novamente no velho soldado morto, só que o sujeito
não parecia nada com milico.
- Pode chegar aí - falou o sujeito, olhando para mim.
Nunca tinha visto aquela pessoa por ali. Ele estava vestido quase como eu, só
que estava de calças, mas tinha um tênis e uma camiseta idênticos
aos meus. Estava sentado de pernas cruzadas, como as pessoas fazem em meditação.
A despeito de todas as recomendações que sempre os adultos me
fizeram, eu acabei sentando no chão, perto do desconhecido. Porque apesar
de, naquela época, quase não existir os medos que temos hoje,
de violência, rapto, etc., sempre recomendavam para evitarmos os desconhecidos.
Boa coisa não eram, costumavam nos dizer. Ainda mais ali no mato, pois
existiam andarilhos, já os tinham visto inúmeras vezes por ali.
Mas não tive medo, ou nem pensei no medo, nem avaliei.
- Vocês andam fazendo uma bagunça e tanto ultimamente por aqui,
hein? Todo dia essa correria pra lá e pra cá. Isso não
vai durar muito, viu?
Pensei então ser o sujeito o dono daquelas terras. Perto dali havia uma
casa, na outra margem do rio. Sempre pensamos ser aquela a casa do caseiro de
uma chácara, coisa assim. Vai ver o sujeito morava naquela casa e nós
estávamos irritando o dono daquelas terras com nossa algazarra.
- Não. Eu não tenho nada a ver com essas terras. Não sou
dono delas, nem moro naquela casa. Mas posso lhe dizer que vocês não
estão agradando aquelas pessoas, não mesmo. Meu negócio
é outro. Meu negócio é contigo e só contigo.
Agora eu posso dizer que tinha ficado assustado.
- Está chegando a hora, meu amigo. Você vai ter que escolher. O
momento das escolhas chegou, sem mais delongas. Sem escapatórias, desculpas,
sem mais atraso. Chega de moleza. É hora de escolher e ser responsável
por isso. Você vai ter de se arriscar, tomar partido. O que quer para
si? Chega de brincadeiras, é hora de tomar a vida. Antes que seja tarde
e a tomem por você.
Eu, atônito, fiquei sentado, sem saber o que dizer, o que fazer, o que
pensar. Será que era um daqueles loucos que fogem de hospícios,
coisa assim? Ainda pasmo, vi o sujeito se levantar, bater com a mão a
terra do traseiro de sua calça, acenar e seguir para a saída das
cavernas. Ao chegar à borda da mata, virou-se e acenou novamente. E se
foi. Nunca mais o vi.
Naquela noite, já em casa, banho tomado, pijama posto e deitado na cama
quente, pensei muito sobre aquela experiência, mas não consegui
entender o que vi, quem era aquele sujeito. Aquele dia foi especial, pois além
dessa experiência maluca que tive, foi a última vez, que eu me
lembre, que nossa turma foi às cavernas para brincar. Pouco depois nem
pescar mais eu ia, e nem me recordo qual foi a última vez que vi o meu
rio de perto. Tudo foi ficando para trás, inclusive os amigos. A vida
acelerou e tudo passou, como uma paisagem vista de um carro em movimento: borrões.
Talvez agora, muitos e muitos anos depois, eu possa tentar compreender sobre
escolhas, sobre tomar partido. É mais fácil agora, é só
olhar o passado acumulado de experiências e posso apontar onde e quando.
Mas o futuro teima em permanecer obscuro, apesar do passado. Imagino na verdade
que nunca percebi as escolhas, nunca as soube reconhecer, só quando já
haviam seguido para trás na vida.
O que mais me incomoda é a dor no pescoço. Porque é constante,
o dia inteiro. As costas doem, mas não é contínuo. Dizem
que a dor no pescoço é devido ao estresse, às preocupações.
Já dor nas costas, é relaxo mesmo.
Mas o que eu queria era que aquele sujeito voltasse. Pois agora tenho um milhão
de perguntas e não ficaria quieto, com aquela cara, embasbacado como
fiquei.