A Garganta da Serpente
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O Sujeito

(Lauro Oell)

Meu Deus! Como é difícil levantar pela manhã. Doem os pés, as costas, o pescoço. Falar a verdade, não sei é o quê não dói. E quase sempre meu nariz está entupido. Consequência: boca e garganta secas. Minha mulher, já faz tempo que acorda em outro lugar da casa. Diz que eu ronco muito. Já lhe disse que a recíproca é verdadeira, mas parece que nem todos suportam as idiossincrasias de suas caras-metades. Levanto, procurando o descongestionante nasal. Logo depois vem o anti-ácido e o anti-hipertensivo. Tomo tudo com um grande gole de água, tão grande que dá tempo para pensar: é a idade, já não sou mais tão novo.

Antigamente, talvez trinta anos trás, não havia anti-ácido nem anti-hipertensivo para mim. Não havia dor nas costas, nem no pescoço. Aliás, o travesseiro de dormir nem era levado em grande consideração. Hoje testo mil e um travesseiros, tentando encontrar o graal, o travesseiro dos sonhos. Inútil. Percebi que esse graal é igual àquele mais famoso: quimera.

Quando era menino, as noites de sono eram revigorantes. Recarregar as pilhas para as brincadeiras do dia seguinte. Cresci num bairro de uma cidade, mas poderia ter sido no campo. Asfalto, água encanada, luz, ônibus, telefone, tinha todas as comodidades. E tinha um rio e campos abertos à distância de um pique, uma corrida rápida. Dividia meus dias entre pescarias, jogos intermináveis de futebol e outras tantas brincadeiras.

Muito interessante era esse rio. Eu o conhecia (supostamente ainda o conheço, afinal ele ainda existe, não sei em que condições) como minha própria rua, minha própria casa. Desde o balneário que havia nos trechos acima de meu bairro, até o ponto onde a obra humana o emporcalhava completamente: um matadouro tinha o hábito de jogar restos de animais abatidos em suas águas. Daquele ponto em diante o rio era um esgoto fétido e morto. Mas para cima havia peixes e a água era límpida.

Como todo lugar que se preza habitado por crianças, havia nomes específicos para algumas partes do rio. Por exemplo, um lugar onde tinha muita areia nas margens e as águas eram mansas era chamado de prainha. Outro lugar, famosíssimo, era o poço do soldado. Era um remanso profundo do rio, com margens altas (pelo menos pareciam enormes para mim, aos nove, dez anos de idade). Conta a lenda que ali morreu um soldado do exército em treinamento, quando, ao entrar no rio, não aguentou o peso da água que entrou em seus coturnos e acabou se afogando. Lógico que o fantasma dele por ali rondava, assuntando os incautos que por ali se aventuravam sozinhos. Nas noites de inverno, nosso grupinho de amigos, todos sentados junto a um poste de luz, encorujados de frio, era inevitável começar as estórias assustadoras e sempre alguém dizia ter sido vítima do soldado morto no rio. Adultos acabavam entrando nos contos para confirmar as versões, talvez para dar mais consistência às estórias. Acabou que eu conhecia o tal poço muito tempo antes de tê-lo visto ao vivo e em cores.

Eu e mais dois amigos um dia tomamos coragem e fomos até o poço. Chegamos já assustados. O barranco era altíssimo, parecia ter uns 50 metros de altura! E então vimos, bem no meio do poço, um pouco abaixo da superfície da água, o capacete do soldado! Na mesma hora imaginei (ou vi, não sei, já não lembro muito bem) o soldado com os pés no fundo do rio, coturnos cheios de água e areia, quieto, espreitando. Só o sol batendo naquela exata posição denunciava o plano do desgraçado soldado, que ficava só esperando alguém dar mole, descer até a beirada do rio para ser agarrado e levado para o fundo, para fazer companhia ao soldado morto. Eu e meus amigos saímos dali como três foguetes! Acho que só parei de correr para abrir a porta de casa.

Sonhei com o soldado por muitos dias, imaginando que ele viria até ali em casa, para pegar o moleque que havia perturbado sua tocaia. Depois daquele susto, nenhum de nós chegou perto do rio por muito tempo.

Anos depois o poço do soldado se tornou meu pesqueiro predileto. Foi ali que peguei os meus maiores carás. Com o passar do tempo, o poço perdeu seu charme tenebroso. Descobrimos que o capacete do soldado, que havíamos visto, nada mais era do que uma pedra que sobe do fundo do rio até quase a superfície. O topo dessa pedra era rombudo e parecia, de fato, com a parte de cima de um capacete, ainda mais para três meninos impressionáveis... Depois de algum tempo até nadávamos naquele outrora tão lúgubre poço.

Outro lugar famoso que existe lá naquele rio são as cavernas. Logo abaixo do poço do soldado, o rio estreita muito e entra numa área de muita mata ciliar, mata fechada mesmo. E por ali existem picadas abertas, tais como túneis na vegetação fechada. Sei lá quem abriu aquelas picadas, só sei que elas pareciam cavernas. Eram labirínticas, vastas. Uma facilidade para um bocó se perder por ali. Por isso só íamos lá em grupos grandes, uns dez moleques. Íamos brincar de policia e ladrão naqueles corredores sombrios. Essa brincadeira foi o hit do momento por vários meses. Imagino que seria algo parecido com o encantamento causado hoje em dia por um novo videogame ou qualquer outro jogo informatizado que se jogue atualmente. Todas as tardes grupos cada vez mais numerosos iam brincar nas cavernas. O final de tarde era melhor, por causa da meia luz: quando começava a escurecer, mais assustador ficava aquele lugar, e tudo o que queríamos naquela época era sentir medo. Foi numa dessas tardes que vi o sujeito.

Estávamos no meio da disputa do dia. Eu era polícia. Ou ladrão, não me recordo. Talvez ladrão, porque lembro de querer chegar até um barranco que existia num trecho das cavernas para tentar me esconder. Mas também podia ser um polícia, buscando o mesmo barranco para ficar de tocaia. Enfim... Fato é que, ao chegar ao barranco (uma ravina, na verdade o antigo leito do rio) encontrei-o ocupado. Havia um sujeito lá. Inevitável pensar novamente no velho soldado morto, só que o sujeito não parecia nada com milico.

- Pode chegar aí - falou o sujeito, olhando para mim.

Nunca tinha visto aquela pessoa por ali. Ele estava vestido quase como eu, só que estava de calças, mas tinha um tênis e uma camiseta idênticos aos meus. Estava sentado de pernas cruzadas, como as pessoas fazem em meditação. A despeito de todas as recomendações que sempre os adultos me fizeram, eu acabei sentando no chão, perto do desconhecido. Porque apesar de, naquela época, quase não existir os medos que temos hoje, de violência, rapto, etc., sempre recomendavam para evitarmos os desconhecidos. Boa coisa não eram, costumavam nos dizer. Ainda mais ali no mato, pois existiam andarilhos, já os tinham visto inúmeras vezes por ali. Mas não tive medo, ou nem pensei no medo, nem avaliei.

- Vocês andam fazendo uma bagunça e tanto ultimamente por aqui, hein? Todo dia essa correria pra lá e pra cá. Isso não vai durar muito, viu?

Pensei então ser o sujeito o dono daquelas terras. Perto dali havia uma casa, na outra margem do rio. Sempre pensamos ser aquela a casa do caseiro de uma chácara, coisa assim. Vai ver o sujeito morava naquela casa e nós estávamos irritando o dono daquelas terras com nossa algazarra.

- Não. Eu não tenho nada a ver com essas terras. Não sou dono delas, nem moro naquela casa. Mas posso lhe dizer que vocês não estão agradando aquelas pessoas, não mesmo. Meu negócio é outro. Meu negócio é contigo e só contigo.

Agora eu posso dizer que tinha ficado assustado.

- Está chegando a hora, meu amigo. Você vai ter que escolher. O momento das escolhas chegou, sem mais delongas. Sem escapatórias, desculpas, sem mais atraso. Chega de moleza. É hora de escolher e ser responsável por isso. Você vai ter de se arriscar, tomar partido. O que quer para si? Chega de brincadeiras, é hora de tomar a vida. Antes que seja tarde e a tomem por você.

Eu, atônito, fiquei sentado, sem saber o que dizer, o que fazer, o que pensar. Será que era um daqueles loucos que fogem de hospícios, coisa assim? Ainda pasmo, vi o sujeito se levantar, bater com a mão a terra do traseiro de sua calça, acenar e seguir para a saída das cavernas. Ao chegar à borda da mata, virou-se e acenou novamente. E se foi. Nunca mais o vi.

Naquela noite, já em casa, banho tomado, pijama posto e deitado na cama quente, pensei muito sobre aquela experiência, mas não consegui entender o que vi, quem era aquele sujeito. Aquele dia foi especial, pois além dessa experiência maluca que tive, foi a última vez, que eu me lembre, que nossa turma foi às cavernas para brincar. Pouco depois nem pescar mais eu ia, e nem me recordo qual foi a última vez que vi o meu rio de perto. Tudo foi ficando para trás, inclusive os amigos. A vida acelerou e tudo passou, como uma paisagem vista de um carro em movimento: borrões.

Talvez agora, muitos e muitos anos depois, eu possa tentar compreender sobre escolhas, sobre tomar partido. É mais fácil agora, é só olhar o passado acumulado de experiências e posso apontar onde e quando. Mas o futuro teima em permanecer obscuro, apesar do passado. Imagino na verdade que nunca percebi as escolhas, nunca as soube reconhecer, só quando já haviam seguido para trás na vida.

O que mais me incomoda é a dor no pescoço. Porque é constante, o dia inteiro. As costas doem, mas não é contínuo. Dizem que a dor no pescoço é devido ao estresse, às preocupações. Já dor nas costas, é relaxo mesmo.

Mas o que eu queria era que aquele sujeito voltasse. Pois agora tenho um milhão de perguntas e não ficaria quieto, com aquela cara, embasbacado como fiquei.

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